Eduardo
Milán nasceu na cidade de Rivera, Uruguai, em 1952. Reside na Cidade do
México desde 1979, para onde se mudou fugindo da ditadura de seu país.
No Brasil, ainda não encontrou espaço adequado ao seu grande talento de
poeta e crítico, embora seja um ícone no mundo hispânico.
Nesta entrevista a
Sibila — participaram o poeta espanhol Antonio Ochoa
como entrevistador, ao lado dos mexicanos Gabriel Bernal Granados, José
Luis Molina e Ernesto Lumbreras, do argentino radicado no México Hugo
Gola e eu — Milán aborda questões políticas do mundo contemporâneo, bem
como a questão da crítica, que ele afirma ser vista como elemento não
construtivo num continente como a América Latina que possui problemas
diante dos modelos que se propõe a seguir. Ele observa que a falta de
crítica é o maior problema das culturas literárias do mundo.
Publicou, entre
outros, os volumes de poesia: Estación Estaciones
(1975), Esto es (1978), Nervadura
(1985), Errar (1990), Circa 1994
(1996), Son de Mi Padre (1996), Algo Bello que
Nosotros Conservamos (1997), Manto (México,
Fonde de Cultura Económica, 1999; coletânea que reúne sua poesia
publicada até 1997), Ostras de Coraje (Filodecaballos,
Guadalajara, 2003), Querencia, Gracias y Otros Poemas
(Barcelona, Galaxia Gutemberg-Círculo de lectores, 2003),
Habrase Visto (Montevidéu, Arte-fatos, 2004),
Acción que en un Momento Creí Gracia (Tarragona,
Igitur, 2005). Sua produção também abarca o ensaio, tendo lançado:
Una Cierta Mirada (México, Juan Pablos-Uam, 1989),
Resistir. Insistencias sobre
el presente poético (1ª. ed., México, Conaculta, 1994; 2ª ed.,
México, Fondo de Cultura Económica, 2004), Trata de no Ser
Constructor de Ruinas (Filodecaballos, Guadalajara, 2002),
Justificación Material. Ensayos sobre Poesía
Latinoamericana (México, Universidad de la Ciudad de México,
2004). E a
tradução de Transideraciones. Antología Poética de Haroldo de
Campos; trabalho realizado com Manuel Ulacia (1975).
Em 1999, com Ernesto
Lumbreras selecionou os textos para Prístina y Última Piedra.
Antología de Poesía Hispanoamericana Presente e, em 2002, com
José-Angel Valente, Blanca Varela e Andrés Sánchez Robayna publicou
Las Insulas Extrañas. Antología de
Poesía Iberoamericana (1950-2000).
Régis
Bonvicino
Hugo
Gola: Em seus últimos livros,
parece-me que se adverte uma modalidade de trabalho que me atrevo a
chamar serial. Mais do que a concentração no poema individual, percebo a
construção de séries sucessivas, como se o poema não esgotasse nunca sua
matéria e reclamasse abordagens renovadas para configurar dessa forma
uma totalidade multifacetada. É realmente assim?
Eduardo
Milán: Sim. Ostras de
coraje, Querencia, Gracias,
Ganas de decir, Habráse visto e alguns
livros que estão para sair revelam essa atitude que pode ser vista como
"serial". Eu a chamaria uma atitude de deslocamento de centros de
atenção de um poema para outro. A idéia parte da convicção de que um
poema não é um objeto acabado, é óbvio. Pode "dar-se" por acabado — ou
"abandonado", como diz Valéry —, mas se trata de uma convicção que eu
sempre tive — talvez uma intuição — de que os poemas terminavam
acidentalmente "aí", não por uma necessidade. Não se trata de lograr uma
polifonia, uma coisa múltipla, eu penso. Trata-se do "momento preciso"
em que um poema deveria se resolver e não se resolve. É uma forma de
fazer com que a resolução dure, ou também uma forma de deter o tempo de
consumação do poema. Há que dizer ao leitor: "espere o que virá. Não é
um messias, é um poema".
