A hipótese da diversidade
Diferentemente dos
momentos que a precederam, quando as questões poéticas e políticas
estavam bem definidas para seus atores, a poesia posterior ao período
militar no Brasil mantém-se sob uma luz difusa. O fenômeno da ausência
de "projeto coletivo", aventado por alguns, é uma hipótese até certo
ponto pertinente para explicar o que se passa hoje, mas não leva em
consideração as motivações específicas desse estado de coisas. Tentar
compreender essas movimentações talvez nos indique a direção de uma
outra forma de compreender o contemporâneo.
Ao primeiro olhar, de
fato, a poesia brasileira publicada a partir dos anos 80 apresenta,
antes de mais nada, algumas marcas da ausência de linhas de força
mestras. Não seria incorreto concluir que ela tem o aspecto de um
movimento de retração ou de refluxo com relação às tensões das décadas
anteriores. A publicação em livro de obras produzidas desde os anos 70
tornou-se um fenômeno corrente, sobretudo para os poetas da geração da
poesia marginal, associada ao etos do cotidiano à maneira de Cacaso,
Chacal ou Francisco Alvim. Esses textos, que circulavam geralmente em
suportes frágeis, fora do circuito tradicional, aproveitam-se da
retomada do mercado editorial e da abertura política, sendo reunidos em
volumes publicados às vezes por grandes editoras. Neste sentido, é o
lugar da fala que se modifica, exatamente no momento em que ela consegue
fixar-se publicamente; quando a poesia passa para o interior da
formalidade do processo cultural, ela começa a abandonar as referências
de resistência que a definiam.
Ao mesmo tempo, em
movimento paralelo, a época favorece também a passagem ao primeiro plano
de poetas já em atividade, mas pouco conhecidos até então, cujas
ligações com as referências tradicionais da poesia brasileira não eram
muito claras. Iniciados anteriormente, alguns projetos poéticos começam
a ser conhecidos por um público maior, como os da escrita reflexiva e
atormentada de Orides Fontela e da anti-retórica visceral de Armando
Freitas Filho. Ao movimento de abandono das posições politicamente
radicais, corresponde o interesse pela combinação particular de matérias
poéticas contrastantes. É o caso, claramente, da "gramática" natural em
Manoel de Barros ("Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto",
O livro das ignorãças, 1994); da mística do feminino em Adélia
Prado ("Há mulheres que dizem: / meu marido, se quiser pescar, pesque, /
mas que limpe os peixes. / Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
/ ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. (...) Coisas prateadas
espocam: / somos noivo e noiva.", Terra de Santa Cruz, 1981);
da modéstia irônica em José Paulo Paes ("Pernas / para que vos
quero ? / (..) Se já não pretendo / ir a parte alguma. /
Pernas ? / Basta uma.", Prosas seguidas de odes mínimas,
1992); ou ainda da metafísica erótica em Hilda Hilst ("Se te pareço
noturna e imperfeita / Olha-me de novo. Porque esta noite / Olhei-me a
mim, como se tu me olhasses. / (...) Olha-me de novo. Com menos altivez.
/ E mais atento." Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão,
2001).
Evidentemente, a suposta
"retração" das questões poético-políticas coletivas não resulta
necessariamente em um empobrecimento da poesia. Mais particularmente, é
menos exato dizer que a poesia brasileira perdeu alguma
coisa — formulação que diz respeito muito mais a um julgamento de
valor do que a uma proposta analítica — do que dizer que ela se
tornou outra coisa, tomando sentido específico em um novo momento
histórico. Ao que me consta, seria possível dizer que assistimos hoje a
um deslocamento dos critérios pelos quais um poeta pode ser reconhecido
como fazendo parte de uma série literária, de sua "tradição". Alguma
coisa está em processo de transformação e demanda a ser compreendida,
antes mesmo que se possa decidir o que lhe falta. São talvez os próprios
valores do modernismo brasileiro (nacionalismo, humanismo utópico,
relação com a "modernização") que se abalam, que não são suficientes
mais para suportar o sentido do mundo que se abre.
Ora, se alguns críticos
preferem apontar as limitações culturais e ideológicas da poesia
contemporânea, outros diagnosticam um salto no que diz respeito à
qualidade média da poesia no Brasil; nunca se teria visto um número tão
expressivo de bons poetas. Acreditando nesse julgamento,
estaríamos a ponto de assistir a uma transformação estrutural da criação
poética que, no Brasil, tratando-se de uma manifestação manifestamente
erudita (como é o caso do modelo europeu do gênero poético), sempre
esteve na dependência de empreendimentos pessoais, de um certo
virtuosismo, isto é, do valor de exceção.
