A Coisa

 

Era uma coisa jogada ao chão,

Era um resto,

Resíduo qualquer de algo

Que um dia

Talvez tenha existido.

Era um corpo estranho,

Empecilho, obstáculo revoltante

Para aqueles que passavam apressados.

Era um objeto ignóbil,

Ouvidor impassível de impropérios,

A ele, destinados.

Era sem culpa.

Era a migalha do que um dia foi,

Um corpo de quem um dia foi um homem.

Era sem vida,

Era ignorante,

Não ouvia os verbos injuriosos,

Não sentia os chutes apressados,

Não doíam no ego os olhos fulminantes.

Era uma coisa como qualquer outra coisa

Que ninguém quer que esteja lá.

Era um entulho desnecessário

Que jazeu a manhã seguinte,

Retirado num baú sem nome,

De uma cor comum,

De um tamanho corriqueiro.

Era uma peça de carne morta

Que agora jazia em outro lugar qualquer.

Era algo que nem mais algo era,

Que se foi antes que alguém soubesse

Se um dia, algo, fora.

 

 

 

 

 

 

Frente à cena mísera

 

Vários homens sentiram seus olhos

Choverem,

Vários homens sentiram seu peito

Ruir,

Vários homens sentiram o grito mudo

Que seu âmago bradava,

Vários homens viram outros homens

Doer,

Vários homens viram a angústia

De outros homens,

Vários homens viram a miséria

Corroer a alma dos seus,

Vários homens viram a solidão

De outros homens,

Vários homens viram corpos

Ocos jazendo ao alento,

Vários homens viram sangue

Em corpos de outros homens,

Vários homens viram

Que vários homens choram.

 

 

 

 

 

 

Vates eternos

 

Entre as densas sombras da noite,

Eu me encontro.

Expectador do mundo,

Sofredor do mundo,

Fiel aos infiéis

Que não me crêem.

 

Diante seus olhos de pavor,

Estou,

Aflito por expurgar-lhe seu mal,

Doente por expor-lhe seu caos.

 

Quando deita sob seu teto,

Meu reflexo paira sobre sua janela.

Ávido por sua atenção,

Destruído por negar-me outra vez.

 

Se sorrir entre os seus,

Minhas lágrimas escorridas

Banham meu terno tão sujo

Quanto minha alma abandonada.

 

Quando me encontro

Debaixo do céu cinzento,

Vejo você escorregar do outro lado da rua,

Evitando minha face

Como se evitasse o seu demônio.

 

Assisto você perambular entre falsos risos

E ricas carnes de almas pobres,

Beijando bocas que sempre negaram meu verbo.

 

E não importa o quanto negue minha existência,

Sempre existirá um outro para substituir-me;

Um outro que interpretará suas dores escondidas,

Um outro vates sóbrio e inegável

A escrever a tristeza

Que você finge não sentir.

 

 

 

 

 

 

De solidão a solidão

 

O céu chora lá fora,

Enquanto aqui dentro,

Um miserável tece letras

Sobre um papel azul.

 

A barafunda das lágrimas celestes

Do outro lado dos combogós

Fazem-nos companhia viva.

 

Mas ele tem medo das lágrimas partirem,

Esgotarem-se as dores do céu

E o azul negro da noite sorrir novamente.

 

Seu medo é ouvir seu medo

Soquear forte seu peito,

Gritar ao seu ouvido que está só

E seu mundo é três paredes...

Três paredes e uma porta aberta,

Sempre a esperar a entrada de alguém

Que nunca vem e

Nunca virá.

 

Mas agora o céu soluça.

Lágrimas caem ínfimas.

O silêncio corre veloz

A abraçar seu ouvido que o recusa.

Escrever agora é ruir

Sobre o papel ouvinte.

É descobrir que sem as lágrimas do céu,

Seu teto branco é o seu céu

E sua lua cheia é a lâmpada no centro do quarto.

 

O pranto ouvido lá fora

Caindo em torrente,

Era mais amigo que a buzina do carro

Ou o rosnar da motocicleta que escutou agora,

Indo para não sei onde.

 

O choro do céu

Era mais humano

E mais mimético

Que as paredes mudas

Abraçando-o agora.

Era mais afeito ao consolo

Do que eu,

Esse relógio frio de cabeceira,

Sem outra vida,

A não ser o fazer renascer dos

Segundos.

 

 

 

 

 

 

Indômito

 

Fique eu com meus livros,

Fiquem os macacos com seus galhos,

 

Fique a serpente com a maçã,

Fique o rei nos baralhos,

 

Fiquem os cães a perseguirem os gatos,

Fiquem os gatos a sorverem o leite,

 

Fique o leite a se derramar,

Fique o absinto a cair na boca de quem o aceite,

 

Fique o réprobo a ataviar-se de nossas leis,

Fiquem as alimárias a governar com seu vilipêndio,

 

Fique o pérfido a nos roubar em seu comércio,

Fiquem os protótipos de Nero a nos causar incêndios,

 

Fiquem as falsas gentilezas no inferno,

Fique a vida a nos ruminar,

 

Fique a jactância a sorrir sardônica,

Fique o falso altruísta a se preconizar,

 

Fique o paladino em seu cavalo,

Fique o parvo com seu estrabismo,

 

Fiquem vocês a ouvirem o arauto,

Fique eu com meus livros.

 

 

 

Bélicos

 

Eram lágrimas vermelhas,

Cuspidas, jorradas

De corpos humilhados,

Quebrados;

Numa arena esguelha,

Numa cena grotesca,

Numa realidade de areia.

 

Eram gritos endiabrados,

Guturais, radicais,

De bocas malditas,

Falidas,

Em semblantes violados,

Em peitos esfolados,

Em homens loucos,

Maltratados.

 

Eram braços adjutórios,

Agressivos, bramidos,

De bonecos perdidos,

Encardidos,

Entre corpos espasmódicos,

Entre restos ignominiosos,

Entre sangues desarmonizados,

Irados.

 

Eram, eles, destroços,

Quase sãos, quase loucos,

De sorte azarenta, nojenta,

Sob uma lama de remorsos,

Sob uma fé de invejosos,

Sob uma ordem de escabrosos.

 

 

 

 

 

 

Nas noites em que vivi

 

 

I

 

Nas noites em que vivi,

Presenciei homens subjugados

Pelas amarras de outros homens.

Assisti a gritos horrendos

Expurgando dores atrozes

Infeccionadas por faces grotescas.

 

Fui hospede do mal

Quando o mal era a única

Coisa viva nos guetos nebulosos

Protetores de raças insanas,

De humanos ingratos

Para com a vida que receberam.

 

Vi pernas bambas como árvores à tempestade

Dançando macabramente ao vento,

Fugindo de outras pernas

Menos bambas

Como forte titã

Que, empedernido, não desistia de sua vítima.

 

Vi bocas rasgadas

Arquejando salvação,

Quando as cruzes, agora de ponta-cabeça,

Perfuravam corações

Ha muito enganados

Pelas orações improfícuo.

 

Vi meus olhos fecharem-se

Diante o clamor do homem

Que vagando após a inglória

Arribava os braços

Clamando a um deus

Que jamais acreditou,

O perdão que cria benemérito

Pelo sangue que derramou.

 

 

 

 

II

 

Nas noites em que vivi

Assombrei-me com nuvens pouco esparsas

Que acariciavam o céu

De negro azul,

Num balé de fumaça torpe

A ser tragada pelo ar furtivo.

Como se estacionassem sobre as casas escuras,

Tocavam-lhes os telhados,

Mas partiam sem reserva

A outro mundo por vir.

 

Algumas vezes observavam os homens

Abaixo a se destruírem,

E pareciam ser parte daquilo.

Como se olhassem cínicas,

Seus pupilos se devorarem.

 

Eram como deusas

Que observavam seus súditos,

Vestidas em longas vestes madrigais

Esvoaçando aos quatro cantos,

Como seda negra solta ao vento.