Hugo
Gola: Os porta-vozes da
pós-modernidade declaram enfaticamente que a vanguarda morreu (como se a
busca de respostas inéditas para a passagem do homem pela terra pudesse
morrer). Reduzir a vanguarda às inovações do primeiro quarto do século
XX, e sustentar sua vigência atual, é um anacronismo, mas reivindicar
uma atitude crítica frente à realidade e diante da linguagem não é
introduzir uma dinâmica válida para a literatura e a arte de qualquer
época? Qual é o seu ponto de vista?
E.M.: Sem dúvida, a atitude
crítica frente à realidade e diante da linguagem não parece ser uma
opção, mas sim a única possibilidade de que a poesia e a arte continuem
ativas, vivas. Mas esta não é uma atitude específica da vanguarda. O que
é específico da vanguarda é a antecipação e a invenção somadas à
transformação social vital. A outra, crítica da realidade e crítica da
linguagem, é uma manifestação inequívoca da arte da modernidade. Nesse
sentido, estabelece-se aquela "duplicidade" de ação que Baudelaire via
na arte moderna: um pé no eterno, outro na vertigem. É um paradoxo: para
ser eterno, há que criticar a eternidade sem renunciar a ela e ganhar,
diga-se de passagem, um lugar aqui como pertencente a este presente
histórico. Creio que é pertinente não esquecer que as vanguardas são uma
crítica não somente à tradição, mas também à modernidade. Refiro-me às
primeiras vanguardas — dadá, cubo-futurismo, construtivismo. E uma
técnica que é, certamente, quase o espírito das primeiras vanguardas: a
collage. Evidentemente, não teria podido haver vanguarda sem
modernidade por trás. Hoje vinculamos a atitude crítica diante da
linguagem e frente à realidade a uma atitude de vanguarda. Mas são
gestos anteriores. Holderlïn, Baudelaire, Rimbaud e, sem dúvida,
especialmente Mallarmé, são poetas críticos nos dois âmbitos; e Laforgue
e Corbière. E Rabelais, Sterne e Carroll na narrativa. O barroco poético
espanhol é especialmente crítico à realidade e à linguagem. Insisto em
que é uma atitude que tem uma história anterior às vanguardas. Aí tudo
eclode. Não sei se Baudelaire queria mudar o mundo, creio que não, mesmo
sendo sensível frente à miséria humana. E era muito crítico à realidade
e à linguagem — sobretudo em seus poemas em prosa. Parece-me coerente
que os pensadores pós-modernos declarem com insistência a morte da
vanguarda. Em termos reais, não há vanguarda. O que há são extratos,
extrapolações do corpo da vanguarda que se transformam em atitudes
críticas a uma realidade como a presente, tanto artística como da
própria vida. Mas são atitudes de vanguarda fora do tempo da vanguarda.
Há que ter cuidado com a consideração intemporal da vanguarda, como
queria Beuys. Manter o espírito crítico é a melhor maneira de manter o
espírito vivo. Isso aprendemos bem da modernidade ilustrada (não sei se
não foi a única coisa que aprendemos). Em todo caso, quando propomos a
vigência da vanguarda para além dos procedimentos artísticos, estamos
propondo a vanguarda como um símbolo: de rebeldia, de transformação, de
crítica à hipocrisia e à desatenção da vida. Mas é um símbolo. Outra
coisa é a importância das vanguardas para a América Latina, que coincide
com a nossa emancipação como arte poética, com a nossa autonomia para a
participação. Darío, Vallejo, Girondo, Huidobro, Parra, a Poesia
Concreta brasileira, entre outros, explicam isso.
Antonio
Ochoa: A ordenação do seu
material poético parece estar cimentada no reconhecimento de um lugar
anterior à linguagem onde se vive o mundo e a realidade. Isto é, vida e
linguagem não são exatamente o mesmo. Seria possível descrever a
passagem entre esse lugar e a palavra, ou seja, é possível conceituar o
momento de materialização?