As condições culturais
teriam mudado a tal ponto? Nada é menos provável. E, no entanto, alguma
coisa acontece hoje na cultura que não pode mais ser descrita do mesmo
modo que no passado. Desse ponto de vista, a idéia mais ou menos
corrente segundo a qual o conjunto da poesia brasileira carece de
propriedades bem definidas, fazendo a prova da diversidade e da
multiplicidade típicas de uma "presentidade" geral, esquema que encontra
eco na compreensão que alguns poetas têm da situação atual, parece se
estabelecer como confissão da falta de recursos diante daquilo que deve
ser compreendido.
É preciso lembrar que a
última polêmica significativa do século XX data do início de 1985.
Trata-se talvez do último suspiro do cisma experiência versus
experimentação na poesia brasileira. A polêmica instaurou-se em
torno do poema visual de Augusto de Campos, "Pós-tudo", escrito em
letras maiúsculas brancas sobre um fundo negro, e que pode ser lido
linearmente como: "quis / mudar tudo / mudei tudo / agora pós tudo /
extudo / mudo".
É a época das rupturas e
dos projetos coletivos que o poeta quer encerrar, aparentemente, embora
de um modo ambivalente pois, com o uso da homonímia no fim do poema
(hesitando entre a mudez e o movimento), ele ensaia mais uma volta no
parafuso da mudança. Alguns meses antes, Haroldo de Campos publica um
artigo anunciando o advento da época da "poesia pós-utópica", a poesia
não mais do presente, e sim da presentidade, fazendo o enterro do
espírito aventureiro da vanguarda, aquele mesmo que os poetas do
concretismo tinham encarnado como ninguém no Brasil. Embora permaneça
discutível quanto ao diagnóstico, essa tentativa de dar conta da poesia
posterior às utopias coletivas não deixa dúvida sobre a disposição de
deixar em aberto a compreensão das questões do contemporâneo em proveito
de uma multiplicidade mais ou menos informe. Em todo caso, o ensaio é
emblemático do esgotamento dos paradigmas de uma época.
Devemos simplesmente
constatar esse esgotamento? Começo por lembrar que os discursos sobre o
estado atual da poesia no Brasil freqüentemente se dividem quanto ao
julgamento sobre o valor daquilo que acontece: ora como liberação da
tradição modernista, ora como decadência dos valores conquistados por
essa tradição. De todo modo, é possível constatar uma concordância
quanto ao fato da ausência interna de perspectiva organizada dos
fenômenos poéticos, como se a dificuldade de pensar seus traços
particulares se tornasse ela mesma estrutura de compreensão. Essa tese
de fundo sobre a ausência de significação própria dos acontecimentos é o
sintoma de um mal-estar teórico que consiste em uma indecisão quanto à
natureza e à situação da poesia contemporânea, tanto mais que essa
indecisão se constitui como um sentimento compartilhado e explica, em
parte, o interesse pelas antologias e pelas resenhas periódicas sobre a
"situação" da poesia.
A esse mal-estar, a meu
ver, corresponde a sensação vivida pelos próprios poetas de estarem
presos em uma espécie de impasse. Se valores tais como "nacionalidade",
"subjetividade", "experimentação", "novo", etc. não são mais totalmente
adequados ao sentido dos projetos dos jovens poetas, estes também não
estão em condições de oferecer respostas gerais. E, no entanto, a cisma
está presente. Tomo emprestados aqui os versos de Carlito Azevedo:
"Ninguém é o / mesmo / depois de um / cataclisma / Menos que /
espasmo, / Mais do que / marasmo, / Fica aquela /
cisma.", Collapsus Linguae, 1992).
O impasse da
modernização
Algo da ordem de um
embaraço marca evidentemente a poesia brasileira das duas últimas
décadas, o que não impede evidentemente que se reconheça no tratamento
desse embaraço (desta "crise", como preferem alguns) uma experiência
digna da crise que funda a poesia da modernidade. Os acontecimentos que
acionam esta cisma poética são certamente heterogêneos e é importante
não diminuir a importância nem dos fatos políticos locais (como a
anistia e o processo de redemocratização), nem dos fatos políticos
mundiais (como a queda do comunismo e, em seguida, a ocidentalização das
relações à qual se dá o nome de "globalização"). Quer seja do ponto de
vista político, quer seja da perspectiva das novas coordenadas
tecnológicas, uma outra situação cultural apresenta-se como horizonte da
poesia e da literatura em geral, cujas conseqüências não são totalmente
mensuráveis. No entanto, como se sabe, as situações instáveis
(historicamente, poeticamente) são lugares onde a poesia costuma
manifestar-se e onde, de todo modo, melhor se manifesta o sentido da sua
ligação com o contemporâneo. Eu me limitarei, aqui, a retomar um dos
dados que está em jogo nesta abertura, mais próximo dos fatos poéticos e
mais próximo dos discursos que abordam a tradição poética
brasileira.
