Código de silêncio

 

 

Suspeitei desde sempre que o velho português não seria capaz de abandonar o carro à beira de uma via expressa, atravessá-la driblando buzinações, pulando sobre guardrails, chegar a pé até o aeroporto sem passagem comprada, comprar uma para o próximo vôo, não dando a mínima para onde, e partir deixando objetos, números e uma secretária singular, quarenta anos mais jovem. Que imaginação!

Sinmar serviu Áureo Figo durante 25 anos, dia a dia. As primeiras rotinas dela tinham uma seqüência premeditada. Às oito da manhã abria a porta do apartamento, preparava o primeiro café, consultava os bilhetes de instruções presos com alfinetes no quadro de cortiça, dispunha a mesa (não podia se esquecer de passar antes na confeitaria e trazer "dois croissants crocantes") e tomava providências domésticas diversas.

O ritual matinal se completava com a imagem de Áureo em pé na cozinha, enfiado em pantufas e pijamas, com a fisionomia aparvalhada de quem acordou de um pulo e ainda não sabe onde está exatamente. A esta hora, ele costumava queixar-se de algum equívoco impossível de Sinmar, tão dedicada e leal, ter cometido. Ela não podia ouvi-lo resmungar, claro, mas sentia resvalarem nas paredes as ondas sonoras do rouco bom dia de seu "homem mais-que-perfeito".

O cotidiano dos dois podia ser resumido assim: "óculos enfiados em silêncios". Os óculos permitiam a ela visualizar além dos gestos e das formas; e o silêncio era o que assinalava a presença de Áureo em seu apartamento imenso, mobiliado com bastante reserva. Os dois habitaram um universo no qual era conveniente desaparecer. Bastava permitirem-se o desencontro para que um jamais trombasse com o outro. Temperamentos fugidios. Juntos e sós, enfim.

Áureo era carrancudo, não fazia no passo adequado o que precisava ser feito. E foi dando amplos poderes para Sinmar. Delegou-lhe até tarefas íntimas, como manipular suas dentaduras uma vez por semana com um químico branqueador. Ela testemunhou a decadência do sorumbático cronista nascido em Lisboa, enquanto estudava, de soslaio, suas perfeições tortuosas e suas integridades imperfeitas.

Áureo detestava datas comemorativas, o que não significa que repudiasse as repetições radicalmente. (Encontrei em seus guardados extensas coleções de chaveiros, bonés, selos postais e calendários antigos de mulheres de calcinhas e seios evidentes). O maior defeito do portuga, ao que parece, era desviar-se do essencial como ninguém: levava comédias a sério, dramas na brincadeira, tomava os próprios desajeitos como incidentes triviais e os thrillers eletrizantes como sessões de ioga.

Era o tipo de autista que, por incrível que pareça, deplora o desperdício; perturbava Sinmar com uma ladainha sem fim sobre reutilização de sacolas plásticas de supermercados. Chegou a criar planilhas para facilitar os ajustes das despesas com as elevações culminantes de preços. Ela, por sua vez, dominou estatísticas complexas a fim de compensar suas limitações de sentidos. Em suma, reciclavam tudo, menos o excêntrico relacionamento que mantinham.

O falecido não era o misógino que Sinmar pintou. (Sabem, a gente não descobre que temos uma vida singular. Na verdade, a gente descobre que outras pessoas tiveram — ou têm — uma vida muito diferente da nossa. É o único modo de comprovarmos a unidade cósmica que representamos. Um arquiteto pode construir a própria casa, um escritor pode fazer a própria psicanálise, surdos podem falar, alunos ensinam, espertinhos dançam, criminosos toleram, amantes falham, perdedores vencem, egocêntricos comovem-se.)

Mas só Sinmar seria capaz de imitar a rubrica aloprada de Áureo Figo. E assim ela o manteve vivo em forma de números, códigos e senhas por vinte meses. Respondeu correspondências, e-mails e telefonemas com uma linguagem que — impressionante! — era a dele. Lavou, passou, cozinhou e reportou-se aos interessados no sumiço do velho como se ele tivesse apenas resolvido dar uma esticada em suas férias eternas.

Enganamo-nos todos. Efigênio, gerente da padaria próxima, onde Sinmar comprava os tais croissants crocantes, fanático leitor de crônicas, tinha Áureo Figo como um dos maiores jornalistas em atividade. A coluna dominical "Áureos tempos", no Diário de Notícias, era então um sucesso. "O estilo dele parecia inimitável", disse-me Efigênio, estupefato, em uma de nossas esclarecedoras conversas sobre o que um sujeito pode se tornar depois de morto.