E.M.: A não ser que estejamos
falando de um lugar idílico, utópico, uma "verdadeira vida", esta
aspiração a uma anterioridade que se desloca até "os começos" (Lezama
Lima) ou até o lugar — sempre adiado — onde ocorre a "antepalavra" de
Valente, creio que não se pode mais do que chegar aí — isso é como falar
do Real — tenteadoramente. E é disso que se trata. É uma "figura" (por
assim dizer, para não escapar das aspas em um tema tão delicado) que
pertence à mitopoética individual. Todo poeta verdadeiro intui esse
lugar, precisa que ele exista, por várias razões. A primeira é porque o
desejo de fonte sempre está presente na poesia. A modernidade tenta
criá-la — porque desconfia disso que vê, e o vê bem, como a "imposição"
atual do mito (Marramao) — no próprio poema. O objeto de arte é o lugar
em que tudo ocorre, uma espécie de espaço de imanência. Mas a
antivanguarda — já que não pode existir a antimodernidade, quando muito
pode haver uma pós-modernidade — sente a nostalgia de outro espaço, um
gesto válido perante o que se considera um esgotamento de um certo tipo
de arte. O problema é que não é possível. É possível reiterar (como
afirma Lihn), mas não repetir. A segunda razão é porque, pura e
simplesmente, a ordem do mundo atual é uma verdadeira merda. Há que ter
cautela diante de certas proposições de "retorno". Por exemplo, Bush é a
aliança da modernidade tecnológica com o primitivismo irracional, uma
ensambladura entre a velocidade e o mito do eleito. Uma verdadeira
besta, a parte besta do ser humano manifesta e ativa.
Antonio
Ochoa: Continuando com essa
idéia de ordenamento, em sua poesia há enlaces — entre sons, palavras,
imagens — que assinalam uma concepção da linguagem, da palavra poética,
como acontecimento. Ou seja, a linguagem do poema não é objeto
solidificado na página, mas sim uma expansão que busca, que ocorre no
mundo. Por isso, penso eu, a linguagem deve estabelecer alguma conexão
dinâmica com o que está fora dela. Se você estiver de acordo com isso,
como entende a correlação entre sua linguagem e o mundo?
E.M.: Sim, eu creio que a
linguagem poética é um acontecimento. Um acontecimento que ocorre no
poema, ou nos poemas, como eu disse antes, segundo um possível
deslocamento. Mas ocorre nesse campo. Sem esquecer que as palavras são
signos, ou seja, remetem ao fora. Essa postura é uma autocrítica à
poesia que eu fiz em uma época, muito auto-referencial. E uma reação ao
conceito do poema como objeto de arte, como coisa de arte, propriamente
moderna e às vezes um abuso da modernidade artística. Não sei se há
correlação entre (minha) linguagem e o mundo. Há referência. A
concretização possível está no poema momentaneamente, se for visto do
ponto de vista de um impulso. Mas remete ao fora como projeção do que é.
Nesse sentido, altera, desloca, do ponto de vista da linguagem, uma
possível ordem fragmentária do mundo. É um diálogo entre fragmentos.
"Mundo", de um ponto de vista poético, é somente a palavra "mundo". O
poema deve remeter ao mundo real para que a palavra deixe de ser somente
palavra. Inclusive nos poemas "auto-abastecidos", cristalizações da
linguagem, "acontecimentos" que reclamam um tempo especial para si
mesmos, a ausência do fora está sempre presente, para jogar com as
palavras.
Gabriel Bernal
Granados: Considerando seus poemas
recentes, você não parece preocupado em descobrir um "para onde". A
poesia latino-americana, em geral, parece ter se apoderado do sentido do
fazer poético e propor-se a partir de um irresponsável e produtivo
agora. É aqui, neste presente sem horizontes críticos, o território em
que sua poesia se fortalece?
E.M.: Creio que há uma aposta
dupla: a do presente poético — incidir nele — e a do devir, se não se
quer dizer "futuro" a um conceito que toca diretamente a esperança e
funda, no Ocidente, a postergação da vida, como diria Nietzsche...
