O homem de meia cidade

 

 

 

"e uma tróia perdida no meio da cidade que eu inventei para circular, além do círculo de giz não passo, porque criei a cidade contra a cidade, a minha cidadela excluindo a minimetrópole envergonhada, ilhado, pavorosamente ilhado...". (Ronaldo Cagiano)

 

 

 

traição, ela acusa quando eu, volteando um hemisfério novo, galgando traumas com a astúcia de minha cólera, irrompo num domínio de geometrias irregulares, bradando agitado: como?, quando?, e acirramos nossas discórdias, dois amantes luxuriosos, meu bem, grito, ajoelhado rente à linha, esse marco imaginário que me impus, margeando prédios como lambesse de longe a chaga de um ato consumado, sua ressurreição.

(nervosa)2 enfurecida vomitando agonias pelo carril denteado de suas entranhas férreas, eu: o seu depósito, lixão à mercê da própria decadência: eu: atalaia avistando emboscadas, paranóia no encalço da cabeça fraca, de tanto penar, vaguear, perder-se pelos labirínticos logradouros dessa meia cidade insana. digo meia porque é o que há, o resto perdi num átimo, embora os avisos da chegada desse instante fossem exaustivamente excessivos.

ela: ela: ela: é urgente repetir para que algo se estremeça, mesmo que memória, ou se funda, embargando a fissão iniciada, quando se deu não havia: preparação, danos assim, praticamente irreparáveis, não há cursos para eles, terapias, sempre a justa saia, cueca à mão: foi assim, ela se foi: helena.

quem ela?, quem de vestido, bruxuleante e ansiosa tez e alva, tons castanhos de cabelos longos, olhos de me perdoar, quem de você que nós arrogantes amamos se dois de um mesmo e ainda amenos quando eu, tremulando de dizer proibições a vejo amparada por uma dor que tudo redime.

perguntem-me de quê a morte, quais intrigas vitimaram suas células, que meandros ou nomenclaturas estavam por trás do estrago e posterior desintegração, não, sobre isso nada saberei responder, é assunto inútil. apreciaria falar de seu último penteado ou mesmo da palavra também derradeira ou dos passos sorriso sonhos e de coisas práticas saberei precisar apenas o cruzamento em que tudo se deu, claro a cor do semáforo no instante da perda ou.

posso ter hoje quarenta, cinqüenta, a tal ponto embrenhado nas insignificâncias da vida que seria inútil me explicar, tentar no rol das importâncias ordinárias uma resposta para os que me tomam por louco. por isso o menos falo, também porque ela me entende o bastante para que não haja necessidade de acrescer diálogos ao meu cotidiano. desde então os flashes, a fulguração mais ou menos tépida daquilo que entretanto jamais nomearia de alucinação. sei que é ela se insinuando, usando helena como subterfúgio, mostrando o que teria lá do outro lado, não,.minha cara, eu já sei o que existe em todos os pontos das coordenadas euclidianas. não se fie nesta ingenuidade arquitetada com cimentos de medo.

chegarei à margem como de costume, estancarei meus passos diante do cruzamento: pronto: para a revanche, para a sua fúria prestes a verter venenos ousados, serei a mais sólida vontade, de concreto e aço, não, desde aquele dia que tenho coragem, enfrentei heroicamente meu medo, travamos injusta batalha: não venci, não era para ter triunfos ou derrotas: mas tendo subjugado a mim mesmo, exigiu meu cérebro um preço e a ele sou fiel até o fim: e a cidade? a cidade? a cidade? confusa geografia a me cuspir...

há o cruzamento e dizem que de lá, do outro lado, existe um manancial de maravilhas, que tantas e tão grandes novidades brotam fossem milagres, mas não me iludo, sei que não me posso vencer, estender o meu domínio além dessa banda de cá: venha com prêmios, recompensas, promessas, nada disso me corromperá.

daí a fúria, o engendramento de inúmeras artimanhas e sim, sei o que ela quer e o que quer desconfio que somente eu posso lhe dar, por isso as novidades, uma vitrine nova, estampando meus livros preferidos em edições faustosas, mesmo lojas expondo sua lingerie preferida, esse o ardil que quase pôs tudo a perder, porque sei da impossibilidade de atravessar, mas saberá assim tão arraigadamente o meu raciocínio? que desconfio eu dessas coisas funcionais, da possibilidade do impossível?

desarranjo se em suas ruas, mesmo um terreno, endereço certo, erigiram um templo, lá onde vertem desesperos em pardos de prece,

percebendo que essa imponente e pútrida árvore procria seus frutos robustos, e que as polpas podem nutrir o bom ou o mau e que aqui, curvo-me frente a uma presença incerta, auferindo os grãos de uma ceifa aleatória, o que lhe fiz?, concordando que praguejar não me trará de volta,

protelando golpes em um deus de cerâmica, ou o barro covarde com o qual me tramaram, ambos mesma matéria, puto, extravaso: por que helena?,

por fim os flashes. que perfídias rondam a sua vontade para descer a tanto? dos seus tijolos ela expele um jato que em muito se assemelha àquela que se foi, helena, mesmo em poses sensuais num canto de muro, outrora implorando (sim, ela fala) que vá ao seu encontro: ela sempre do outro lado, da metade que já não conheço a não ser de uma visão breve, sem entretanto de pisar ou apalpar.

é verdade, todos os dias vou até lá, rotina que devo seguir à risca, outro resquício da minha luta, helena: a cidade percebe tudo, estou sujo até os ossos do seu encalço; e ela pode de mim tentar o que quiser: não vou ceder, sei da impossibilidade de lhe entregar o que deseja, sei contudo e também que não há muito mais o que suportar além da certeza que ladra ao lado da ânsia que experimento ao pensar que posso colocar tudo a perder e para isso basta um aceno seu, feito de segredo nosso, de modo que ninguém (?) mais compartilha, quem sabe o demônio?, ou o meu fim, não fosse o que se tornou agora a minha mente, um antro de impossibilidades arrasando o que antes era apenas vôo. todavia tornou-se mais: uma furna de novidades, onde talvez a sua reencarnação ou para ser mais exato, a sua literal concretização: ela, me diz que você, helena, tornou-se concreto, espalha-se por muros, prédios, lares e então devo ceder, ousar o passo a mais ou que cresçam novamente as asas e que elas sim, me conduzam.

ela que inerte em seu caixão implora uma visita que anseio por fazer, um assunto que retomaremos, resolvendo assim o que de fato, a não ser, sim, truque, quiçá um exército com armas avançadas, cada soldado a ousar uma pontaria apurada, por que ela, compreendo, me quer a seu lado e então meu medo de retornar ao que de mais puro, não haveria temor se simples o final, e um encontro planejado descerraríamos os instintos de uma dura sobrevivência, amparados pelos vícios do amor canhestro, mas a dúvida, o que ela deseja, helena?, por que eu?, de fé abaulada que em rodopios me faz pensar o que de deus para a mágoa que retomo cada instante redobrada, servo revoltado com pagamento injusto, que tanto me dediquei que mereço semelhante recompensa?, tento o cérebro para uma guerra iníqua, a ferrugem tragando meus fuzis, o que de maldito naquele carro que desobedeceu um sinal correto, ajustado por leis eletrodinâmicas, trafegando deliberadamente na linha de seu peito, quando ela para mim, o que de culpa, corria voluptuosa adensando sorrisos numa face que era minha remissão, percebi que jamais, palavra fundida, eu-jamais, o corvo a repetir, entoando cantos irônicos, eu-humilhado, eu-torpe, eu-tudo exceto você.

quem para atender ao chamado?, recorrer às garras que mesmo de unhas horrendas sabe acarinhar?

você é a cidade, helena?, e o que me resta?

o que desejam?

mesmo assim, tão rígido e frio, quereria-os (cimentos e tijolos) como colo para mim.

aí reside a minha fragilidade e então preciso de uma vontade tesa para não deliberar ultrapassado o querer anterior saindo em debandada contra a decisão que tomei: não ser o que sei, poderia me tornar hoje.

ela joga sabiamente comigo, maneja as peças com experiência secular: saberemos disso quando, helena, eu sair em disparada rumo ao seu regaço

(ou)

disfarçar com um grito o estampido rouco de um disparo à queima-roupa

(e)

aqui do quarto, bairro, cidade?, espírito engolfado, vejo-me confinar em suas vísceras, ingênuo, recluso em um lar que não passa de uma fração de seu território, o corpo metido num linho charmoso, tons cinza para (seu?) dia vermelho, linhas delimitando excluindo agregando passos certeiros moradia definitiva, helena, essa fatalidade que nos cingiu, agora compreendo o quão vigiado, e queum vigor brotando desse fruto novo, empenhados na militância de uma ciência que me tem como cobaia, irei ao seu encontro, helena, o mais rápido que puder.

