Tinha vontade de arreganhar a boca e cravar no outro os dentes. Era a chuva. O barulho dela e os relâmpagos alimentavam o desejo. Desde pequena os temia. Sentia-se acuada, as pernas trêmulas na companhia de fantasmas. Não gostava da escuridão nas noites de tempestade. Perdia o poder de imaginar vaga-lumes.

 

A chuva era a lembrança da mãe, — corra, filha, suba! Esconda-se no armário —, dos pingos grossos no teto de zinco, da louça quebrada e da voz dele abafada pelos estampidos do gesto. Era o retrato da menina esquálida, no armário. A bexiga apertada, a respiração presa. Era a ausência. O pão dormido na casa da tia distante, os pés descalços, o frio sem cobertor.

 

E não importava que o telhado agora fosse de barro e que a louça estivesse intacta na cozinha: o barulho da chuva despertava-lhe os demônios. Ouvia os mesmos gritos, sentia o mesmo medo. Queria trancar-se no armário — mas lembrava-se que não tinha um em casa. Tapava os ouvidos na esperança de que o silêncio lhe devolvesse a lucidez. Queria afastar a lembrança, a ira guardada nas entranhas e ouvir apenas o ressonar do marido, que dormia inocente, sem suspeitar dos desejos da mulher. Sem saber que um dia, sem explicação, ela viraria uma cadela enfurecida, rasgaria os lençóis, cortaria-lhe as carnes, e encheria de sangue, a boca.

 

Sem imaginar que até lá, em noite de tempestades e na falta do armário, ela enroscava-se na cama. E esquecendo-se dele, cobria-se com a ponta do lençol que restava — cantando para os fantasmas a canção de ninar da mãe: Boi, boi, boi. Boi da cara preta. Pega essa menina, que tem medo de careta.

 

 

 

 

 

 

Na placa do prédio lia-se em letras discretas: especialista em fobias. Tinha ido parar ali por recomendação de um colega da firma. O moço, nos intervalos para o cafezinho, contava para quem quisesse ouvir que havia se curado do medo de ser engolido pelo computador. Imaginem, dizia, que quase perco o emprego! Era analista de sistemas e tinha lá suas razões para sentir no pescoço a corda invisível dos que estão para conhecer o olho da rua. Mas não foi daquela vez que tiraram-no da mesa que ocupava desde os tempos da faculdade. O emprego continuava seu. E tudo graças ao tratamento que agora ele pensava em recorrer.

 

Parado em frente à porta, pensava em Rosa e imaginava o que iria dizer quando estivesse sentado cara a cara com o médico. Perdia a coragem. Metia as mãos nos bolsos, fingia procurar algo que tinha esquecido, as chaves, talvez. Dava meia volta e apressava o passo na direção oposta ao prédio que até bem pouco tempo analisava. Era um covarde, pensava. E ia ruminando suas angústias no caminho, entre uma buzinada e outra.

 

Quando finalmente chegava em casa, respirava aliviado. Oito andares de elevador lotado. O cheiro da velha que morava no andar superior de cima era o que mais lhe agradava - tinha algo de carne passada, com um leve toque de lavanda. Um frescor que misturado ao azedo do suor, sufocava os mais límpidos pensamentos. Ali, com os condôminos sempre em atraso, o elevador de serviço deixou de ser uma prioridade e todos acabaram por se habituar a dividir o mesmo elevador com os empregados, entregadores, faxineiros, encanadores. Ele não se importava. Pelo contrário, sentia-se revigorado quando pela manhã ia descendo os andares sentindo nas narinas o cheiro forte de perfume barato.  E tinha que admitir: desde o enguiço, passou a almoçar em casa só para ter o prazer de sentir no caminho os odores do suor misturado ao cheiro de cigarro, café e falta de banho que exalavam, delicadamente, as pessoas. Sentia-se desolado apenas quando deixava o elevador para caminhar pelo corredor vazio até a porta do apartamento. Era como se lhe faltasse o ar.

 

Não sabia ao certo quando tinha começado a sentir prazer com o que era um incômodo, para as outras pessoas. Também pouco lhe importava. Não fazia mal a ninguém, era sozinho e não tinha a quem dar explicações de suas preferências.

 

Isso até conhecer Rosa. O nome, por si só, dava-lhe azia. Mas a moça, não. Era bem apanhada e fazia estágio na firma como arquivista. Lidava, portanto, com papéis velhos e empoeirados. Talvez isso explicasse a atração que sentiu quando a viu subir as escadas, abarrotada de pastas e documentos que deveriam a muito estar no lixo. Ofereceu-lhe ajuda e a moça, é claro, aceitou. Na verdade, sentiu-se lisonjeada: Era a primeira vez que alguém tão asseado e cheiroso aproximava-se dela querendo dividir o fardo de carregar aquelas velharias.

 

Ele convidou-a para um lanche depois do expediente. Saíram lado a lado e caminharam uns dois quarteirões até que ele sugeriu que fossem a uma pequena lanchonete árabe que ficava no terceiro andar de um prédio comercial. A moça, que preferia o ar livre, quis dizer não. Mas acabou aceitando o convite, afinal, mostrar preferências num primeiro encontro não era algo muito inteligente. Quando entraram no elevador lotado, Rosa se espremeu e prendeu a respiração para não sufocar. E só pareceu aliviada quando as portas finalmente abriram-se e ela pôde pular para fora e pisar o chão amarelado do prédio. Lancharam em silêncio. Ela, pensando já no caminho de volta à rua, desistiu de comer e pediu apenas um refrigerante. Ele, ao contrário, comeu satisfeito. Estava feliz e não sabia dizer se o fato de ter compartilhado o suor alheio com Rosa era, enfim, o motivo da estranha sensação que sentia.

 

O namoro acabou acontecendo e a moça, apesar de não suportar os lugares escolhidos por ele, acompanhava-o sempre. Tudo ia perfeito, até o dia em que Rosa cismou em fazer um jantar romântico. Foi nessa noite que a coisa começou a se complicar. Quando chegou ao prédio da namorada, uma pequena construção de classe média, viu que pelo número de apartamentos não haveria ela de ter muitos vizinhos. Quis voltar dali mesmo, mas o desejo de encontrar Rosa fez-lhe entrar. Viu que tinha um senhor aguardando o elevador e respirou aliviado. Por trás da camisa branca colada nas carnes moles, ele podia adivinhar o suor de quem caminhava horas no calçadão, para protelar a morte. Não contava, porém, que depois de terem entrado, os dois, no elevador, o outro resolvesse sair rapidamente porque havia esquecido de trazer o pão, comprado e deixado, provavelmente, no balcão da padaria. O susto foi tão grande que não teve a rapidez de acompanhar o homem e quando viu, as portas já estavam fechadas e o elevador seguia para o andar de Rosa.

 

Quando chegou na porta do apartamento da namorada, estava pálido, sufocando com a falta de ar. Quis tocar a campainha, mas acabou desistindo. Não suportaria sentir o cheiro adocicado das fêmeas que insistem em disfarçar com perfumes, o azedume da carne. Voltou de onde estava e procurou as escadas descendo rapidamente os degraus.

 

E não pensava em outra coisa, senão no elevador de seu prédio.

 

 

 

(imagem ©edu moura)

 

 

Vássia Silveira é jornalista e editora do site Ana e Suas Mulheres. Escreve o blogue Gavetas e Janelas e assina uma coluna semanal de crônicas no Nariz de Cera.