Quando você diz "a poesia latino-americana", creio que está pensando em
uma certa poesia latino-americana que peca por desmesura
auto-suficiente. É uma poesia que não teme apoderar-se do presente
porque é uma poesia que acredita que a "verdadeira poesia" sempre foi
igual. Porque acredita que o mundo "sempre foi assim" etc. Minha posição
é um pouco mais histórica. O "estado de bem-estar" dessa poesia
auto-satisfeita no presente — por isso continua à vontade escrevendo-se
como há quatro séculos – está dado, creio, pela utilização de uma visão
canônica do que a poesia é. O que ocorre é que os cânones coexistem. Uma
certa poesia "neobarroca" pode repetir-se infinitamente porque está de
algum modo satisfeita por haver encontrado as vias expressivas para dar
o caos e a desintegração atuais. Ou seja, está satisfeita com o caos e a
desintegração atuais. Não toda a poesia neobarroca, claro. Mas, no
fundo, é um problema de atitude. O que eu continuo achando é que há uma
consciência, que não se termina de admitir, de que neste momento
histórico o problema está no mundo, não na poesia. E a poesia tem
dificuldades para manejar essa realidade. Não hesito em dizer que a
poesia que se escreve agora é previsível. As cartas estão na mesa. As
possibilidades de combinação também. Mas nós que escrevemos — como
grande parte dos seres humanos na atualidade — estamos encerrados nas
quatro paredes do presente, sem mais alternativas de mundo senão a
resistência a essa ordem do mundo. Desencanto, desilusão, perda de
horizontes visíveis levam a uma escritura poética previsível. Agora
estamos jogando com as possibilidades combinatórias de diferentes
repertórios formais epocais. Mas vai chegar um momento em que esse
hibridismo como aposta favorável vai dar de si. A necessidade de pureza,
de nostalgia do que foi — seja lá o que tenha sido o que foi — é
sintomática. Esse "retorno ao mito" como imposição é sintomático. O
imaginário poético parece ter se convertido em uma fábrica de duendes.
Se o panorama se parece com isso que digo, alimento-me desse presente,
mas a partir de uma perspectiva crítica.
Gabriel Bernal
Granados: Embora, olhando bem, sua
poesia seja um paulatino descobrir por onde, seu processo foi uma
"desvanguardização", que deixa em sua pré-história o concretismo,
transita fugazmente pelo neobarroco e se instala em um dizer dia após
dia mais legível, mais legítimo, mais comunicativo?
E.M.: Creio que este último é
um fato, a legibilidade e a tentativa de legitimidade, embora eu não
ache que ter influência dos concretos brasileiros ou do neobarroco seja
equivalente à ilegitimidade. Nunca fui um poeta concreto, isso é óbvio,
mas pude aprender muito com os concretos. Não há quem não aprenda com
algo que tem a ver com o rigor. Mas também não é necessário filiar-se. A
poesia concreta não é um clube, nem o neobarroco é um tipo de agremiação
literária. São posturas poéticas que atendem às necessidades de uma
época, para mim muito mais importante a primeira que o segundo. Quanto a
uma "desvanguardização" no que escrevo, também é possível, levando-se em
conta que eu não fui um "poeta de vanguarda", mas sim um dos tantos
netos da vanguarda. Sem dúvida, minha formação é na leitura dos poetas
de vanguarda norte-americanos e latino-americanos, e entre estes
últimos, especialmente os poetas concretos brasileiros. Creio que a
gente tem acesso ao entrar em contato com diferentes posturas
artísticas, com o compromisso, é claro, de fazer outra coisa, ou pelo
menos tentar. Quanto à legibilidade, é sempre conjuntural e tática. Há
momentos de escritura que são mais legíveis que outros. Não se trata da
preceptiva da legibilidade como horizonte da poesia. Vai-se buscando.
Por último, no que se refere à comunhão, creio que é interpessoal. Não é
um fato de grupo nem pode ser um fato social. Uma transformação social é
um fato de uma comunidade, não um fato de comunhão. O poema pode, com
efeito, ser um ato de comunhão com o leitor. Deve aspirar a sê-lo. É uma
difícil comunhão não renunciar a si mesmo para poder
consegui-la.