Submeti um conjunto considerável de textos de Áureo Figo a um especialista para que os analisasse minuciosamente, do ponto de vista do estilo e dos dados biográficos que havíamos remontado. Encontramos uma crônica que começava com a seguinte frase: "Ninguém perde dinheiro ou poder subestimando a inteligência das pessoas". O português era magnífico colecionador de frases provocativas, embora esta tenha sido escrita por ninguém menos que... Sinmar.

Então lemos e relemos textos que acreditávamos ser de autoria do portuga. Com uma lupa mental levantamos seus blefes intelectuais, repetições, morais entranhadas, citações sem crédito, lembranças truncadas, saudosismos baratos e ficcionismos pseudoliterários. Escavamos pegadas de sua trajetória errática no mundo e as confrontamos com suas crônicas interrogantes. Confirmaram-se minhas suspeitas. (Acredito, sinceramente, sem pretensão, que em breve os investigadores policiais substituirão os cientistas, os psicólogos e os jornalistas na tarefa inglória de desvendar a natureza humana.)

Único da equipe a dominar a linguagem dos sinais, visitei Sinmar na cela do 8º Distrito anteontem. Ela voltou a jurar que não consumiu com o corpo e com a mente de sua "paixão mais-que-secreta". Para ela, as evidências que arquivamos não passam de artefatos poéticos. Incrível. Uma criatura meiga, terrivelmente silenciosa e míope condicionar seu futuro ao pesadelo diário de ficar imaginando os movimentos labiais de uma multidão furiosa disposta a linchá-la.

Ah, Sinmar, senti engulhos ao saber que você quis abocanhar sozinha a grana do portuga. Por que descumpriu nossos acordos tácitos? Por que violou nossos códigos de silêncio? Por que sacar da conta do velho toda a generosa confiança que depositei em você? E esse absurdo de querer alterar o testamento antes do combinado! Você era uma surda-muda acima de qualquer suspeita. Afobada, isto sim, foste muito afobada, e ferraste com teu futuro.

A primeira medida que tomamos: dar um jeito de fazer o corpo de Áureo Figo reaparecer nessa vastidão de lacunas que é o mundo. Agora, Sinmar, não temos outra alternativa senão indiciá-la por estelionato, falsidade ideológica e homicídio. Você pode continuar se achando imaculada. Não a culpo. Há um medonho contingente de intocáveis sobre a Terra, e outro de celebridades e subcelebridades cujas vidas, cá entre nós, jamais deviam ser invejadas. Ou o bolo inteiro é nosso ou não é um bolo.

 

 
 
 
 
 
 
 

 

         

Sonâmbulo duplicado

 

 

O vento perturbou o sossego das folhagens, como um despertador perturba qualquer homem que se deite pelo menos meio-bêbado. Minhas pálpebras também se impacientaram. Ergui-me tão preguiçosamente que custei a perceber a estranheza de certas coisas. Meu quarto: transformara-se em jardim. O quê?

O piso de tábuas corridas fora substituído por grama verdinha e úmida; grilos cor de musgo saltavam adiante, trinando loucamente; onde ficava o guarda-roupa implantou-se um canteiro de acácias cercado de pequenas ripas pintadas de branco-neve, alinhadas geometricamente.

A mesa e a estante de livros, mais à direita, viraram pé de jacarandá. Impossível ver a copa da árvore, porque a escuridão engolira os galhos, enredando uma inexplicável fusão. Saúvas agora passeiam pelo casco frondoso carregando cacos de folhas de laranjeira, numa operação ruidosa.

Respirei fundo, esfreguei os olhos. Pousei as duas palmas sobre um espaldar. Estiquei o corpo. Alinhei o dorso. Ouvi estalidos de vértebras aquém da algazarra saltitante dos grilos. Com as digitais, senti a superfície rígida e envelhecida. Arranhões, protuberâncias e nomes foram gravados ali com ponta metálica.

Vi a mim mesmo em cima de um banco de praça, desses de madeira. A estrutura do banco era uma forja grosseira. Adquiriu uma coloração de abóbora passada. Apalpei o banco e impus força perpendicular, checando se de fato estava firme. A peça pública range como dobradiça deslubrificada, mas suporta a turbulência momentânea.

De pé, sinto nas solas o frescor do suor noturno. A luz que infiltra pelos galhos do jacarandá me serve de bússola. O abajur me repudia com um espetão. Sugo a bolha de hemoglobina na ponta do dedo. Caules de rosas brancas, repleto de espinhos pontiagudos, substituíram o criado-mudo... Cacete!

