..........Tudo
começou quando o vizinho resolveu aprender a tocar violino. Nada
de mais, não fosse o prédio novo. Prédios novos,
como se sabe, têm paredes finas. Dizem até que existem
operários especializados em cortar tijolo ao meio, para se conseguir
a desejada (falta de) espessura. E, se era fino, pior era pelo cidadão
estudar na sala, parede com parede com a sala dele. Jornal Nacional
não ia dar, novela (que ele fingia que não gostava) nenhuma
chance, mesmo pensar era difícil, com aquele mosquitão
zunindo sem parar. Na verdade tudo começara de fato na véspera,
quando quebrou o dedão, batendo nele com um martelo ao pregar
um quadro na parede (tentando pregar, pois o quadro caiu, espatifando
o vidro, soltando um bom bocado de reboco, com mais ou menos a metade
da espessura da parede) (a propósito, a infecção
no calcanhar foi justamente por ter pisado num dos caquinhos. Uma inflamação
tão doída...). Aliás, na hora em que entrou no
elevador para ir ao hospital foi que viu o vizinho entrando com o estojo
do fatídico violino. Ele lembra mesmo de ter pensado que até
que seria bom um pouco de música, o prédio era tão
silencioso... distraiu-se e não viu o síndico se aproximar,
mas gritou bem alto quando o Dr. Vasconcellos apertou sua mão
(o que, descobriu-se depois, agravou e muito a quebradura). Por falta
de anestésico a redução da fratura foi especialmente
dolorida, mas tudo ficou para trás ao voltar para casa e se deparar
com a sua linda, enorme e convidativa cama. Cobriu-se com um lençol
e dormiu um sono profundo e reparador, até a hora em que acordou
por perceber o enguiço do ar-refrigerado. Enxugou-se com a fronha
e resolveu ler até o nascer do dia, e já estava quase
conseguindo prender a haste dos óculos que se soltou (o mais
difícil foi cortar o durex com uma mão só) quando
o sol nasceu. Ao sair para trabalhar, começou a chuva. Chegou
até o ponto do ônibus, mas como estava rapidamente se transformando
numa tempestade, achou melhor voltar. Já espirrando, entrou em
casa chapinhando, pois a janela tinha ficado aberta e ensopava já
a sala toda. Tentou arrastar o tapete, mas o peso e a dor no dedo impediram.
Sem ar-condicionado o calor estava insuportável (pior porque
a janela fora fechada por causa da chuva). A umidade somada ao calor
acabou fazendo com que o tapete ficasse cheirando a rato morto, mas
sua sorte foi que a gripe já tinha se instalado, e o nariz estava
tampado como se com cola-tudo. Cochilou no sofá da sala até
ser despertado pelo telefonema do escritório, onde o presidente
da companhia tinha dado uma incerta e não tinha gostado nada,
nada de não achá-lo ali. A desculpa da chuva não
convenceu, pois pelo visto só chovia forte no bairro. Resolveu
ir trabalhar com chuva e tudo, mas ao pisar no chão para colocar
o sapato acabou descobrindo o corte e a inflamação no
pé. Como não conseguia andar, achou melhor telefonar,
mesmo achando que ia parecer uma desculpa esfarrapada, mas ao tirar
o fone do gancho, viu que estava mudo. Foi esquentar a comida enquanto
pensava no que ia fazer, mas acabou cochilando. Acordou assustado com
as primeiras notas do violino, e só conseguiu levantar-se da
poltrona (quicando num pé só) ao ouvir a panela de pressão
explodir. Vendo as paredes e o teto da cozinha pintados de feijão-preto,
acabou se distraindo e não percebendo que o arroz estava queimando
também. Nenhum problema sério, a panela era velha mesmo.
Achou um pedaço de ovo-de-Páscoa velho e congelado no
fundo da geladeira, e ficou com ele na boca para enganar a fome. Quando
o pedaço enfim derreteu, o caldinho cismou de penetrar justamente
num canal cujo curativo se soltara, deixando o nervo exposto. Desta
vez o grito foi alto mesmo, a ponto do vizinho parar de tocar e dar
umas pancadinhas (de leve) na parede. Sequer ouviu, pois rolava no chão
se contorcendo. Em menos de 15 minutos, porém, a dor amainou,
e ele pôde pensar em como fazer para comer algo, pois a fome estava
aumentando. Como a chuva aumentava na mesma proporção,
não lhe restava opção a não ser pedir algo
a algum vizinho. Tapou o buraco do dente com um algodão que arrancou
da cabeça de um cotonete (o pacote de algodão acabou caindo
no vaso sanitário), mas resolveu se contentar com um biscoito
que achou no armário, mastigando cuidadosamente do outro lado,
e foi para o quarto ver algo na TV. Cansado, ainda encontrou forças
para arrastar uma escada e apoiar o aparelho que ameaçava se
desprender do suporte no teto. Foi assistir na sala, mas era difícil
ouvir qualquer coisa que não fosse o miado desafinado da rabeca.
Com a cabeça latejando (e o dente também, a cada espirro
que dava), assustou-se ao ouvir a campainha do telefone, que, pelo visto,
voltara a funcionar. Era a esposa, ou melhor, a ex-esposa que anunciava
que queria uma revisão na pensão e que ia viver com o
advogado dele, que, não se esquecesse, tinha a cópia das
suas últimas dez declarações do Imposto de Renda.
Quando desligou e tentou ligar para o escritório, o telefone
emudecera de novo (e só voltou a funcionar quando ele, do banheiro,
ouviu a secretária eletrônica atender à secretária
do seu chefe, avisando que ele acabara de perder seu cargo). Não
fossem as dores que a cólica lhe provocava, até que teria
tido tempo de atender. Cólicas com prisão de ventre são
de fato incômodas, especialmente quando na véspera se abusa
da pimenta. Só levantou (pulando num pé só, sempre),
para procurar alguma revista velha. Como é que ele foi esquecer
de comprar justo papel higiênico! Desafortunadamente a revista
era de um papel um pouco frágil, mas se a torneira da pia funcionasse
o inconveniente seria mínimo. Pegou uma garrafa d'água
na geladeira, observando que a porta dava pequenos choques, e lavou
as mãos, guardando a garrafa e percebendo que com as mãos
molhadas a geladeira dava grandes choques. Quando a novela estava começando,
observou que já não ouvia o violino com a mesma facilidade;
não ouvia nada mais com a mesma facilidade, e só quando
o ouvido começou a doer é que ele associou a gripe que
já tinha com a otite que estava começando a ter. Ao ver
a imagem da edição extraordinária do jornal do
meio da novela, demorou mas reconheceu o prédio que aparecia
como sendo o seu. Como não estava ouvindo quase nada, custou
a entender que estava havendo uma evacuação, pois ele
ameaçava ruir por conta da enchente. |