José Luis
Molina: Você manteve uma
constante participação em diversas tradições poéticas, o que o converteu
em uma peça-chave na instauração do diálogo entre o Brasil, a América
Latina e a Espanha. Como soube conciliar as diferenças e situar as
afinidades nessas três esferas?
E.M.: Como filho de mãe
brasileira, a língua foi familiar para mim desde pequeno – refiro-me ao
português falado no Brasil. Pela minha educação — também por nascimento
—, sou uruguaio; meu pai era uruguaio. Isso faz você pertencer à cultura
latino-americana de fala castelhana. É notável para quem conhece ambas
as línguas em sua literatura a diferença que mantêm na prática criativa.
O Brasil, fronteira com o Uruguai, até há alguns anos, parecia pertencer
a um universo criativo diferente. E, por outro lado, o grande contraste
das duas línguas/ culturas com a Espanha. Salvo exceções, a poesia
espanhola do século XX — não esqueçamos a ditadura de Franco na hora de
fazer essa observação — é muito conservadora. Inclusive no pré-guerra, a
geração de 27 — que não tinha nada a ver com Góngora, salvo a admiração
de seus integrantes pelo poeta cordovês — também é conservadora: uma
vanguarda que anda mal da língua, do aspecto da língua, na hora de
manejar audazes procedimentos estilísticos: Lorca, Alberti, Cernuda, tão
descarnado e seco. Como costuma ocorrer, deve haver uma conjuntura
favorável a esse tipo de proposta, caso contrário, as pessoas não se
ocupam em esclarecê-la. Minha participação como colunista na revista
Vuelta entre 1987 e 1991, aproximadamente, permitiu-me manejar
esses lugares fundamentais de uma forma comparativa, embora não buscada.
Una cierta mirada (1989) resume essa proposta. Mas de forma
alguma considerei isso como algo exterior a mim, como figura de
preocupação. Parece-me algo constitutivo de minhas preocupações
artísticas, como minha admiração por Mallarmé ou pelos "modernos"
norte-americanos. O que escrevo não passa pela consciência explícita
dessa encruzilhada. Do contrário, faria outra coisa. Há posições
implícitas, claras para mim mesmo, não necessariamente para o
reconhecimento externo. Há quem olhe o meu lugar
negativamente.
José Luis
Molina: Passados cinqüenta anos
da famosa sentença de Adorno de que "não é possível escrever poesia
depois de Auschwitz", a história volta a testemunhar outro genocídio com
a ocupação do Iraque. Até que ponto se cumpre, ou não, essa sentença?
Ou, em que sentido poderíamos entendê-la depois do Iraque?
E.M.: Diante de um genocídio
como o que a Shoá representou, tudo é possível, menos outro genocídio —
que é o que vem realizando o governo israelita contra o povo palestino.
O que Adorno, um intelectual brilhante, uma das grandes mentes do século
XX, formula, visto retrospectivamente, é uma chamada de atenção. Em
termos históricos, é muito pontual e preciso: refere-se ao extermínio
judaico nos campos de concentração. Mas essa pontualidade é rejeitada —
retificada há que dizer — posteriormente pelo próprio Adorno. Um dos
fatores para a retificação é a poesia de Paul Celan, como se sabe, que
reúne as condições ético-poéticas que tornam possível uma continuidade
dessa arte. O que não é retificável — e até aí chega o valor da previsão
ou sentença de Adorno — é o anúncio da possibilidade latente da barbárie
genocida, que é um ingrediente humano. Adorno e Horkheimer o vêem
alvorecer na Ilustração com o enterro do mito. Fruto daquele sacrifício
é esta literalização de Auschwitz. Em outras palavras, há na Ilustração
um potencial genocida, na tecnologia um potencial genocida, na
modernidade um potencial genocida. A questão do Iraque, como a do
Afeganistão, é não só um assassinato em massa: é uma humilhação para
toda a humanidade pensante e sensível ao sofrimento humano, à
impunidade, à pilhagem. E insisto — uma advertência: hoje são os
iraquianos, amanhã ninguém sabe. Mas não somente é responsável o
"agredido", "ingênuo" e "autista" governo norte-americano recentemente
reeleito de forma majoritária, embora a porcentagem majoritária tenha
sido escassa. O Ocidente é responsável. É o sistema capitalista tardio
nesta fase imperial que constitui uma realidade criminosa e uma ameaça
constante. Enquanto existir esse tipo de latência bestial, que se traduz
sistematicamente em fatos, a frase de Adorno tem vigência. O que nos dói
é que atingiu a poesia, arte da palavra. Mas a atingiu bem: diante da
barbárie manifesta, o problema é falar, no sentido de dar valor à
palavra. A barbárie emudece. E a poesia sabe o que é
emudecer.