O modo confuso com que
alguns poetas negam o vínculo com a tradição imediatamente anterior é, a
meu ver, um forte indício de que algo está em jogo na relação com a
herança poética. Essa herança não é senão aquela fundada no cisma da
oposição entre a poesia concretista, semiótica, tecnológica, formalista
de um modo geral, e a poesia do cotidiano, a poesia que busca inspiração
na língua e na cultura popular, marginal editorialmente, crítica no que
concerne ao papel conservador da modernização no Brasil. Durante cerca
de 30 anos, por razões próximas à política, mas que não se restringem à
expressão dos fatos políticos, essa divisão e essa necessidade de
escolha foram senão impostas, pelo menos postas como atmosfera dentro da
qual a poesia brasileira respirou. A saída desse esquema rígido não
ocorre, por isso, sem dificuldade. Um jovem poeta muito próximo dos
ideais concretistas de poesia visual, ao mesmo tempo em que reivindicava
o "parentesco", afirmava recentemente em um jornal cotidiano que não
gostaria de "herdar uma discussão que não é (sua)". A formulação é
surpreendente pela espontaneidade do paradoxo, afirmando simultaneamente
a continuidade e a ruptura da herança.
De modo análogo, muitos
poetas da última década passam por cima do passado imediato para
reencontrar seus diálogos poéticos no cânone modernista (Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo
Mendes, etc.). O que acontece quando se ignora ou quando se silencia
toda a geração posterior, extremamente fértil em idéias sobre poesia? Se
os discursos de vanguarda ainda permanecem vigilantes, cá e lá, remoendo
velhos hábitos na busca do "novo", no mesmo momento em que o
conservadorismo neoclássico recolhe prêmios literários reconhecidos como
sérios, pode-se reconhecer na poesia brasileira, nos seus melhores
momentos, algo como uma cisma, uma hesitação desconfiada, uma atenção
preocupada com relação àquilo que se apresenta como referência
traumática ao passado imediato. Comparadas a essa cisma, as antologias e
revistas militantes, ou ainda as "cartas abertas" sobre a poesia (raras,
é preciso dizer), mostram pálida figura.
Até por isso, é importante
recordar o que foi a marca da "pedagogia poética" concretista (teoria
poética, redescoberta de poetas brasileiros, tradução dos poetas
estrangeiros), a partir dos anos 50. Ela marcou tão fortemente um
momento da poesia no Brasil que fez estremecer no seu percurso pilares
vivos da tradição modernista (alguns deles, como Bandeira, Murilo e
Drummond, nem sempre por diversão, escreveram poemas à maneira
concretista). Seu impacto foi perturbador para um grande número de
poetas que começaram a escrever nos anos 60. Ao mesmo tempo, uma
intelectualidade de inspiração marxista, opondo-se à "importação" da
idéia capitalisante da técnica, manteve-se próxima de manifestações
poéticas que compõem um corpo próprio na poesia brasileira dos anos 60 e
70, sobretudo. Ferreira Gullar, por exemplo, que inicialmente havia
participado do grupo concretista, estabeleceu seu projeto de poesia a
partir de uma oposição muito firme ao artificialismo das vanguardas.
Essa guerra poética, nunca exatamente fria, é cheia de sutilezas que não
é pertinente comentar aqui. Basta lembrar que ela se impôs como um
verdadeiro cataclisma no meio do século XX, tendo conseqüências
retroativamente no modo de interpretação dos poetas modernistas pois, se
o modernismo inspirou algumas questões como a relação entre técnica e
cotidiano, entre artifício e simplicidade, por outro lado seu sentido
atual recebeu nitidamente a marca da interpretação posterior do
problema.
Esses tremores de terra na
série poética, com todas as suas implicações estéticas e ideológicas,
instauraram uma dissensão a tal ponto contundente que abriu feridas no
corpus poético, como se daí em diante não fosse mais possível
escrever sem inserir-se em um campo cujas questões já estivessem de
antemão colocadas. Igualmente, e de um modo também dramático, a saída
desse esquema impôs uma tarefa à nova poesia brasileira, a de encontrar
uma voz própria, tarefa ao mesmo tempo banal (na medida em que não se
pode esperar outra coisa de um poeta) e exorbitante (pois é a ela, e
somente a ela, que se pede). Em outros termos, tudo ocorre como se a
poesia, antes de mais nada, devesse explicar-se com o impasse da técnica
para poder começar a falar; como se, para poder existir, a poesia
devesse medir-se com a amplitude das questões que a precederam. É
possível encontrar em muitos poetas uma inquietação quanto a esse
topos. A inflexão que eles dão à questão relacionada à
formalidade (tecnológica, modernizante, poética) torna-se,
consequentemente, um dos traços a partir dos quais se poderia refletir
sobre a passagem da poesia em direção ao devir da sua voz.