Pétalas sedosas cobrem parte do tapete gramado. Misturados a elas, arabescos à mão. Ambos, papéis e desenhos, são idênticos aos que a minha ex-mulher usava nos cartões de natal artesanais fabricados para pessoas jurídicas.

Me aproximo da cerca de ripas e observo o novo cenário. É como se eu estivesse podendo visualizar o amanhã fundido ao ontem. Algo assim, desse jeito. Se eu próprio não soube o que imaginar, imaginem nós, narradores, que apenas somos usados para nos construir a nós mesmos de maneira fugidia?

Na moldura da janela da casa vizinha um homem está sentado à mesa. A luz ao redor dele insinua mais do que ilumina. Ele dirige ao tronco de jacarandá um olhar deserto, com a imprecisão inevitável de quem observa, desolado, o deserto. Alguma folha caída? Alguma saúva, pétalas ou caules espinhentos?

Não, mas tudo tem um apelo muito familiar. E ainda por cima zunem carros velozes cujas luzes em instantes inflam as pupilas. Sinto-me dentro de cada feixe, de cada onda de luz, até que consigo encarar o supra-existente. Sobre a mesa de meu clone repousa uma garrafa de conhaque Napoleon com um copo de vidro enfiado no gargalo de boca para baixo.

Só de roçar o pé na grama, titubeante, já consigo diferenciar das pétalas as bolinhas de papel-manteiga (cartões com arabescos embolados, na verdade). É cada vez mais intensa a luz que incide no ambiente do meu clone, que acaba de acender um cigarro.

Se eu e o narrador deste conto-sonho fôssemos a mesma pessoa — nunca somos, na verdade, bem sei —, acho que primeiro tentaríamos decifrar a fisionomia um do outro e depois talvez investigássemos o que aconteceu com meu quarto, minha cama, meu sono, a minha vida de idoso ultimamente tão apartada dos velhos prazeres.

O meu clone levanta-se, abre com destreza a garrafa de Napoleon, enche o copo, deixa o maldito líquido espesso acomodar-se no fundo. Nada de sulcos ou arrepios. Grilos insistentes beliscam meus pés; formigas demarcam um semicírculo ao meu redor. O clone finda o trago de Napoleon. Nas lentes de meu binóculo imaginário surge uma segunda garrafa. Tremem as mãos do clone.

No chão, um pedaço de cartolina. De um lado, letras sublinhadas com salientador amarelo como ondas sutis de mar calmo; do outro, uma foto de Ana, minha Ana. Ana? O papel-manteiga usado nos cartões de Natal foi o único pertence que ela não levara desde que partiu no dia exato de meus setenta anos desvividos.

O gradualmente reconhecido supra-homem abre a gaveta do criado-mudo, onde, em vez de caules espinhentos, repousa uma pistola Rugger, semi-automática. Apanha-a. Encaixa o pente de balas, bafora no cano cromado, lustra-o com a flanela flácida do pijama xadrez. Deixa a Rugger sobre o mesa, em repouso. E caminha, a garrafa em uma mão, o copo na outra.

Ademais, a noite fulgura. Estrelas reais cravejam o céu como em qualquer céu de qualquer lugar, real ou imaginário. Álvaro inala aromas doces de flores e matos. A relva exala-os; o ar concentra-os; a atmosfera devora-os. O meu clone se acomoda na cadeira, comtemplando a Rugger com seu olhar desértico. Em que pensa?

Álvaro (ele) começa a desabrochar algumas bolinhas de papel-manteiga, enquanto a segunda garrafa de Napoleon já baixou ao meio. Ele/eu pego(a) a arma com as mãos trêmulas e aponta-a para si/mim. Não, antes, enxugou os olhos com um lenço de papel extraído do bolso do pijama.

Decorre uma certa desorientação. Primeiro ando como homem comum, depois alargo as passadas, e então corro rumo ao meu clone, esmagando pelo caminho grilos e formigas inocentes, mal conseguindo respirar.

E não é que encontro vazia a casa vizinha! Mas... Mas... e os Napoleons, a Rugger, os copos, os objetos, a vida? Nada. Não vejo nada. Tudo dormia, exceto, ao que parece, algumas bolinhas de papel-manteiga, que se moviam atônitas pelo chão, conformes aos  caprichos do vento, e este também deu vida a um cartão que a artista gráfica Ana, minha Ana, ah, ela o assinara.

Enfio a cabeça para fora da janela da casa do clone. O quê? O tipo estranho que bebia Napoleon está agora em pé próximo à cerca de ripas pintadas de branco-neve e alinhadas. Está onde eu estivera minutos antes. Como pôde? Como? Movera-se como um fantasma. Imprimiu-se um sorriso pálido de pavor precedente em seu/meu rosto.