Ernesto
Lumbreras: Quando leio os seus
livros, tanto os de poesia como os de crítica, não tenho a menor dúvida
de que você é, a partir do passado (ou seja, a partir da tradição), um
poeta uruguaio. No entanto, a partir do nosso presente poético, você é
um poeta mexicano no fato de que sua obra é uma das mais queridas pelos
novos poetas mexicanos. Você se sente um poeta uruguaio ou
sul-americano, ou um poeta mexicano que escreve em espanhol no final do
século XX e início do século XXI?
E.M.: Obviamente, sou um poeta
uruguaio que escreve no México. Mas me sinto mesmo latino-americano, no
sentido de que me ocupo, na escritura, de uma série de problemas que
concernem à poesia latino-americana. Essa postura poética, que é tão
peculiarmente histórica, de nascer com as vanguardas — ou com a
pré-vanguarda, muito disso é o modernismo — quando a "grande arte"
européia "morria" com as vanguardas. A questão latino-americana quanto a
ser poeta neste continente excede o meramente geográfico. Ser
latino-americano é ainda uma condição histórica. Não sei se à margem,
mas sim depois — no sentido de chegar — ou antes — no sentido de não
poder alcançar. Ser latino-americano é um fato histórico pendente, por
mais corda universalizante que dermos ao termo globalização. É um
continente que não interessa a ninguém, salvo para aprofundar a
estratégia do saqueio. Às empresas maquiadoras não interessa Simón
Bolívar, é impensável que Darío as seduza. Por que isso teria que
acontecer? A poesia se nega à mercadoria. Somente as elites dominantes
insistem nos modelos de países hipermodernos que jamais alcançaremos.
Somente a inépcia de alguns governantes latino-americanos alimenta a
idéia de uma América Latina primeiro-mundista. Reconhecer isso é
história atual, espaço latino-americano atual, lugar onde a gente se
senta para escrever poemas. Quando se escreve poesia, deve-se ter a
maior parte desses elementos, senão em cima da mesa, sim na consciência.
Há quem acredite que há que se despojar da consciência para escrever.
Não se pode brincar de eternidade rodeado de tanta miséria. A
atemporalidade na América Latina é a verdadeira antipoesia, não a de
Nicanor Parra.
Régis
Bonvicino: O que é crítica de poesia
hoje? Qual a sua importância? É possível se fazer crítica com adesão por
antecipação aos objetos criticados?
E.M.: A pré-validação favorável
dos objetos criticados é uma celebração, não um ato crítico. A crítica
de poesia na América Latina é difícil. Nossa própria mentalidade
colonizada diante dos objetos culturais torna o ato crítico negativo uma
espécie de agressão para quem os recebe. A tendência é levar para o lado
pessoal. Isso implica que os ideais da Ilustração, quanto à proposta da
crítica como fundamento, não calaram fundo nestas latitudes. A
mentalidade continua sendo paroquial. Mas isso é generalizável para todo
fato cultural, não somente para o objeto poético. A crítica é vista como
elemento não construtivo. E como a América Latina tem um
déficit de construção diante dos modelos que se propõe a
seguir, a atitude crítica é rejeitada como retardatária ou improcedente.
