O sorriso devolvido
Meu pai quase nunca sorri.
Faço gracinha, solto pum no elevador, faço mil caretas, conto piada divertida e infame, tropeço, me coço como macaco e nada. Apenas um sorriso sutil. Uma curva débil. Uma pequena elevação dos cantos da boca e nada mais.
Será que dói sorrir? Eu não sinto nada, mesmo quando dou a maior gargalhada junto com o Boca, meu melhor amigo. Será que dói muito? Eu vivia me perguntando isso, e também perguntando aos meus amigos na escola.
— Acho que seu pai não tem dente — concluiu o Boca.
— Ô, mané! É claro que ele tem dente. Muitos. E são branquinhos, branquinhos.
— É… Então eu não sei.
— Nem eu — repetia o Guto.
Todos logo mudavam de assunto. Ninguém sabia.
Um dia o Boca e eu combinamos que faríamos o meu pai sorrir a qualquer custo.
— Vai ser assim — eu sugeri — Vamos pegar umas roupas da minha mãe, um vestido ou uma saia, e pintar a cara igual a mulherada faz, com batom e pó-de-arroz. E não pode faltar o perfume. Um bem forte.
— Boa! E vamos enfiar bexiga no sutiã pra parecer que temos peitões.
— Boa! E vamos colocar almofada na bunda pra rebolar mais ainda.
— E depois?
— E depois… Que tal uma piada bem legal, bem suja, de português?
Seria no sábado, quando o meu pai costumava ficar na varanda do apartamento, balançando na rede, olhando o mar lá longe e fumando o seu eterno cachimbo. A fumaça que ele soltava tinha cheiro de chocolate. Não era o máximo, mas pelo menos não era fedida.
Treinamos a piada a semana toda. No dia combinado, até a mãe do Boca resolveu ajudar, ela também achava que o meu pai andava muito triste, muito melancólico. Vestimos as roupas e pintamos a cara.
— Você tá parecendo a Neuzona. Sabe, a empregada da Júlia do terceiro andar.
— Cala a boca, Boca! E você, que tá parecendo a Ana Banana do sexto andar!
— Ofender não vale, Joca! A Ana Banana não! — o Boca ficava furioso. Ele sempre dizia que odiava a Ana, só porque ela gostava muito dele, muito mesmo, e certa vez havia lascado nele um beijo. Um desses bem molhados, que chegam a estalar. Não na bochecha. Na boca!
Quando nos olhávamos no espelho, não conseguíamos parar de rir. A mãe do Boca se juntou a nós e não parava de rir também. No final, quando ela conseguiu respirar um pouco, desejou boa sorte a nós dois:
— Meninos, vocês estão demais! Vão arrasar. O Jorge não vai agüentar. Dessa vez o sorriso sai inteirinho.
E assim fomos nós, de escada mesmo (não queríamos ser flagrados por ninguém), com a piada afiadíssima e tropeçando na saia.
Lá estava meu pai na varanda, esticado na rede, no mesmo ritual tabagístico de sempre, o cachimbo exalando o eterno odor de chocolate quente.
Antes que ele se virasse pra ver a gente, fui logo avisando:
— Pai, eu e o Boca queremos te contar uma piada. Se prepare!
Estávamos tão sérios e compenetrados, assim, vestidos de mulher, que meu pai nem teve tempo de dizer nada. Tascamos a piada e no fim só eu e o Boca estávamos rolando de rir. Meu pai, como sempre, deu aquele falso sorriso chocho e sem graça, de canto de boca, e aplaudiu sem muita convicção:
— Onde vocês conseguiram as roupas? Muito bom. Vocês levam mesmo jeito pra menina — e deu um tapinha quase carinhoso na gente, um em cada cabeça.
Fim de festa. Saímos meio sem graça, não tinha conserto. O Boca reclamou:
— Não dá, o seu pai é terrível, ele é carrancudo a dar com pau!
Nesse dia me tranquei no quarto, botei o som bem alto e fiquei lá um tempão. Abri meu armário e encontrei o velho álbum de quando eu era bebê. Tinha muitas fotos do meu pai com a minha mãe, ora um ora o outro me segurando: até que eu era bonitinho. Na maioria das fotos o meu pai estava sorrindo, um sorriso largo, branco, generoso, cheio de energia, um sorriso que ia de orelha a orelha.
Foi aí que descobri:
— Só pode ser isso!
Olhei o álbum de cabo a rabo.
Eureca!
— É, foi isso mesmo o que conteceu!