 

Quase as ouvia dizer,

Sedutoras e frias:

Vamos queridos.

Sejam bem-vindos.

A abrirem os braços

Como se acariciassem

Aqueles pseudo-homens,

A se infernizarem

Em suas próprias fezes.

 

 

 

 

 

 

Quando...

 

Quando um dia sorri,

Ignoraram-me.

Quando um dia pedi ajuda,

Viraram-me as costas.

Quando um dia abri os braços,

Não veio ninguém.

Quando um dia lecionei,

Não quiseram aprender.

Quando um dia escrevi,

Ao lixo levaram meus versos.

Quando um dia amei alguém,

Esse alguém se foi.

Quando um dia chorei,

A solidão me abordou.

Quando um dia me cansei,

Somente a morte me abraçou.

 

 

 

 

 

 

Ao léu

 

Algumas vezes o escárnio,

Outras o beijo,

Algumas vezes o nojo,

Outras o amor,

Algumas vezes a ira,

Outras a paixão,

Algumas vezes os impropérios,

Outras a ternura,

Algumas vezes a angústia,

Outras a felicidade,

Algumas vezes o silêncio,

Outras a balburdia,

Algumas vezes o choro,

Outras o sorriso,

Algumas vezes o medo,

Outras a entrega;

 

Algumas vezes isso foi a vida,

Outras, também.

 

 

 

 

 

 

Homens, e homens

 

Existem homens que enchem a barriga como reis,

Existem homens que têm o rei na barriga;

 

Existem homens que odeiam gritos,

Existem homens que gritam aos que odeiam;

 

Existem homens que pagam suas dívidas,

Existem homens que se endividam e não pagam;

 

Existem homens que choram de felicidade,

Existem homens que sem felicidade, choram;

 

Existem homens que durante a vida brincam,

Existem homens que brincam com a vida;

 

Existem homens que amam porque são felizes,

Existem homens que são felizes porque amam.

 

 

 

 

 

 

As crianças do meu país

 

Roubaram os beijos

das minhas crianças.

E não foi hoje.

Proibiram com

palavras mudas

que sonhassem

sonhos d’ouro,

Que acreditassem

na mão estendida

que outro lhe

oferta.

Entregaram-lhe armas,

transformando seus

sonhos em filmes

norte-americanos,

Transformando sua

língua em língua

norte-americana,

Transformando

suas vísceras

em sangue,

Entre o azul e o

branco

da bandeira

norte-americana.

 

Estão maltratando

as minhas crianças.

Estão transformando-as

em chacais sedentos

que não enxergam

vida,

Que não enxergam

nada

a não ser

a morte.

 

Seus risos,

Antes infantis,

Hoje são

bombas

explodindo no peito

daqueles que,

Sem saberem,

Cruzam sua trilha

de sangue e pólvora,

Seu lar de pilares

confeccionados com

AR-15.

 

Onde estão minhas crianças?

Essas não são.

Não reconheço essas

meninas,

beijando seus filhos

tão infantes quanto

elas.

Essas não são.

Por que os jornais

não mostram as minhas

meninas.

Aquelas que brincam

na rua com suas

bonecas de pano e

não com

bonecos de carne

e osso.

As Minhas crianças

são crianças,

Não mães.

As mães não são

crianças,

As mães são

mães.

Essas não são as

crianças

do meu país.

São?

 

 

 

(Do livro Noturno)

 

 

 

 

 

 

Aqueles olhos

 

Quando seus olhos abriram-se,

algo me fez pensar no rancor,

em tudo o quanto,

em todos os momentos onde houve dor;

mas quando em seu semblante toquei,

fecharam-se,

aqueles olhos que eu amava tanto.

 

 

 

(Do livro Sombras)

 

 

                                     

 

imagens ©marconi moreira
 
 
 
 
 
William Lial é poeta e ensaísta. Autor dos livros de poemas Sombras, Noturno e O mundo de vidro. Escreve para jornais e revistas e, atualmente, colabora com a organização espanhola de divulgação de artistas pelo mundo, a Sane Society, e com alguns outros sites.