Passamos da escassez à superprodução de bens culturais cujo valor
desconhecemos. Esta é uma das principais repercussões do acriticismo
poético. Não sabemos como valorar. Mas, a função crítica, creio,
continua sendo a mesma que há dois séculos: o enriquecimento dos
produtos culturais mediante o debate que os mantém vivos e ativos. Creio
que a ausência de crítica é o que assinala a fragilidade de uma
literatura, seu momento crepuscular.
Régis
Bonvicino: Percebo que os poetas
norte-americanos consideram a política como algo superado, como uma
coisa de Terceiro Mundo. Como você vê essa afirmação e como vê a questão
Bush diante dos norte-americanos e diante dos autores de outras
culturas?
E.M.: A relação da política com
os intelectuais – integrando os poetas nesse conceito – é problemática
nos Estados Unidos. De fato, nem todo mundo é Gore Vidal nem muito menos
Chomsky, Howard Zinn ou Norman Mailer. Esses expoentes representam o que
há de mais consciente e comprometido na intelectualidade norte-americana
atual. O que é estranho é que, entre os ativistas contra a guerra do
Iraque, entre os que se tornaram públicos, não aparecesse nenhum poeta
ou pelo menos nenhum que eu me lembre. Diante da proliferação de atores
e diretores de cinema ou cantores de rock, notava-se a ausência de
poetas. Insisto: na informação que os meios de comunicação de massa
ofereciam. Mas não vi nenhum artigo escrito por um poeta norte-americano
que refletisse sobre esse tema. E se houve algum, não repercutiu. Eu
estive atento a esse fenômeno a partir de vários comitês. É um fato
penoso e insólito. Dava a impressão, como você diz, de que a política é
um fenômeno desprezível ou que indica um baixo nível cultural para
certos artistas. Tudo ficou reduzido a figuras vinculadas ao espetáculo
— ou a figuras do porte de compromisso de um Chomsky, por exemplo,
militantes de toda uma vida — como se a guerra integrasse a ordem do
espetáculo, sobretudo se for levado em conta que os Estados Unidos foram
efetivamente agredidos. O que essa atitude revela, parece-me, é a falta
de interesse pelo restante da humanidade fora das fronteiras.
Pergunto-me: como pode lhe interessar a poesia iraquiana e não lhe
interessar a sorte do povo iraquiano? A poesia é prestigiosa e o ser
humano não? Eu acho que os poetas norte-americanos devem responder.
Quanto aos autores de outras culturas, os alemães, os franceses, na
Europa, reagiram. Na Espanha, também. Mas a tendência foi não cair no
circo da história. O problema é que o circo não acabou e amplia seu
perímetro de ação, e que nesse circo, como no romano, está morrendo
população humana.
Régis
Bonvicino: Você não acha que, em
geral, a vida dos poetas está separada dos seus poemas?
E.M.: Sem dúvida alguma. A
crise da modernidade — a modernidade como projeto era integral nesse
sentido — separou as ações: uma coisa é escrever poesia, outra coisa é a
vida que você leva. A vida vai por um lado, a criação por outro. Uma das
razões é o privilégio da realização — que deve tender a ser ótima —
sobre a atitude. Ser poeta era assumir um modo de vida. Agora é assumir
uma profissão — não uma vocação —, uma profissão paralela. Mesmo que
você morra de fome. Para não morrer de fome, você é executivo de uma
empresa ou professor universitário. Mas a poesia não é considerada uma
força de trabalho que lhe permitiria assumir posições reivindicadoras.
Escrever poesia continua no limbo do singular ou do inexistente, quando
não do ridículo.
dezembro,
2005
_________________________
Hugo Gola, poeta argentino, radicado na Cidade
do México e editor da revista El Poeta y su
Trabajo | Antonio Ochoa, poeta e
ensaísta espanhol | Gabriel Bernal Granados, poeta
mexicano | José Luis Molina,
poeta mexicano | Ernesto Lumbreras,
publisher da Aldus, editora
mexicana | Régis Bonvicino, poeta, ensaísta,
tradutor, crítico e co-editor da
Sibila.
____________________________
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