 

 

 

 
 
 

O homem que lembrava

 

 

 

", são eles, todos, os vorazes culpados de tantas memórias destruídas,”

(José Saramago, em Todos os Nomes)

 

"como uma árvore seca preserva ainda a memória de suas folhas".

(Tatiana Leão em seu blogue Fim da Mente)

 

 

 

não é o peso que deposita seu jugo nos ombros ou mesmo a sua cautelosa presença, mas a inexistência de uma certeza consciente e é por isso que há tanto a recordar?, ela entretanto já se dirigia a um outro quarto e lá inumeráveis arquivos, porque aos números impuseram somente tarefas de exatidão e jamais aquelas que dizem respeito a memórias, sendo assim o motivo pelo qual freqüentemente dizemos um certo dia em vez de em vinte e quatro de maio de mil novecentos e oitenta e dois beirando as três da tarde, as recordações se impõem às contas, os fatos ao desassossego dos algarismos, já supunha um amontoado de caixas e gavetas incomodamente espalhadas, mas a minha imaginação humilde não previa tamanha organização, como se tivesse completado, nesses quinze anos em que ficamos distantes, variados cursos de catalogação, e em poucos minutos estendia-me um bilhete e eu ri achando impossível um encontro defasado de tanto tempo e embora tenha aprendido a assimilar da incoerência do mundo tanto a insensatez quanto a surpresa, surpreendi-me ao encontrá-las emaranhadas em também inesperados tempo e lugar, reconheci a caligrafia cinzelada e precisa do futuro engenheiro, ela compreendendo devolveu o papel à sua origem, fosse desaparecer ou mesmo o esquecimento, e antes que lhe cedesse o triunfo, demandei a coerência daqueles arquivos e indicando-me os móveis, explicou que as gavetas continham as fotos e estavam apartadas não por qualquer definição de época, indicando as etiquetas, expunha que distavam umas das outras por questões de prazer, não organizacional, mas o outro, que nos impedem de propalar a estranhos e às vezes até aos mais chegados, onde foi escrito que há amigos mais próximos do que irmãos?, estas proximidades não carecem julgamentos, era que falava, portanto, do prazer carnal. e embotava-se o perene em sua face, dando vez a um sorriso congestionado embora radiante, notando a minha incompreensão adiantou-se: dos outros, e exibindo uma foto cujo colorido se mantinha intacto, como se a cópia houvesse sido feita há pouco, e apontando a imagem inquiriu sobre sua beleza e como não a conhecera em semelhantes perfeições, invejei o fotógrafo, que partilhou não apenas o corpo exuberante, mas também toda aquela plenitude, e o que deveria concluir dessa exposição?, ela outra vez, previsse a dúvida e que da mesma forma necessitava encadear as peças de modo correto, arriscando, caso contrário, que tirasse minhas conclusões, nem sempre lineares, como bem se lembrou, prosseguiu: era dele, jamais satisfiz outro homem naquela intensidade. desejando, como por extensão e definição o fazem os demais seres, atê-la à ruína da minha vida, por meio desta lembrança e por simples competição, quis ocupar o lugar daquele e fosse o desespero, procurei seu rosto e não restava que decepção, apontei as caixas e ali as flores, e divididas não em espécies, mas em aromas e maciez, embora possuísse o olfato como o tato treinados para distinguir entre essências de canela e olmos a que melhor a sensibilizasse, bem como a brandura do contato de suas mãos, não era por suas habilidades que desunira begônias e gerânios, mas pelos outros, e antes que concluísse pelo altruísmo, ou desconfiasse de educações mineiras, em que a mulher é domesticada para bastar a seu homem e obviamente servi-lo, pressenti que a sua satisfação encontrava guarida na descoberta e conhecedora das artimanhas masculinas, que erigem couraças mais portentosas do que pêlos no peito ou mesmo barba por fazer, ou silêncios recalcando ignorâncias em vez de reflexões, antes de averiguar pergunta a pergunta, mesmo que desviasse os olhos amendoados se a encarassem, escuros como tempestade vindoura, reconhecia que se as violetas corrompem, as rosas, sobretudo brancas, traem, e assim entendia como tratar a um e claro, a outro. e portanto correspondia a acautelar sobre a natureza de seus sexos, precavendo-se para não sentir além do que planejara, pois se aos homens atribuem frialdades, às mulheres, cautela e planejamento. e as fotos, com