Limpei as mãos suadas em meu pijama de flanela xadrez, enxuguei a testa com a manga e passei a enxergar minhas próprias pegadas no chão de madeira encerada. Curioso, as pegadas estão gravadas em dois sentidos, no sentido de quem entra e no de quem sai da casa vizinha.

O sujeito-eu aperta o cabo da Rugger entre as duas mãos. Apontada de novo?  Sim, e desta vez para mim, e a milímetros de meu nariz. Amedrontado, sigo as pegadas em sentido contrário e me escondo atrás do jacarandá. Lanço novo olhar esquivo sobre a janela de casa, e lá está ele/eu com a mira da Rugger boca adentro, ferindo nosso céu da boca...

Mas dois olhos meus (somente meus) se acendem na escuridão espectral. Fiquei ainda algum tempo na cama, vendo sobre a mesa algumas folhas de papel-manteiga com arabescos desenhados por Ana pouco antes de partir. Lá fora, a rua era silêncio só; a mesma noite, aos poucos, ia embora. A noite também ia embora: só.

Recostei a cabeça no travesseiro. Estiquei o braço. Apalpei o chão. Certifiquei-me. Toc-toc: madeira, não grama. Dormir não tem sido fácil. Abaixo do estalão humano, entretenho-me duplicando imagens e auto-imagens enquanto cochilo perturbado pela ausência de Ana. Algo parecido, quem sabe, com o trabalho do autobiógrafo, que busca a posteriori uma impossível coerência entre a vida vivida e a vida sonhada.

 

 

 

Duas digressões

 

 

"No primeiro dos nossos melhores dias, amanhecemos juntos em geografias e fusos-horários diferentes. Trazíamos nos ombros as culpas e as manias dos casamentos em curso. Sonos frágeis, enxergáramos a madrugada anterior várias vezes por uma greta logo depois do amanhecer. E planos adiados há séculos: café da manhã no Richard's talvez com brioches e geléias de cores exóticas; toalha para deitarmos na grama orvalhada do Ibirapuera enquanto nossos chefes se descabelavam de raiva; um livro sobre a sabedoria dos índios norte-americanos — As Cartas do Caminho Sagrado. Claro, levamos as cartas também; e versos de Carpinejar salteados; e nossas melhores roupas para uma manhã nevoenta, turva, nem fria nem quente. Fáceis de tirar, se for o caso. Quarta-feira? Sim. Outono. Os sonhos assaltaram nossa realidade às nove em ponto. Nossos beijos simplesmente não tinham um fim, tampouco um começo". (Trecho de minha digressão sobre o florescer interior.)

"Mas entro em casa sem grandes vontades após entrevistas de emprego inúteis. Isadora estava na cozinha, por acaso. Se fosse anos antes, ela viria até a saleta e me perguntaria, ansiosa: E então? E então, nada. Mas ela não me pergunta mais coisa alguma. Entre me olhar no espelho e enfrentar a dissolução, puxo a cadeira e retomo a tal carta que até hoje não consegui terminar. Imperioso escrevê-la antes que Isadora a escreva. Ah, um brinde às melhores últimas horas de nossas vidas! As frustrações e o desemprego me deixaram assim: meio ácido. Até porque era tarde demais. Os apontamentos ficariam guardados na gaveta tanto tempo que o clipe deixaria uma feia mancha ferruginosa na primeira e na última página. Por que não nos falamos? Agora que a perdi definitivamente, sinto-me seguro de que, naquela manhã de quarta-feira, no Ibirapuera, nossos beijos emendados continham sim um fim". (Trecho de digressão sobre o adeus — neste caso, parte importante, infelizmente, da digressão sobre o florescer interior.)

 

 
 
 
 
(imagens©m korb)
 
 
 
 
 
 
 
Sergio Vilas Boas (Lavras-MG, 18/11/1965). "Se me perguntam de onde sou, digo que sou de Belo Horizonte. Traição? Renúncia? Nada disso. Simplesmente me considero de Belo Horizonte. Foi pra lá que meus pais se mudaram quando eu tinha dois meses de vida. Enfim, passei trinta anos em BH, dois em Nova York e desde 1998, moro em São Paulo. No fim das contas, irei pra algum lugar, como todo mundo". Jornalista, escritor e professor. Editor executivo do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real; vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Criador e coordenador, para a Summus Editorial, da coleção Formação & Informação, que aborda macroconhecimentos fundamentais sobre temas que têm merecido (ou deveriam merecer) cobertura jornalística. Autor de Os estrangeiros do trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros.