Quando
era menino, eu gostava era de subir o Serrotão. Zé Campina, chofer
do caminhão de meu pai, abria um sorriso do tamanho do horizonte quando
no meio da buraqueira da estrada aparecia o asfalto na Farinha. "Olha
o negrão aí, Neuminho", dizia ele, em seu linguajar pitoresco e colorido.
Na adolescência, encontrei abrigo à sombra da copa da gameleira, usufruindo
dos alíseos egressos do Atlântico e destinados às areias de Tambaú.
Os fios brancos já se intrometiam entre os pretos sobre o couro cabeludo
quando sobrevoei pela primeira vez o Sertão do Rio do Peixe, de onde
fui vindo. Lembro-me que chorei feito um bezerro desmamado, sozinho
no jatinho, de volta para João Pessoa, depois de ter deixado Tasso
Jereissati no extremo ocidental daquela região entre Pau dos Ferros,
Cajazeiras e Crato.
Vista
ali de cima, minha terra, embaixo tão áspera e hostil, parecia variada,
acolhedora, encantadora. Um cenário ao mesmo tempo familiar e estranho.
Sem os carrapichos nem os espinhos das veredas, as copas dos juazeiros
e a elegância esguia dos cactos davam-lhe a aparência de uma paixão
não correspondida das primícias que, de repente, ofertasse carinhos
antes sonegados. Percorrido depois com a velocidade permitida pelo
leito asfaltado da BR 230, o caminho de volta exibia o contraste óbvio
entre o semi-árido e o deserto. O sertão, meus amigos, não é lugar
que se visite nem alvo para a objetiva das câmeras dos turistas, como
os desertos do Arizona, do Saara ou de Atacama. Ao sertão não se vai
de passeio. Sendo ali tudo essencial, a paisagem reproduz a vida:
econômica, absurda, fugaz. E, sobretudo, essencial. A vida no sertão
é compromisso sério, casamento sem possibilidade de divórcio. O gênio
literário de Euclydes da Cunha identificou no sertanejo uma força
atávica que transformava o arremedo de Quasímodo num verdadeiro titã,
um ser aparentemente alquebrado que a custo se desempenava de suas
dobradiças para reproduzir um Hércules capaz de cumprir tarefas ainda
mais mirabolantes que as desempenhadas pelo herói épico do bardo Homero.
Se vocês me permitirem a ousadia, reescreverei a frase-símbolo de
Os sertões para afirmar que, antes de ser um forte, o sertanejo é,
mais que tudo, um sobrevivente. À falta de pão, alimenta-se de honra
e sua ética clânica o transforma não no semideus tão invencível quanto
improvável da ótica positivista de Euclydes, mas num profissional
do ofício da tocaia, capaz de atirar no inimigo pelas costas, mas
depois dar a vida para salvar a do oponente. A ética da caatinga,
meus amigos de beira-mar, não é de faroeste nem de samurais, mas do
cangaceiro, não a do cangaço de fantasia e de fancaria de violeiros,
folcloristas e teóricos marxistas, mas do banditismo real, cujo código
de posturas prevê mais a exploração da fraqueza que mesmo a lei do
mais forte. Esta é a moral do amarelo, na definição de outro gênio
das letras, o paraibano Ariano, autor de Pedra do reino, o melhor
romance brasileiro desde Grande Sertão: veredas. A esperteza é o destemor
do desvalido, pontifica o autor do Auto da Compadecida. E o talento
é a fortuna dos sem-fortuna, completaria eu, hoje elevado a este grau
de vaidade mercê da homenagem que o Grupo Marquise decidiu me prestar,
incluindo este menino sertanejo entre os quatro exemplos de paraibanos
de talento festejados bienalmente.
Uma
vez fui desafiado a explicar por que tantos paraibanos se destacaram
na literatura: Augusto dos Anjos, Sérgio de Castro Pinto, Marcos Tavares
e Mane Caixa d'Água na poesia; José Américo de Almeida, José Lins
do Rego e Ariano Suassuna na prosa; Paulinho Pontes no teatro. Arrisquei
o palpite de que lhes indicou a vocação o fato de ser a palavra um
instrumento gratuito. Mesmo que seu registro exija lápis e papel,
é preciso convir que esses suportes custam muito menos que as tintas
do pintor, o mármore do escultor, o equipamento tecnologicamente sofisticado
sem o qual não é possível fotografar nem filmar. A Paraíba já deu
pintores como Pedro Américo, de Areia, e Antônio Dias, de Campina
Grande. Fotógrafos como Machado Bitencourt. E cineastas como Linduarte
Noronha, cujo documentário Aruanda foi definido como "marco zero"
do Cinema Novo por Glauber Rocha em seu clássico livro Revisão crítica
do cinema brasileiro. Além de Vladimir e Walter Carvalho e Ipojuca
Pontes.
Mas
é pingando letras em papel que os paraibanos mais têm chamado atenção
na vida nacional. Um destes, Bráulio Tavares, campinense talentoso,
filho de jornalista de escol, meu inimigo de adolescência, pois eu
presidia o Cineclube Glauber Rocha e ele o de Campina Grande, lembrou,
impiedosamente, que passávamos ao largo das emboladas de Dedé de Mulatinha
na feira-livre da terra do maior São João do Mundo e hoje mendigamos
um ou dois minutos de imagens e sons daquele prestidigitador capaz
de criar e torcer vocábulos e sentenças como Uri Geller entortava
facas e garfos. Somente a arrogância da adolescência pode explicar,
embora não justifique, tão grave pecado. O negro forro Inácio da Catingueira
e o poeta do absurdo Zé Limeira, Ivanildo Vila Nova, Carlos Fernandes
e Carlos Tavares dão provas de que o verbo dado como início de tudo
pelo evangelista João pode ser gratuito na veia onde é garimpado,
mas torna-se peça de valor se burilado pelo engenho e pela arte de
conterrâneos que por aqui passaram, caso de Ascendino Leite. Meu ídolo
Luiz Gonzaga Rodrigues, da geração de craques da estirpe de Biu Ramos,
Martinho Moreira Franco, Luiz Augusto Crispim, Jurandy Moura e Barreto
Neto, aqui me precedeu como operário da palavra que embrulha peixe
no dia seguinte à publicação dos periódicos. E a verve do poeta Ronaldo
da Cunha Lima prenunciou neste palco a justa homenagem ao cultivador
de pérolas verbais dom Joacil do Brito Pereira, presidente da Academia
Paraibana de Letras.
O
talento paraibano manifesta-se ainda na capacidade de fazer canções
de Chico César, filho de Catolé do Rocha, onde se dizia antigamente
que nas feiras se matava um e se amarravam mais cinco para os outros
dias da semana, deixando o domingo de fora, já que aquela gente temente
a Deus tem por hábito guardar o dia do Senhor. Também no cancioneiro
tem brilhado o talento paraibano nas obras de Jackson do Pandeiro,
Sivuca, Antônio Barros, Geraldo Vandré, Zé Ramalho, Vital Farias e
Herbert Viana como nas vozes de Marinês e Elba Ramalho. Meu amigo
Zé Rodrix, ele próprio autor de canções maravilhosas, nunca desistiu
de me convencer que a canção é a arte por excelência deste nosso tempo,
sobretudo por sua natureza capsular, a capacidade de cantar os mistérios
da vida e chorar a dor da morte inexorável em míseros três minutos.
É este milagre da síntese que comemoramos este ano na obra e na pessoa
de Chico César, como já foi feito antes com Sivuca, Herbert Viana,
Marinês e Elba. Na voz deles todos a Paraíba canta — do sertão à gameleira,
de Catolé a Conceição do Piancó, da feira de mangaios em Itabaiana
ao açude de Bodocongó, "meu canário verde e meu curió".
A
escassez crônica de que lhes falei no início deste discurso, que era
para ser de agradecimento e está já beirando o arrependimento (de
vocês, é claro, não meu), tem exigido do paraibano uma capacidade
extraordinária de dar nó em pingo d'água e tirar leite de pedra. O
Grupo Marquise teve a sabedoria de homenagear aqui ilustres conterrâneos
que se destacaram no mundo das artes visuais, caso do artista plástico
campinense Antônio Dias; na medicina, como o cirurgião plástico Pedro
Albuquerque, meu conterrâneo do vale do Rio do Peixe, e o legista
Genival Veloso de França; e na política, ocupação de Pedro Moreno
Gondim, cujo recente desaparecimento nos enluta, e de Luiza Erundina
de Souza, nascida em Uiraúna, como eu, e ex-prefeita de São Paulo
de Piratininga, onde ela e eu moramos. Eu era um menino magrelo e
enxerido quando saudei o candidato Pedro Gondim em campanha para o
governo do Estado, aquela famosa campanha do "Tá com medo ou tá com
Pedro", lembram-se? E, hoje encanecido, também me ufano de ser natural
da minha, da nossa Paraíba, de Uiraúna, mas também de Campina Grande
e de João Pessoa essa Luiza Erundina, raro exemplo de pessoa capaz
de se destacar na vida pública sem confundir o próprio bolso com a
bolsa da viúva. Caso mais singular ainda nestes tempos de Severino
Cheque-cheque e do Aerolulinha, líder máximo da República da Conceição,
não a do coronel Chico Braga, mas, sim, a do sucesso de Cauby, aquela
de quem ninguém sabe, que ninguém viu. É neste capítulo dos visionários
que andam fazendo do burgo algodoeiro da Vila Nova da Rainha um pólo
tecnológico, que figura o engenheiro e empresário Luciano Piquet da
Cruz, cujos sobrenomes misturam a viração das Espinharas com a brisa
que torna Campina Grande a única cidade do mundo com ar condicionado
central.
Domingo
vai completar um mês que fui à Academia Brasileira de Letras receber
o mais importante prêmio da literatura brasileira, o Senador José
Ermírio de Moraes, por meu romance O silêncio do delator. Haverão
de perguntar qual das homenagens mais me toca. Lembrar-me-ei de meu
saudoso amigo José Américo de Almeida, que me mandava mangas Haden
de seu quintal em Tambaú, quando sabia que eu estava em João Pessoa.
Consta que alguém lhe contou que o PSD local queria fazê-lo candidato
ao governo da Paraíba, mas o interlocutor se disse revoltado, por
ser o ministro do TCU aposentado uma "reserva moral da Paraíba". "Que
reserva moral, que nada! Eu quero é ser governador da Paraíba", disse
ele, em sua casa, no Cosme Velho, o bairro do bruxo Machado de Assis.
E foi! O velho sabia o que dizia. Afinal, foi ele quem escreveu o
célebre aforismo em "Antes que me esqueça", prefácio de A bagaceira:
"Voltar é uma forma de renascer. Ninguém se perde na volta". É por
isso que estamos sempre voltando para cá, assim como ocorre agora:
afinal, quem não gosta de renascer?
Lembro-me
ainda de Paulinho Pontes me explicando por que, depois de fazer tanto
sucesso no Rio, voltava à Paraíba para montar Parai-be-a-bá em João
Pessoa. "Fazer sucesso no Municipal não tem a menor graça. Bom mesmo
é ser aplaudido no Teatro Santa Rosa", ele me explicou. Ainda mais
que a primeira conferência de um dos maiores intelectuais brasileiros
de todos os tempos, o pernambucano Gilberto Freyre, foi proferida
exatamente em nosso lindo teatrinho, como esclareceu o acadêmico e
ministro Marcos Vinicios Vilaça, no discurso em que me saudou no recebimento
do prêmio na Academia. Então, não é para qualquer um, eu diria, parodiando
Paulinho, desmentir a parábola bíblica segundo a qual ninguém é profeta
na própria terra.
E
assim eu, que sou sertanejo de nascença, campinense de adolescência,
e, por tudo isso e muito mais, cidadão do mundo, assim como sou carioca,
por ser Flamengo, e paulistano por hábito e opção, agradeço o reconhecimento
de vocês desta minha inexorável e indesmentível condição de paraibano
da gema. E desta condição me revisto para concluir citando aquele
poeta genial, que nasceu num engenho paraibano e morreu no exílio,
pois todo lugar longe de Piancó, Alhandra e Junco do Seridó é estrangeiro.
Ele escreveu no Poema negro, do livro Eu: "Não! Jesus não morreu!
Vive na Serra da Borborema, no ar de minha terra". Viva Augusto dos
Anjos! Viva Leandro Gomes de Barros! Viva Pinto de Monteiro! Viva
Mocidade!
E,
acima de todos eles, acima de todos nós, viva a Paraíba que nos gerou,
inspirou e comoveu!
Discurso feito em nome dos quatro
paraibanos agraciados — além do orador, o músico Chico
César; Joacil do Brito Pereira, político,
escritor, presidente da Academia Paraibana de Letras e Luciano
Piquet Carneiro, empresário (foto) — na homenagem que receberam
do Grupo Marquise, concessionário da TV Tambaú, de João Pessoa, em 23 de
setembro de 2005.
outubro, 2005
José Nêumanne. Jornalista,
escritor, poeta. É editorialista do Jornal da Tarde e autor do romance
O silêncio do delator. Mais aqui.
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