O enfrentamento das
ruínas
A geração que se seguiu a
esses tremores de terra, isto é, a dos poetas que publicaram nos anos
80, mantinha-se ainda na sua esteira. Na maior parte dos casos, é
importante reconhecer as filiações ou, antes, a herança que cada poeta
assumia como tarefa de reconsiderar. Reavaliar a herança que a gerou,
atravessá-la no seu próprio elemento, foi justamente uma das marcas
dessa poesia, freqüentemente angustiada pelo paradoxo inerente à tarefa
de se fazer outro dentro do mesmo. Desse ponto de vista, alguns dos mais
interessantes autores da época são aqueles que sentiram o desacordo, a
tensão conflituosa na qual se posicionaram não somente frente à oposição
formalismo/informalidade, mas também à angústia dos projetos que eles
mesmos tinham instaurado como ponto de partida.
Este foi o caso de Ana
Cristina César e Paulo Leminski, cujas poéticas tomaram forma a partir
dos anos 70, mas cujas primeiras coletâneas de grande circulação foram
publicadas no início dos anos 80.
Apesar da curta
trajetória, Ana Cristina César é certamente uma das poetas mais
interessantes da poesia brasileira da época, explorando o caráter
dilacerante da desordem moral e estética da experiência contemporânea.
Encontramos em seus poemas uma tomada de partido muito clara pela
experiência vivida, o que os coloca em paralelo com o universo poético e
as proposições explícitas da poesia marginal:
O tempo fecha.
Sou fiel aos
acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão
presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas
saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço
aqui no campo
declamando aos metros
versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e
portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou
mais severa e ríspida:
agora sou
profissional.
(A
teus pés, 1982)
Entretanto, já no momento
em que é enunciado (pela obsessão do traço autobiográfico), o projeto é
retomado a contrapelo, na contracorrente do antiintelectualismo de
alguns poetas, pela negação da espontaneidade que o especifica na época.
A expressão espontânea merece, aqui, paradoxalmente, o
qualificativo "profissional". Ao mesmo tempo, como dispositivos de
instauração de conflitos, a concentração e a construção são
procedimentos poéticos que compõem não uma lucidez poética apolínea, à
maneira de João Cabral, mas uma manifestação de excesso e de dissonância
em sua coabitação com a lógica do corpo. Tornando-se biografia
("Autobiografia, não. Biografia", diz a poeta), a ligação com a
experiência vivida e cotidiana desloca a posição do sujeito para outro
lugar, que não é simplesmente o do artesanato poético; torna-se o objeto
de uma interrupção que os poemas freqüentemente instauram em
diferentes níveis. O artifício interrompe o fluxo espontâneo da
experiência, do mesmo modo que a materialidade formal do "corpo do
poema" é interrompida pela irrupção do próprio corpo ("olho muito tempo
o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo / e
sentir separado dentre os dentes / um filete de sangue / nas gengivas",
A teus pés, 1982; "Enquanto leio meus seios estão a descoberto.
É difícil concentrar-me ao ver seus bicos (...)", Inéditos e
Dispersos, 1985).
Essa poética da
interrupção torna-se característica marcante de uma passagem tumultuada
por uma concepção do poético fundada sobre a idéia do fluxo biográfico
(no sentido sentimental e na inflexão política) na direção do
desconcerto do poema. A interrupção coloca o projeto em curto-circuito e
indica suas contradições, transformadas em destino da poesia e da
própria poeta.
Por outro lado, mas por
caminhos em que vale a pena entender em paralelo, Paulo Leminski possui
também marcas muito evidentes das forças poéticas em ação. Como poeta e
tradutor, Leminski construiu seu universo literário na proximidade
pessoal e poética com os autores do concretismo. O uso do elemento
visual, a obsessão pelos recursos paronomásticos e fonéticos, as
declarações contra o mimetismo dos partidários da "realidade" (esse
"baixo-astral", segundo um de seus poemas) colocam-no como um dos
principais interessados na escola concretista. E, no entanto, algo
essencial na sua poesia, isto é, que constitui a aventura de sua
singularidade, encontra-se justamente em lugares muito heterogêneos e
mesmo contraditórios. O modo como ele utiliza o visual ou as "charadas"
formais já se mostra ligeiramente deslocado no tocante ao uso
concretista destes elementos. O contato com a cultura da mídia, com o
exotismo oriental (Leminski mostra-se vestido de samurai e escreve
haicais), com a canção popular e a heterogeneidade de registros são as
principais razões das interferências que ele produz na paisagem do
formalismo ortodoxo e da língua erudita concretista. Uma espécie de
hedonismo opõe-se ao ascetismo da estrutura na poesia de Leminski e nos
encaminha para uma compreensão da forma que descarrila muito
freqüentemente em uma crítica da planificação e da ausência do sujeito.
