Como Engaiolar Um Passarinho Cantador

 

  1. compre uma gaiola.
  2. arme uma arapuca.
  3. capture o passarinho cantador.
  4. aprisone-o na gaiola.
  5. espere o manifestar de seu silêncio.
  6. se, depois de alguns dias, ele voltar a cantar,
  7. dê-lhe uma gota de orvalho retirada das folhas da última árvore que ele habitou.
  8. ele morrerá de saudade.
  9. mas não espere dele um novo silêncio,
  10. durante alguns dias, ecoará, teimosamente, em seus ouvidos, o impossível canto de seu bico fechado. 

 

 

 

 

 

Pirulito e Picolé1

 

porque gostariam de retomar seus diálogos

com a mesma alegria e sinceridade de outros tempos

animaram-se em fazê-lo antes que o tempo é findo

porém

como estavam embotados por tantas espessuras

de segredos não contados

de saudades não traduzidas

de palavras desgastadas

e de outras

embora novas

nunca pronunciadas

não se viram mais à vontade

para papos francos

diante de seus mesmos olhares

já judiciosos

e previsíveis demais

encontraram uma possível solução

ao intuírem que

ao olhar em seus próprios olhos

sem a feição já tão observada

e

portanto

quase invisível

e talvez

recoberta por outra aparência

e só pelo fato desta ser diversa

abriria brechas para a novidade

poderiam

então

confessar um ao outro

neste caso na terceira pessoa

aquilo que aqueles velhos e antigos personagens

já não suportavam mais esconder de si mesmos

o curioso é que

ao vasculharem a casa toda

em busca de algum disfarce que os tornasse mutuamente irreconhecíveis

encontraram apenas

debaixo de longas gargalhadas

as máscaras de dois palhaços de uma distante e irrecuperável infância

o Pirulito e o Picolé

assim

travestidos de risíveis aparências

reconduziram suas vidas

de uma possível tragédia

a uma cômica existência.

 

 

1Leia, antes ou depois, o artigo A Perturbadora Obra de Gillian Wearing, de Leila Zotz.

 

 

 

 

 

 

Sartre e Simone na Poesia Repentina ou

A Virtude dos Orangotangos

 

SARTRE: Simone, donde tanto gosto pelo nebuloso, já que o equidistante não alcançamos com a ponta dos dedos,

já que na razão hão há lugar para o medo,

já que a solução não está no primeiro parágrafo do livro dos segredos?

 

SIMONE: Não, Sartre, não há motivo para tal dúvida, posto que o que te perturba é a certeza,

pois a tua miopia é a tua própria cegueira,

já que não tens o olhar que direciona o aonde ir,

já que o quer tu vês é tudo aquilo que mais ninguém quer olhar,

por onde ninguém mais quer caminhar.

 

SARTRE: Mas, Simone, se olho e já não vejo,

como será me encaminhar não mais para o teus ouvidos, mas para a tua boca e nela o beijo?

Como dizer-te algo mais se as minhas palavras mutaram em arremedo

daquilo que outrora eu dizia e que além do espanto causava medo,

aquilo que atentava o demônio e aos anjos causavam ânsias de saltar do céu que às vezes é degredo?

 

SIMONE: Faz-me rir, meu doce e problemático filósofo.

A tua tristeza mesmo forçada ainda teima em ser bela.

Embora Carolina já nem esteja mais te esperando na janela,

embora o teu lamento esteja um tanto fora de hora,

embora para a tua senilidade

haja apenas meu colo como esteira para a tua saudade,

não tarde, pois quem sabe faz a hora.

 

SARTRE: Ó Simone,

Simone de tantos porres,

Simone de tantos goles,

Simone de tantos gozos,

o que tu dizes só aumenta o meu desconsolo,

pois não me interessa mais teu colo ossudo,

nem teus lábios moles, antes carnudos,

nem teus seios mirrados,

nem teu ventre fartamente usado.

De ti só quero a fala, minha cara,

a tua fala que flecha o meu anseio juvenil,

a tua fala que me arrebata o peito vadio,

a tua fala que cala a minha fala.

 

SIMONE: Se é minha fala que a ti interessa,

antes que eu prossiga nela, posso fazer uma breve menção

ao teu falo, então?

Não, não falo-ei, pois ele agora dorme em falácias fáceis faroleiras,

aliás, deve estar machucado de poeira,

pois quase não fala não.

Concluída essa breve intervenção,

fico feliz que tu te felicites com a minha fala, pois mais que isso falo não.