idêntica classificação, não as encontrando a esbarrar com um lírio ou ainda um bilhete, fato raríssimo, ao que pude concluir, dada a intensidade que sobraria a este agrado, desconhecendo se seria, a exemplo de maiakovski, toda coração, e em caso afirmativo, carregasse em seu corpo-âmago tamanha resistência para enfrentar demônios ou, como dormíssemos, um ruído inesperado rasgando a quietude de nossos sonos, um elefante de porcelana a tombar e após, ficar sem uma orelha, zombei de seu susto, proferindo se tratar de seus fantasmas, que todos nós os carregamos, mesmo em tardes de verão ou em dias de namorados, e dessa raridade posso supor que seja tamanha, que sequer tenha acontecido, isto é, fotografia, flor e bilhete ladeados, e como cobicei aquela posição, somente para imprimir na hierarquia de seus valores, em cume mais elevado, meu nome. que poder nos dão em batismos, e que responsabilidade!, honrar não o verbo, que este para nós não representa muito, visto que alheio, pertencendo desde a bíblia a uma criatura superior, mas o substantivo, e a tarefa que temos de completar antes que o fim o exclua com todas as letras, é suplantá-lo, salvá-lo à nossa destruição. tendo recolhido, em escalas menores ou mais importantes, a impressão que me sugeriram as matérias, e portanto me doutrinado com a facilidade do transitório, velando apenas por um passado que não me tenha incitado alegrias irrestritas ou infelicidades excessivas, vertido em doses controláveis, como um resto de cachorro que não nos valeu como melhor amizade ou que prestava somente para coisas práticas, por exemplo, buscar o jornal ferozmente lançado pelo jornaleiro à soleira da porta, quando já fatiava o pão ou enchia o copo com suco de laranja, e ainda assim não logro deste cão a coleira ou uma pata devidamente conservada em formol e transformada em berloque, sequer um retrato, talvez uma namorada que não tenha excedido as raias do sexo, também dela não guardaria a camisinha da última noite, ou a calcinha do primeiro orgasmo, ignorando, portanto, as razões para se ocupar com tantas provas de que o tempo ocorreu como dizem os papéis ou as flores, perdendo, neste caso, o encanto da invenção, porque se expusesse que havia sentido uma decisiva paixão por ela, imediatamente retrucaria, de posse de um bilhete de dezesseis anos, retorquindo que a amava, conforme pode ser lido na linha dois do referido documento, e o meu respeito cartesiano pela lógica se encontraria coagido a aceitar como amor o que a experiência dos anos me fez inferir como tesão, intuindo sábia a minha avó, que ainda hoje sentencia que recordar é sofrer duas vezes, só assim o é, porque do intangível brota a frustração, e a parte todas as coisas, que devesse estar ali pela quitação de uma promessa antiga, já que em seu cérebro era vazio onde me detive, encostado na mureta, de papo com o professor de história, a mirar o sorriso tanto de derrota quanto de galhofa, ou em outra ocasião, já de cabelos compridos (e você um dia esteve assim?) antevendo a paciência e também que minha cabeça contivesse afinal um sistema mais preciso de arquivos, dotado de tecnologias orgânicas que permitiam o acesso a eles de modo mais rápido ou aleatório, embora desse hábito, o de acessar as pastas, me utilizasse apenas nos dois casos citados, o do cachorro imprestável e o da namorada substituída, e posso saber o que prometi?, ela avançou. você. e trata de mim esse seu resgate? tão-somente. pronto, me tem. não, e que daqui a dois, dez anos o que possuirei de verdade é este agora que tanto a atormenta, havendo, portanto, uma única maneira de me diferenciar dos demais. sim, sei do que fala, é de você, não guardará retrato ou flor ou carta, mas não se esquecerá, e daria tudo para que mudasse de idéia. e por que tanto assim? porque me machucará. e se importa com ferimentos? os dessa espécie sim. e de que espécie são? daquela do rancor, que pelo menos eu seja um caso que não pertença aos dois que você expôs. disso eu não posso saber agora. então só me resta uma atitude: que nos duremos o ínfimo, não se guarda tão pouco. ou o máximo, que nos amalgamamos até nos desprezarmos. ou. e que pode ser, na sua aritmética, esta bagatela, um dia, dois, cinco? e essa abundância, cinco, onze anos? teremos de descobrir. e arriscar. sim, e arriscar.

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Insônia

 

 

era verdejante e íngreme a palidez e pressenti a ardência de suas cutiladas, já quase saciado de uma verve de sonhos, enquanto arrastava o sono que rascava a lâmina da hora quase obsoleta, sobressaltado me rendi aos espasmos da veia, dilacerante em seu dever de vida, e assim era porque o cansaço borrifava seu pessimismo nos homens sobrecarregados de cotidianos, chamou-me aos brados à atenção adiada, o pulso desafogado em velocidade e pânico, a epiderme suarenta desejando o alívio de uma coberta — ou de um olhar piedoso —, as pernas desengrenadas, buscassem o cansaço de uma corrida, o peito inchado pela angústia da impossibilidade de serenar o cérebro palpitante de seu dono, corri ao telefone, tamanha emergência em conversar e, aterrorizado com o corpo indomado, cogitei de repente uma morte vulcânica, algo em mim rebentava em descontrole e êxtase, haveria um tempo de avisar os amigos?, a família estaria predisposta ao inevitável?, alô, quem é?, o que eu faço?, e agora?, e agora?, qual o passo seguinte?, prostrei-me em choro e medo, dali a pouco seria uma massa vagante de desespero e não podia me defender, iminente a derrocada, levantei-me lembrando do carro e um pouco consciente do perigo, injetei acelerações no motor obediente, rumei para a pista, o som convulsivo era cuspido dos alto-falantes em decibéis elevados, decidi gritar, como se diante desse protesto alguém abandonasse os motéis, os postos, as casas noturnas pelas quais passava impaciente, e censurasse o incômodo que lhe causava, devolvendo-me, portanto, à saturação dos hábitos e, principalmente, à consciência, mas não me escutou esta pessoa, talvez diante da barreira do movimento fosse impotente a minha raiva, parei o veículo, deveria ser ali que tudo se encontrava, naquele terreno isolado em que até as plantas desistiram de vingar, pus-me a caminhar, inicialmente passos tenros e decisivos, mas depois que a aflição recobrou sua firmeza, parti em disparada e foi perto de uma ponte, ao divisar um córrego escorrendo suas águas na inevitabilidade do curso, que me sentei, os pingos de uma chuva fria insinuando o fim da contenção de um sofrimento jamais ansiado, mas presente, como a saúde antes da moléstia. vi um peixe e pareceu-me que, ao pular de sua prisão cristalina, almejasse a ousadia de um novo respirar, um oxigênio desconhecido para sacudir a sua existência molhada ou então fosse somente o choque entre duas umidades a excitá-lo e não quisesse enxugar as escamas ou aprofundar-se na aventura do suicídio, mas se mostrar grato porque dali a pouco os vaus estariam mais cheios e intuía que sua vida derivava dessa abundância, como a minha me pareceu atada ao seu exemplo. regressei ao carro e, observando os pingos salpicando o pára-brisa, torcia para que, ao escorrerem, encontrassem um caminho comum e se unissem, formando, portanto, uma gota maior, que acelerasse rumo ao capô e finalmente tombasse na terra, dissolvendo-se em poças lamacentas d´água. não somos assim?, nos juntamos para irmos mais rapidamente de encontro ao limo?, e retornando, amansados os cavalos galvanizados, entrevi as luzes delirantes de uma boate e necessitando de uma bebida para turvar o raciocínio ainda níveo, segui para lá. uma vez observando as mulheres e suas calças apertadas, saias, bustiês, baby-look, meia, sutiã, uma indústria eriçada do orgasmo e do desejo, a madrugada rija a ponto de poder lacerar qualquer estorvo, que me ocorreu novamente a proximidade da morte, o coração falhando entre uma batida e outra e por vezes desabafando em estrépitos vacilantes, e mesmo consciente que jamais ambicionei um filho, meu corpo revoltoso me contradizia e o instinto, essa incongruência biológica, queria multiplicar o meu sêmen, o sangue, a própria carne, enquanto restasse tempo, e talvez até por isso recorresse à coragem do álcool, que conversei com uma delas, em outra oportunidade eu não seria engraçado daquela forma e certamente ela não retribuiria, mas os animais sentem e exalam cheiros que contribuem com seus propósitos e foi por pouquíssimo que não cometi a imprudência de me perpetuar em uma falsa loira, que possuía, a despeito disso, ancas adequadas para o parto e peitos macios e chorumentos de boa leiteira. é quando eu escolho na sua carne aquele pedaço mais enviesado e também  mais desejado e ainda, mais fétido, para daí me alojar, sumido na enfermidade de um quarto longínquo, estreitando mais seus músculos à medida que decaímos. tudo isso constrói minha imaginação e ela mesma me salva. ou o cheiro visguento da vodca apodrecendo seus olhos tortos, a maquiagem de dias, e o rebolir de suas horas cansativas. lá fora a escuridão se manchava de arrogância e aurora. se tateasse a espessura da noite corroída, incompleta, suspeitando da incerteza desse ventre escuro a envolver-me, se algo em sua natureza de esconderijo falhasse primeiro e para sempre, seria a claridade. ou quem sabe o nada rasgando essa névoa de azeviche, inserindo uma fatia de sua peçonha para contaminar de vácuo o resto de um latejamento preguiçoso, mas que ainda é vida. se comprovasse essa inexistência mesclando ao veneno a ansiedade de minha mão, demonstrando com o vestígio de meus dedos a sensação oca de suas vísceras, seria a possibilidade do fim. ou a lâmpada, holofote guiado às suas mãos, seivas indóceis respondendo à cólera da dona, palmas entulhadas de vontades de provas, a visão guiando a fé. criança que papai, um professor de ciências, hábil em interpor entre a miséria e o idealismo o granito de sua esperança, trouxe de seus laboratórios uma aranha ainda viva, espremida em um pote de vidro, o abdome enfunado de ovos, as quelíceras (naquele tempo chamaria de ferrões) inquietas mirando alvos inalcançáveis. então a vigiei, outro animalzinho seduzido por sua realidade pelosa e soturna, as pernas mirradas apoiando um corpo robusto, ambos. escapando a semelhante desvelo, nasceram sem minha testemunha. esquecidas na clausura transparente, não me atrevi a libertá-las: podiam se voltar contra mim. eu, lento demais para capturar-lhes uma ceia (as moscas ainda me ultrapassavam em agilidade), lançava inutilmente ao seu alcance o que encontrava ao meu: alface, presunto, tomate, açúcar. famintas, as crias cederam ao êxtase do instinto a sanha de suas bocas e, ignorando a delicadeza e o sabor dos alimentos que lhes atirei, avançaram rumo à mãe. passiva, concedeu ao apetite de sua prole: pernas, tronco, vida. assisti horrorizado ao ataque e, após alguns dias, finda a polpa que as manteve ágeis e monótonas, as irmãs lutaram entre si e se devoraram. seus restos ainda puderam ser aproveitados pela outra criatura, já um tanto crescida e alheia ao seu futuro (breve) de solidão. orgulhosa, entretanto. mais tarde encontrei-a morta, misturada a um pedaço de cenoura, como se no apogeu do desespero final tentasse tragar um mundo maior que o seu. desde então o medo incessante de ser engolido por meus semelhantes. que retornei ainda outra vez. em casa, refugiei-me na sacada para um outro cigarro e cerrei meus dedos na tela, que outrora evitou (acho melhor crer nisso) a queda (ou o pulo) de alguma criança, sentindo-me encarcerado, ainda fechei a porta que me levaria de volta à casa e, agora sim, completa a cadeia, impus todo o meu fôlego no estertor do grito, a minha segunda jaula construída (a primeira havia sido a cabine do automóvel), percebi também ser a claustrofobia que me aterrorizava. ainda escuridão e alheamento. a madrugada desbotando. apagava-se um derradeiro enxame de estrelas e notando a insignificância de sua luz na tarefa de nos iluminar e que no entanto o homem por vezes deseja alcançá-las, e quem sabe descobrindo-nos também, concluam sermos dois nadas latejando no cosmo, e que devamos prosseguir nossas pulsações até a descoberta do tato: os contornos são a memória dos cegos.

 

 

 

(imagem ©sebastian górnik)

 

 

 

 

 

Whisner Fraga (Ituiutaba-MG). Escritor, autor de Coreografia dos danados (contos, Edições Galo Branco, 2002) e A cidade devolvida (contos, 7Letras, 2005).