A propósito de Brasília, símbolo da construção planificada para os
poetas concretistas, Leminski diz preferir não a "lei", mas "o erro",
não a disposição das pedras, mas o sangue que corre entre elas; isso se
encontra em um poema cujo título é por si só todo um programa: "Claro
calar sobre uma cidade sem ruínas. (Ruinogramas)", Distraídos
venceremos, 1987). Contra a positividade da visão de poesia
formalista, Leminski introduz freqüentemente uma negatividade, cuja
figura central é a da "degradação" (esvaziamento, diluição, apagamento,
destruição):
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o
charme
(Caprichos
e relaxos, 1983)
Eu arriscaria afirmar que
essa degradação é uma boa figura não somente da poesia de Leminski, mas
também dos valores que a tornaram possível, no momento em que a poesia
brasileira tenta a passagem através dos problemas que são os seus e
todavia não são mais suficientes para defini-la.
Se a degradação dos
valores político-poéticos é uma situação conflituosa vivida de dentro,
intensamente, pela obra de alguns poetas, não é o caso para outros cuja
posição relativa no processo já se colocava de modo ligeiramente
alterado. Pode-se reconhecer, por exemplo, em poetas tão diferentes como
Arnaldo Antunes e Manoel de Barros pontos de contato que indicam o novo
interesse atribuído a aspectos relativamente esquecidos na paisagem
poética e que poderíamos compreender como uma espécie de regressão ou
antes de "retração", não no sentido teleológico do discurso das
vanguardas, mas de recuperação ativa de elementos descartados. O aspecto
lingüístico mais forte dessa retração, a meu ver, corresponde a um
"primitivismo" na esfera do sentido e do estilo.
Arnaldo Antunes, conhecido
do grande público pela bem sucedida carreira pop, começa a
publicar livros de poesia no fim dos anos 80, explorando a visualidade
e, mais tarde, o cruzamento de suportes, a tecnologia das mídias e todo
o arsenal da estética formalista. Entretanto, num olhar mais aproximado,
seus melhores textos têm antes uma dívida para com a poesia objetiva (à
maneira pongiana da "lição das coisas"):
Perfil é um fio. Perfil é
o fim do objeto. O horizonte está deitado. O fim é que está completo.
Perfil é o que está de lado. O horizonte está distante. O fim fica em
frente. Perfil é o que está rente. O horizonte fica adiante. Ali onde o
céu se dobra. A água do mar transborda. O fim é o que não retorna.
Perfil é o que contorna. Perfil é vazio. O fim é o que se transforma.
Enfim é o fim agora. Perfil é o que encosta. O horizonte é uma crosta. A
terra é uma bandeja. Ali onde o mar despeja. Perfil é um seio. O
horizonte está no meio. O fim está perto. A casa acaba no teto. O filho
acaba no neto. O fim é um feto. O horizonte é o fim da terra. Ali onde o
céu encerra. Perfil é um rosto. O sol está posto.
(As coisas,
1992)
Como no caso da
visualidade que, na sua obra, flerta incessantemente com a caligrafia, o
caligrama, as formas orgânicas (elementos considerados como "ingênuos"
do ponto de vista da forma gráfica e funcional do concretismo), a
herança da poesia objetiva marca também uma espécie de recuo no que
concerne à suposta "evolução" da visualidade e da funcionalidade formal
(a nomeação "substantiva" do poema seria um passo em direção ao rigor
construtivo, mas em atraso do ponto de vista da suposta marcha histórica
da poesia em direção à sua disposição icônica). Tudo se passa como se o
poeta desse um passo atrás, em direção a um estado "naïf"
(primitivo, "tribalista"). A palavra não é inocente nem estranha à
iconografia que acompanha os livros e discos de Arnaldo Antunes. A
especialização da linguagem na sua função quase escolar de definição
("Um campo tem terra. E coisas plantadas nela. A terra pode ser chamada
de chão. É tudo que se vê se o campo for um campo de visão." (As coisas)
— marca também um movimento segundo o qual o uso máximo da
tecnologia aplicada ao poema coincide com o mais alto grau de retração
da sintaxe e, portanto, da capacidade de formalização lingüística do
sentido. O primitivo, a infância, a ignorância constituem figuras dessa
regressão pela qual a poesia procura revalorizar o uso das tecnologias
mais avançadas, mas de uma nova forma, pela desdramatização dos jogos de
metalinguagem erudita e programática, pelo afastamento da discussão
sobre o sentido cultural da poesia. Neste movimento, a poesia
tecnológica do contemporâneo parece abrir-se no sentido do abandono do
projeto humanista que era o da poesia precedente, característica da
época das vanguardas.
