Tolstoï era gênio. Em poucas palavras ele expressou uma concepção humanista de arte na qual é possível enxertar dentro do multifacetado universo humano cada particularidade de um povo, sem violentar seu modus vivendi, sem depreciar um saber local diante de qualquer outro dominante, visto como supostamente superior. Tolstoï, em sua Rússia, descreveu os dramas, as dores, as alegrias e as esperanças de seu tempo e de sua grande vila; com isto conseguiu pintar obras-primas indeléveis que até hoje fascinam e inspiram pessoas em Burkina Farso, no Brasil, ou nas Ilhas Maldivas. Se ele houvesse simplesmente seguido um modismo literário qualquer e perseguisse, a todo custo, construir modelos prontos a partir dos pólos culturais da época, não seria até hoje amado, compreendido, irmanado aos homens de todas as aldeias e línguas. Não teria conseguido ser universal ou eterno. Foi através da particularidade, de entrar no pitoresco dos homens de sua terra que ele conseguiu se tornar global. Nós também somos de uma grande, imensa aldeia chamada Brasil, tão grande e tão diversa quanto a Rússia de Tolstoï. Aldeia de ritmos e falares diversos (embora de uma só língua). Somos membros desta tribo brasileira irmanada a todas as outras co-irmãs da América Nuestra, América Latina. Árvores de raízes semelhantes, com pequenas peculiaridades que nos diferenciam, mas que se alimentam do mesmo húmus desta terra, América de imensa beleza e dor, de passado único com um tesouro cultural comum a todos os seus povos. Somos seres humanos biodiversos. Para nós tornarmos homens precisamos ter nascido e crescido sobre a herança cultural de algum lugar, falando uma determinada língua que já nós é transmitida prenhe de tradições dos povos que a herdaram, modificaram, fecundaram. E não só o idioma é um regalo, um patrimônio comum, há a música, os ritos, as crenças coletivas. Para nós tornamos homens de forma harmônica temos de ter uma raiz fortemente fincada neste solo ancestral comum. E que tesouro imenso é este: a aldeia Brasílis, fecunda de sul a norte de um povo rico de cultura oral, musical, criativo, solidário e esperançoso. Uma herança, todavia depreciada por seus próprios filhos. Vivemos a era da globalização facistizante, onde se tenta construir um falso universal através da anulação, da destruição das diferenças, das culturas dos outros povos que não o que domina o mundo. Uma Ditadura da Imagem Única a criar um modo de pensar pasteurizado e patético, onde se anulem várias nuances da humanidade. O grande "prêmio" nesta perda de raiz e identidade seria de, no fim do processo, vestidos com gigantescas camisas dos jogadores de basquete da NBA, virarmos suburbanos de Miami ou do Brooklin. Neste processo de americanização do mundo, de hamburgueirização e roqueirização (popificação) da juventude, há que resistirmos! Recriar a diversidade abrindo o baú de variedades culturais de cada povo. Ressaltando sua qualidade e suas obras-primas. Mostrar ao mundo, por exemplo, como da dor da escravidão pôde nascer a sensualidade do samba, ou como das agruras da seca, como por milagre, surgiu o pintor primitivista genial do forró, Luís Gonzaga, ou o vate do drama nordestino, Patativa do Assaré. Ressaltar nosso ser diferente, nem melhor, nem pior, mas único, e maravilhoso por conta disto, desta nossa diversidade tão grande dentro do universo brasileiro e latino-americano. Entender que antes e melhor que Madona e Michael Jackson, vêm Violeta Parra, Mercedes Sosa e Victor Jarra. Que nossas tribos latinas têm a matiz comum do sofrimento e da exploração. Que nossos cantares e línguas se irmanam, posto que nosso destino foi e é traçado a ferro e fogo desde o início para que nos separemos, para que os irmãos fiquem a se olhar com temor e ódio. E que só poderemos nos reconstruir como povos na tarefa comum de construir uma única nação multifacetada: a nação latino-americana, máximo sonho de Bolívar. Como diz a música de Armando Tejada Gomes: "Todas as mãos, todas. João Cabral de Melo Neto ensinou-nos que um galo sozinho não constrói uma manhã. Mas que seu canto acorda e envolve outros galos, que, num coral gigantesco, tecem o manto da aurora. Assim é nossa missão, cantar nossa aldeia, grande como é o Brasil, grande como é a América Nuestra, em nossa língua, em nosso ritmo. Renegar o amo que há dentro de nós, assim conseguir libertar de dentro de nossa alma nosso complexo de inferioridade como povo, romper as amarras da escravidão a uma cultura artificial e alheia. Pintar nossa aldeia é libertá-la, eivá-la das dores e sofrimentos advindos da dominação que ela sofre, arquitetá-la como construção autêntica e nativamente bela. Só assim, ao recuperarmos a melodia do nosso canto único e próprio, conquistaremos nosso espaço no concerto universal. |