Quarto
um
travesseiro bordado, canto esquerdo: "ninguém"
Um domingo
na
relva molhada, o cortejo
fila de chapéus negros
inadequados pés nus nas sandálias
entre lápides, preces da língua —
antiga kaddish para o avô
pequenas lágrimas hesitam conversas na sala, o
chá.
Fin de siècle
Esfregava as
costas
dela na banheira cuidando do amor recém-nascido
(Do livro Visita. Editora 7letras,
2000)
Setembro
do lado de fora,
escreve sobre as prisões que trazia por dentro
os
muros desmoronam
no calendário das
horas
exilado
na outra
dimensão do tempo.
Perséfone
noite adentro os olhos guiam
para que não tenha medo do escuro
também estive aqui neste sotão
néon
por
horas, sem rumo
presa
nas
profundezas
Inverno
era quase noite
no céu, gris
da
escócia
a palavra que não
encontrava
uma cena
deserta
o
silêncio
parado, ao
lado do rio
nuvens
a distância entre
as
cidades
*
Insone, debruçado sobre a varanda enquanto o
delírio evapora entre a claridade e o sonho — rompe no
céu a órbita incerta de um trânsito lento de Urano
Epiderme
pudesse recortar um instante — este
quando a luz, escura nos olhos dissipa
nudez, leve toque nos ombros
sardas
(Do livro Distância,
Editora 7Letras, 2005)
Noturno
O que enxergava, no
silêncio escuro de estrelas
verniz
prateado sobre as águas, o deserto longo da
praia descalça
uma margem de
pequenas pedras
cascalho,
conchas
e o movimento
inquieto dos peixes entre as ondas nadando em
direções
contrárias.
Lowlands
Nas
fronteiras, a estação é sombria: as árvores, sem
folhas galhos espetados que apontam para o céu.
Caminhamos pelas ruínas da abadia
gótica. Através de janelas,
altas avistam-se lápides no jardim de gelo.
Onde em uma pequena caixa, de bronze celta —
o coração de Robert the Bruce repousa sobre a
neve.
Eros
tarde de verão,
parada como uma villa na Toscana
na campagna, o
movimento das flores
mergulhar na
piscina um frasco transparente com rosas brancas na casa
damiano
os cabelos presos no
alto alguém abotoa seu colar
um vestido de
algodão, de alças sandálias verdes
matizes suaves do
amor uma taça de bellini
o silêncio
preciso, íntimo
Detox
Enrolou os ferimentos em gaze. Feridas cicatrizam com o
tempo. Ainda que restem entalhes. Memórias desenhadas nos ossos,
adornos.
Tirou fotografias como registros. Meses após o trauma. Sem
sangue nas conjuntivas.
Deixou para trás a câmera. Travesseiro, lençol branco, a água
morna do banho. Inverno, lembrança noturna.
A transformação do rosto. Quando retirou as ataduras, as
suturas.
No dia da partida, árvores. De perfil no trem, a luz sobre os
cabelos, castanhos.
Memory lost
Trigésimo andar: contempla a cidade, à noite. Deleção de
arquivos, memórias. Algumas ficaram retorcidas no pensamento como o
prédio, de janelas góticas. Cativeiro. Cinema Voltaire.
No parapeito, uma orquídea. Isolada contra o crepúsculo,
violeta. O contorno borrado dos prédios.
Um dia de sol. Casais passeiam no parque. Caminha entre
gansos. Crianças brincam no tanquinho de areia.
Hipocampo, estranheza de imagens. Esquinas, bifurcações. Como
se nunca tivesse, tantas vezes, caminhado ali.
(Poemas inéditos)
(imagens ©uta barth)
Virna Teixeira
é poeta e tradutora. Nasceu em Fortaleza e mora em São Paulo há vários
anos, onde trabalha como neurologista. Publicou dois livros pela 7Letras,
Visita (2000) e Distância (2005).
Colabora com várias revistas de poesia e periódicos. Publica traduções
e inéditos e no Papel de Rascunho, escreve com o poeta mexicano Jair Cortès no Los Excessivos
e é também colunista do Cronópios.
|