Na poesia de Manoel de
Barros, o aspecto primitivista do uso intenso de elementos regionais (em
todo caso naturais, mas sobretudo "insignificantes") aparece subordinado
a uma produtiva máquina de sintaxe que produz sentido pelo "delírio".
Discretamente na contracorrente do anti-humanismo contemporâneo, o poeta
reivindica uma "didática da invenção" (e, portanto, uma
transformação ativa do olhar), que se aproxima tanto da prestigiada
estilização da paisagem ou da linguagem regional (João Cabral, Guimarães
Rosa) quanto da alquimia do verbo de Rimbaud ou da metafísica negativa
de Pessoa. Essas referências heterogêneas talvez expliquem a estranha
trajetória desse poeta, nascido em 1916, e que só ficou conhecido por um
público maior após a publicação de uma reunião de poemas em 1990.
Considero-o representativo da poesia contemporânea na medida em
que o conhecimento da sua obra poética só se tornou possível em um
estado de coisas contemporâneo. A imediata repercussão da poesia de
Barros só é imaginável após o declínio dos critérios poéticos dos anos
60 ou 70, em razão dos ecos muito heterogêneos com a tradição, sem
relação precisa com as questões do modernismo brasileiro e os problemas
poéticos da época precedente; só se pode conceber o fenômeno Manoel de
Barros no momento em que o declínio dos antigos critérios de leitura
permite a abertura de projetos aparentemente ex-cêntricos. O poeta pode
então reivindicar como matéria poética não a experiência vivida ou o
espírito de experimentação formal, mas a cumplicidade poética com o
insignificante, com os elementos mais "inúteis", restos da cultura e da
modernidade técnica:
MATÉRIA DE
POESIA
1. Todas as coisas cujos
valores podem ser
disputados no cuspe à
distância
servem para
poesia
O homem que possui um
pente
e uma árvore
serve para
poesia
Terreno de 10X20, sujo de
mato — os que
nele gorjeiam: detritos
semoventes, latas
servem para
poesia
Um chevrolé
gosmento
Coleção de besouros
abstêmios
O bule de Braque sem
boca
são bons para
poesia
As coisas que não levam a
nada
têm grande importância
(...)
(Gramática
expositiva do chão, 1992).
Priorizando as
possibilidades mais relacionadas à imagem do que ao nome (que a
empobrece), mais a infância do que a idade da razão, mais o dicionário
do que os livros eruditos, o poeta sugere uma simplicidade que, não
sendo totalmente insensível às dores do mundo ("As coisas jogadas fora /
têm grande importância / — como um homem jogado fora",
Gramática expositiva do chão), deixa em aberto problemas
importantes, como sua abordagem algo nostálgica da linguagem edênica:
Desinventar objetos. O
pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele
fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que
ainda não tenham idioma.
(O livro das
ignorãças, 1994)
De um modo ou de outro, é
pelo fato de designar a origem como problema que a poesia de Barros
parece aproximar-se dos estados atuais da poesia.
A poesia como
promessa
A superação do impasse sobre
o sentido da modernização no Brasil não se dá sem o reconhecimento
de seus pressupostos poéticos e políticos. Embora não seja razoável
atribuir essa tarefa ao poeta ou à poesia, pode-se conceber que a
poesia seja capaz de atrair nossa atenção para esses problemas e,
ao nos ensinar um certo modo de ler o mundo, seja também capaz de
nos conduzir a uma reflexão sobre as categorias das quais dispomos:
"realidade", "sujeito", "origem", "sentido". Freqüentemente considerada
como expressão ou formalização de certas estruturas que constituem
sua situação (social ou estética), a poesia carrega também uma força
de dramatização da dificuldade do presente que solicita a atribuição
de sentido, mas não o estabelece, isto é, não está exatamente adequada
às estruturas das quais dispomos para pensar o sentido do social ou
do poético. Se a contrariedade do poema perturba o olhar sobre o real,
é porque desafia a expectativa do sentido unívoco e pré-estabelecido.
Consequentemente, ela impõe também o dever de responder àquilo que
falta entender. Falta entender alguma coisa sobre a poesia
contemporânea não porque uma falsa prudência o obriga, quando se trata
do "caráter inacabado" da atualidade, mas porque a poesia dramatiza
uma certa angústia do sentido.
