AMIZADE

        para Érica


De onde estás controlas tempo
E campos de musgos contentes
No calor luzente que enlaça
As frestas que o vento rompe.

Nunca a mesma música, nunca
O mesmo ritmo dos braços
Compartilhando o amor. Resistes
À noite, ao caos nos esperando
Calado na nudez da penumbra.

Tua amizade se constrói, dura,
Nas lanças com que ergues teu muro.

 


DIAFANEIDADE

        para Joyce

Que és lume atravessando
O tecido que te veste
É claro e é exato,
Tal a hora em que vieste.

Música, ritmo, o tempo:
Tudo e nada te define
No diálogo inconcluso
Que me cala e não redime.

E na diafaneidade
Com que plantas teu sorriso,
O gosto de fruta lavada —
Memória do impreciso.

 


MELANCOLIA

        para Maristela

Teu retrato em tela, longe:
No escuro os cabelos gritam
Abandonos, vilanias
Do amor que não te responde.

Velas, então, o estrito
Campo de mortas centelhas,
Sob lâmpadas sombrias
E névoas com que te escondes.

Tudo tem seu tempo, o estrago
Se desfaz ao sopro do que buscas:
Um alento, vento a soprar no escuro,
Quem sabe um beijo, o amor, o futuro.

 


SILÊNCIO

        para Alessandra

Som de espaços ocos — ciciar
Do sol secando as poças
Que nosso olhar sustenta
Em tempos desiguais e falas doces.
Amor é isso? Nada dizem
Os pássaros em passos rasos,
As pedras de pesadas lacunas,
Nem céu, nem árvores, nem uma
Voz riscando o silêncio
Ruidoso que compartilhamos.
Somente o som da surpresa
Da impossível harmonia.

 


VERDADE

        para Julia

Em meio aos densos caminhos
Que pisas em passos difusos,
Imerso em vãos cristalinos,
Esmago sentires confusos.

Mas tu passas celeremente
Qual uma estrela desastrada,
Enquanto me escapa a verdade
Na frase há tempos lograda.

A palavra não vem, difícil
Lide a lidar com a ilusão;
E quando vem, fere doída:
Pássaro jazendo no chão.

Simples? Sim: quisera estar junto
De ti, pousar-me em teu regaço,
E mais nada — o tempo assustado —
Hálitos em um cálido abraço.

 


FELICIDADE

        para Niúbe

Há o vento a enrugar semblantes
E a chuva borrando em nuvens
Teu desenho comovente
Que insistes em tracejar,

Enquanto levas luzes
Às sombras que cultivo,
Em distante dança e descompasso,
Na terra de úmido estrume.

Talvez pudesses te encontrar
No reflexo das águas no chão;
Talvez eu quisesse me encarar
Na harmonia fácil da canção.

Mas a felicidade não existe:
Solitários morremos à janela,
Ao sol nos sorrindo, cheio
De promessas a cumprir.

 


IRA

        para Márcia

A toalha sobre a mesa agride os braços.
Nenhum pão tem manteiga derretida.
Vem o sol e um vento ruim nas migalhas
Assopra sangue e terra misturados.

Teu campo é guerra, de chumbos soldada,
Acremente em fármacos pervertida,
Aqueces unhas, flancos e espalhas
Amor e entranhas de sangue e de aço.

De ti me vem a sede: em golfadas,
A ira de palavras, desmedida,
Afoga o que de bom se desenhava.

Assim tu vences tua absurda luta,
Rosas, paixão de alma dividida,
O olvido grito que ninguém escuta.

 


EFEMERIDADE

Sempre é pouco o que da vida se tira,
E posto que cedo saibamos disso,
Teimamos na demanda do enfermiço
Enleio, a despeito de nossa ira.

E tu, olhando o nada que te mira,
Te alicerças no que pensas maciço
— Terra seca, sem húmus e sem viço —
Vasto pasto de ruína  e de mentira.

Porque a vida é dessa matéria-prima:
O errado, o insensato, o desengano
Que interrompem violentos nosso rumo.

Não me engano, pois, c'o desejo insano
De saber da fruta última o sumo:
Agora é vão — nada nos aproxima.

 


RETRATO

Nunca está frio nem quente o que baste,
Ou o sol te queima ou tremes na penumbra,
E sempre o medo — dos outros e de ti —
Nos campos onde colhes mortas flores;
Sempre pedras que te ferem os pés,
Sempre o cego que te corta o rumo,
Um morto que te rompe o prumo.

Pois destilas teu veneno, dócil
E feroz, enquanto o fel escorre
Nos dutos secos do que és:
Eclipse, putrefato solo, um sonho ruim,
O talvez.

 


A DESCOBERTA DO AMOR

Numa esquina, num canto escuro,
Em meio ao grito de gol
Que não foi.
Naquele filme, depois café,
Naquele riso que morreu.
Em sua casa, na minha cama,
À luz de velas, à luz da lua,
Ou sob o sol queimando o mundo.
Meio do dia, meia-noite,
O dia inteiro — na madrugada.
Debaixo do sofá, no vão das unhas,
Na boca do estômago,
No coração.
Nos filhos vivos e no cão morto —
Vísceras à mostra, moscas em volta.
O amor morreu (suspiro fundo).
O amor não está em lugar algum.

 


SEMPRE RESTA ALGO

Meus olhos bóiam no deserto
Que cuidaste com desvelo ajeitado.
Poços secos, folhas mortas —
A tudo miro e não encontro.

O calcinado chão reflete
Apenas o ruído de ossos pisados.
Nem um vento sopra
Os corpos em migalhas qual cerume antigo.

Não há amigos, o que restou
É só cansaço, a janela aberta ao vazio,
O mormaço nos cabelos,
O desespero.

 


NÃO EXISTE AMOR COM FINAL FELIZ

A imagem em branco e preto me atormenta,
Nenhum beijo se despega do desejo
Urgente que traçaste com um giz:
Não existe amor com final feliz.

E ao fundo luzes gritam da agonia
Que se esmeram teus dedos em esmagar,
Ao som de uma canção que apenas diz:
Não existe amor com final feliz.

E mesmo quando sopram teus cabelos
Brisa de flores e vento de mar,
Tu te ocultas no ser que desdiz
O enlevo armado — sal de pesadelos,
História que arrancaste com raiz:
Não existe amor, nem final feliz.

 

(imagens ©daphne klimas)


 

Ricardo Miyake (São Paulo, 1962). Poeta e professor de Literatura no ensino superior. Escreve o blogue Arquitetura da Palavra,de poemas, crítica de cultura e lamúrias pessoais.