 

SARTRE: Ah, Simone, quanta maldade a sua.

Pois te esqueces que fui eu que fiz a mim mesmo, depois de mim, tu te assomaste a esmo na tua própria bravura.

Se agora resta de mim esse pensador caolho, não podes auferir a ti mesmo essa derrocada, porque, tu foste apenas uma e talvez a derradeira,

de todas as mulheres a que me dei e que me deram razão à carreira.

 

SIMONE: É hora de dar cabo a esse whisky,

pois nosso papo já está virando disse-me-disse.

Para concluir essa trajetória que toma rumos de tango,

fale-me acerca da virtude dos orangotangos.

 

SARTRE: Sobre tal virtude, pouco tenho a declarar.

Parece-me que eles continuam a dar vazão à sua sanha espetacular:

bater, beijar, currar, beliscar, morder, lamber, acometer,

mas tudo isso sem se submeter ao amar.

 

SIMONE: Putz!

 

 

 
 

 

Fotografia

 

 

Ao apreciar a fotografia que lhe pesava nas mãos, pensava nas contradições que um instantâneo eternizador poderia suscitar. Ficava impressionado com a capacidade de uma imagem guardar para sempre um semblante numa certa idade em que o passado é demasiado recente, o presente é para sempre e o futuro é o tudo por se fazer, em contraponto com o olhar do observador, que é aquele que se vê jovem e, com um sorriso envergonhado, não acredita que tenha tido aquela aparência, agora ridícula, um dia, posto que, estar vivo para dar uma breve olhadela para o passado e logo livrar-se dele, devolvendo a fotografia para a gaveta, sempre é a melhor saída. Pensava também que isso nem sempre se dá dessa maneira. Há casos em que o retrato reencontrado é o melhor que já aconteceu na vida de uma pessoa, pois, a vida presente pode ter se transformado num simples arremedo daquilo tudo que aquele sorriso que o tempo não envelheceu revela. Mas aquela fotografia em suas mãos tinha o peso insuportável das lembranças que as mãos não conseguiam reter, pois, entre os dedos, deixava escorrer implacável a areia da ampulheta que a pouco se quebrara. A imagem dele e dela com um largo sorriso se dirigia para uma testemunha invisível que assentia com tudo que ocorria com a complacência e a intimidade de um ótimo cúmplice. Os sorrisos e as certezas daqueles possuidores das sem-razão-para-amar característico dos apaixonados que, incontestavelmente, têm toda a razão do mundo e, por isso nunca erram, porque simplesmente amam a esmo. Esse pensamento fez com que ele desatasse um furtivo riso. Aquele riso solitário e repentino de quem se vê tomado por aprazíveis lembranças. E continuava a rir olhando para os espaços vazios de céu a céu. Parou de rir pensativo. Ainda com os últimos soluços de riso, olhou para suas mãos e reparou num início de desespero que não havia foto nenhuma entre elas. Suas mãos estavam vazias. O que estava em estado de plenitude era seu ser, inundado pelas lembranças que a fotografia ausente evocava. Buscou saber onde se localizaria esse arsenal de recordações. Estaria no cérebro, já que nele repousa, em fortes e profundos armários, a casa da memória? Estaria no coração, já que é a residência dos sentimentos que o relembramento agita e impele? Nesse instante como se o corpo respondesse, sentiu que o seu ventre vibrou com suavidade. Aí ele teve a certeza em que parte de si aquela foto imaginária havia se configurado: no seu ventre: o ventre que gera. O ventre gerava as imagens dele e dela, dele com ela, e gerava também, além dele ao lado dela e dele dentro dela, a imagem dos sete filhinhos que eles um dia sonharam somar-se à sua indesculpável solidão a dois.

 

 
 
 
(imagens ©silvina helbling | devon)
 
 
 
 
 
 
 
 
Roberto Amaral é Doutor em Educação, com a tese "A teofania em Grande Sertão: Veredas — por uma pedagogia dos símbolos"; Mestre em Educação Brasileira, com a dissertação "A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur — por uma ampliação do conceito de ideologia em educação", e graduado em Pedagogia, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás - UFG. É professor na Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS, onde atualmente é o Pró-Reitor de Pesquisa e Coordenador Operacional do Minter em Educação UnB/UNITINS. É um dos coordenadores dos Projetos de Eventos "Interlúdio Literário" e "Cinema e Literatura". É líder do Grupo de Pesquisa "Literatura, Arte e Mídia". Autor de Paul Ricoeur e as faces da ideologia, Editora da UFG.
 
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