Escolho dois casos em que
essa perturbação diante do sentido é rica em eventuais conseqüências
para a relação entre realidade e poesia, restando saber se neles reside
uma força de deslocamento.
Como Manoel de Barros,
Sebastião Uchoa Leite iniciou sua obra bem antes dos anos 80. De fato,
sua primeira coletânea data de 1959. Entretanto, a reunião de seus
poemas publicados na coleção "Claro enigma" (dirigida por Augusto
Massi), em 1989, como para vários outros poetas da época, é uma
referência importante, a partir da qual algumas das suas principais
figuras foram não somente retomadas, mas igualmente articuladas e
aprofundadas, apesar dos traços julgados como característicos dos anos
60 (textos de inspiração concretista) e 70 (referências à cultura da
mídia). Optando, desde cedo, por uma certa obliqüidade do olhar, que
espreita e insinua, Uchoa Leite rejeita o "exibicionismo" das grandes
afirmações poéticas, o "dogmatismo" em poesia. Nesse sentido, a poesia
não é mais uma arma na guerrilha cultural, mas uma espécie de veneno
enigmático insinuado pela serpente do poema. Não se trata apenas de uma
maneira oblíqua de afirmar, pois ela é colocada diante da
esfinge labiríntica da mentira (como dizer "minto" senão fazendo-o
seguir de um ponto de interrogação, como no poema "Antimétodo 2"?) A
diferença entre passivo e ativo é colocada subitamente como problema no
universo de um "jogo" geralmente estabelecido como "armadilha". O
ilusionismo e a magia tornam-se figuras de uma "regra secreta" pois,
diante do passe de mágica, ocorre uma hesitação a respeito daquilo que
mais importa: a simulação da dificuldade ou a ficção de sua solução? A
magia coloca entre parênteses o processo técnico da passagem entre o
impossível e o possível. Neste sentido, a vida e a morte são ficções
(cf. um dos títulos do poeta: A ficção vida, 1993) atingidas
pela vertigem da ironia e da auto-ironia escarnecedoras:
ANOTAÇÃO 1: O pássaro
crítico
Mozart tinha um
estorninho
Que imitava a música
dele
Não só: uma
paródia
Ou desafino
De ave
zombeteira
Certa vez achou-se uma
peça
Do próprio
Mozart
E era
desarmônico
Espirro musical
Qual se o
compositor
Zombasse de si
mesmo
Era o próprio músico
agora
Seu escárnio
estorninho
(A ficção
vida, 1993)
Essa contrariedade
incorporada ao poema coloca a poesia por um fio, próxima da sua perda.
Os poemas tornam-se então "notas", "esboços", também na escrita que joga
com a improvisação, a ausência do olhar poetizante, a opção pelos modos
retóricos aparentemente menos rebuscados e mesmo nitidamente pouco
"elegantes". Esses mecanismos de elipse do exibicionismo poético nos
colocam não somente no universo da técnica de um mágico que brinca, mas
na iminência da perda de sua qualidade de sujeito, de sua capacidade de
dar sentido ao jogo do mundo e da poesia: "Ninguém sabe afinal quem
convenceu, quando o performer se retira ainda oculto em cima da
maca, de volta à sua origem", A ficção Vida).
Mais jovem, Carlito
Azevedo começa a publicar seus livros nos anos 90. É um poeta próximo
dos estilemas do concretismo, nos primeiros livros, tendo ao mesmo tempo
um olhar voltado para o cotidiano, para o mundo mais próximo (o
"sublunar", título de sua última coletânea). Pode-se dizer que, na sua
poesia, a divisão a qual se habituara a poesia brasileira é provocada e,
ao mesmo tempo, tornada mais complexa. Na poesia de Azevedo, a vida de
todos os dias não é mais simplesmente o familiar, mas aquilo que
inquieta, estranhamente; por outro lado, se a espacialidade comparece
nos seus primeiros poemas, é sobretudo a referência à pintura e ao
"modelo vivo" que deixa ver sua relação com o problema do visível. Os
dados se cruzam, e o "relâmpago", comparecendo na manifestação do vivido
e no horizonte da arte, acaba por resumir o modo de abertura da
realidade. A coisa "viva" é aqui aproximada não de um conceito
determinado de vida, mas daquilo que lhe falta na sua abertura, daquilo
que não acontece como tal, nas suas bordas — uma geometria próxima de
sua "deserção":
ABERTURA
Desta janela
domou-se o infinito à
esquadria
desde além, aonde a
púrpura sobre a serra
assoma como fumaça
desatando-se da lenha,
até aqui, nesta flor
quieta sobre o
parapeito — em cujas
bordas se lêem
as primeiras deserções
da
geometria.
(As banhistas,
1993)
Desse espaço intermediário
(janela, bordas, parapeito), surge na poesia de Carlito Azevedo um
interesse pelo que passa, a passagem ou, melhor ainda, "a
passante", tema baudelairiano reinscrito no istmo entre uma origem
defeituosa e uma chegada imprevisível. A vertigem dessa passagem
manifesta no relâmpago, no raio, luz imprevista. A luz não é figura da
iluminação poética, que permanece dentro da "noite gris"; ela é apenas
uma dramatização de seu acontecimento pois, para o poema, a explosão do
que acontece não se separa do que não aconteceu ("Liliana Ponce não
esqueceu o seu casaco no salão de chá / Liliana Ponce nem estava de
casaco (...)", Versos de Circunstância, 2001); o fogo não
escapa do gelo; a mobilidade é fixa. Os oxímoros tentam atingir a
circulação da vertigem ("esteja ela no fim ou na origem", Sob a noite
física, 1996), e a lucidez do poema coloca-se como uma resistência à
"tentação" de fixar o delírio ("A idéia é não ceder à tentação / de
escrever o poema desse não- / lugar (...)", Sob a noite
física).
Se a relação com a herança
da tradição modernista está sempre no horizonte, deve-se salientar o
fato de que, na obra de alguns poetas, encontramos um outro tipo de
abertura no que diz respeito à experiência do presente. Isso nos
incitaria não somente a repensar os fatos da poesia contemporânea, mas a
levar adiante ou a deslocar a discussão em busca de esclarecer aquilo
que, efetivamente (a julgar pelo interesse atribuído à multiplicidade
pelas recensões e críticas), ainda não conseguimos entender. Cada vez
mais desconfiada da tradição herdada por Ana Cristina César e Paulo
Leminski, por exemplo, ocorre à poesia de relacionar-se com a
"realidade" não como suposição, mas como problema. Uchoa Leite termina
um poema impregnado de intensa dor (que se chama justamente "Realidade")
com uma ironia requintada: "Acordei no outro dia insonhado / Era a mera
realidade", A ficção vida). Essa realidade redescoberta na
denúncia de seu teatro poderia instalar um outro pensamento sobre a
situação e o sentido da poesia? Poderia mudar a relação com o problema
da "modernização conservadora" no Brasil, ou aprofundaria as razões
dessa tese? O resultado de tal processo não está decidido de antemão e
pode evoluir tanto para uma dispersão do espírito crítico, quanto para a
abertura de outras vias de relação com o mundo. No entanto, a
necessidade de dar um passo na direção do seu (ter) lugar me
parece bem colocada pela poesia brasileira hoje. Nesse sentido, a tarefa
do discurso crítico seria a de acolher essa preocupação com o
deslocamento e deixá-la fazer a prova dos paradigmas que poderia
eventualmente atingir. Se não se trata simplesmente de atribuir lugares
de origem às coisas e às idéias (que se trate do eu, da nação, do homem,
da poesia ou da arte) a fim de denunciar seus deslocamentos ilegítimos,
é porque as condições de seu pertencimento legítimo aos lugares, ou
simplesmente aquilo que quer dizer lugar, ter lugar, é
posto em causa.
Naturalmente, uma certa
dose de mal-estar pode ajudar a aprofundar o reconhecimento dos
bloqueios contemporâneos, exceto quando o sentimento de exaustão é
levado ao extremo e subjugado finalmente ao papel "cultural" das
instituições para quem a diversidade se reduz à catalogação, mais do que
à confrontação, e à promoção de pessoas mais do que à formação dos
públicos. Em todo caso, a atmosfera crítica um tanto melancólica,
apontando nos poetas a ausência de "grandes questões", é um sinal muito
claro de que as questões mudaram ou que estão a ponto de
fazê-lo. Ora, a insignificância do mundo, algo próximo da privação
de sentido e de mundo, é a condição para que alguma outra coisa
aconteça, se é verdade que ainda não aconteceu. A vitalidade incomum que
se constata hoje na poesia brasileira (na circulação de revistas, textos
e leituras), qualquer que seja seu sentido, é um dado que merece atenção
na perspectiva daquilo que pode surgir. O fato de ser designada como
responsável, ainda que faltosa, pelo sentido do contemporâneo mostra
que, para muitos dentre nós, mesmo na "aflição", a poesia permanece um
lugar de promessa ou de maturação daquilo que advém.
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(Texto publicado na revista
Europe ("Littérature du Brésil", n. 919-920,
nov-dez/2005), em número dedicado
à literatura brasileira
contemporânea, e na presente versão (traduzida por Milena Magalhães, com
a colaboração
do autor), na Sibila
— Revista de Poesia e Cultura, ano 5, n. 8-9, 2005, Ateliê
Editorial)
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