Minha mãe tinha levado com ela o sorriso do meu pai, quando ela foi embora e nos deixou pra sempre! Eu lembro bem desse dia. Ela levou uma mala enorme que, de tão cheia, quase não fechava. E dentro dessa mala na certa estava o sorriso do meu pai.
Eu era bem pequeno, quero dizer, ainda sou pequeno, é, mas nem tanto. Lembro bem do dia em que ela disse tchau e foi arrastando a mala enorme:
— Joca, Jorge, vou viajar e não sei quando volto. Quero conhecer o mundo, viver novas aventuras. Vocês entendem? Aqui eu me sinto enjaulada. Se ficar mais um dia trancada neste apartamento, eu morro.
Foi assim, sem mais nem menos. Foi assim que ela se foi. E não voltou mais.
No começo senti muito a sua falta. Mas com o passar dos anos fui me acostumando, agora quase não sinto saudade dela. De vez em quando trocamos e-mails e fotos.
— Mas não é como ter a pessoa ao seu lado, né? — o Boca sacou logo.
— Não, não é…
Pelas fotos não dá pra saber como minha mãe realmente é. Só conheço bem a sua voz, porque nos falamos muito por telefone. Ela é divertida, sempre dá muita gargalhada no telefone, por isso tenho certeza de que ela levou o sorriso do meu pai. Agora ela dá sorrisos em dobro.
Telefonei para o Boca e contei a minha teoria. Ele não concordou nem discordou:
— Pode ser… Pode não ser.
Minha mãe me manda dinheiro e brinquedos de tudo quanto é país. China, Austrália, Egito, Grécia. Ela é fotógrafa e viaja muito, nunca fica mais do que duas semanas no mesmo lugar.
Desde a sua partida, meu pai é quem sempre cuidou de mim. Pra mim ele tem sido pai e mãe. Acho que ser os dois ao mesmo tempo é bem difícil, mas ele dá conta do recado. Só não dá conta de sorrir.
— Pai, a minha mãe vai voltar um dia? — eu costumo perguntar.
Ele desgruda os olhos do mar, me olha bem nos olhos e responde:
— Essa pergunta você tem que fazer é pra Maya, só ela pode responder com certeza.
— Eu já perguntei, e ela me disse que um dia me faria uma surpresa. Então, tô esperando.
Nessa hora meu pai até consegue dar um sorriso um pouco melhor do que simplesmente, totalmente, redondamente chocho. Nessa hora ele fica me olhando com certo olhar parado, vazio, de tico-tico, de galinha d’angola. Me olha como se eu fosse o mar.
Esse olhar de peixe morto diz tudo: meu pai também nunca entendeu muito bem a partida da mamãe.
Nós dois nunca falamos sobre isso. É como brincar de esconde-esconde, cada um esconde os seus próprios sentimentos. A saudade é a mais bem guardada. Eu logo desisto de fazê-lo sorrir, não adianta, me contento com o sorriso chocho de canto de boca.
Mas anteontem a mamãe ligou e falou que estava vindo, que era pra eu não comentar nada, que era surpresa para o meu pai. Eu não me agüentava de alegria, de euforia, de eletricidade, mas consegui guardar segredo.
Foi no sábado, ou seja, ontem — papai na rede, perdido na névoa de chocolate —, eu deixei a porta da sala aberta e ela entrou com passos de gato. Entrou sem fazer ruído, diferente de quando ela tinha partido.
Eu estava sentado do lado do meu pai, brincando de fumar um canudo de papel, sentindo o delicioso e engraçado perfume de chocolate. Foi assim mesmo: a porta da sala abriu, uma mochila pesada caiu no chão.
— Oi! Eu voltei! Cadê o meu abraço?
Meu pai quase se engasgou todo com a fumaça do cachimbo. Ficou branco de susto. Depois a cor mudou. Ele quase ficou azul de surpresa. E assim, sem mais nem menos, meu pai deu o maior sorriso do mundo. Um sorriso como antes, largo, completo, quente, de orelha a orelha. Depois ele soltou um oi maravilhoso, e riu.
Era a confirmação da minha teoria:
— Eu sabia! Você levou o sorriso do papai e agora trouxe de volta!
O riso do meu pai cresceu e parou por falta de ar.
Ficamos todos parados, os três com olhar de tico-tico, de galinha d’angola, então nos abraçamos e recomeçamos a gargalhar.
Minha mãe voltou e ficou, o sorriso perdido do meu pai também.