Espinha de peixe

 

 

Não era sempre

que comíamos peixe no almoço.

Meu avô, cuidadoso,

 

retirava espinhas para

que não as engolisse.

Deixava o aviso:

 

percebido o sufocamento

comesse pão.

Oscilava a mão mostrando

 

como o animal fazia antes

de ser morto e acrescentava:

um homem do mar jamais se sufoca

 

em terra firme.

Temo essa espinha da memória,

osso de outro ser

 

dentro de mim,

escombros marítimos que

contam histórias de

 

náufragos.

Fui obrigado a comer sob

os olhos arregalados do capitão

 

e seus grossos dedos.

Cada espinha um olvidar de ondas.

Atracado o navio

 

engulo o mar.

Não há mais espaço

para terra firme.

 

 

 

 

 

 

Cisco

 

 

Meu coração,

uma sala varrida

com o descuido

de vassoura velha.

 

Cansada e arqueada,

não dá conta de restos a piaçava,

verte a poeira escondida

para debaixo do tapete

 

com fios de dia

e uns cabelos de sol.

Há vida no assoalho,

pequenos poros no carpete

 

e um mistério

envernizado:

pés vazios calcam

lágrimas marrons.

 

Vez por outra derrubam

uma louça e cascalhos

afiados perfuram

o pavimento dos tacos.

 

Sangra reminiscências,

o toque aveludado

do carpete.

Meu coração,

 

casa quieta

como a solidão

nos pelos de um gato

— triste e elevado —

 

delicada esfinge de carne

que dorme à porta,

ranger de dentes que

abre fresta,

 

talho.

 

 

 

 

 

 

Alcateia

 

 

Amanso um lobo

que toda noite

vem roer minhas

 

pálpebras.

Pelo grosso e áspero

que arranha a respiração.

 

Reclina-se sobre

minhas costelas

com o peso de alcateias e

 

saliva a fome da manhã.

Uiva silêncios.

Não aceita água qualquer,

 

muito menos a brandura

da têmpora.

Imóvel em meu peito,

 

observa a frágil janela aberta.

Não há correntes que o prendam,

mas nem por isso sonha

 

a liberdade do campo.

Amanso um lobo que vem

saciar seu cansaço

 

na rigidez da minha sede.

 

 

 

 

 

 

Front

 

 

Escrevo porque trago no peito

granada sem pino;

pólvora em cada branco.

 

 

 

 

 

 

Quando perto das árvores

 

 

Quando perto das árvores,

o cheiro do orvalho abria nossos dentes,

o escuro do tronco inventava passos,

o seco das folhas eternizava ouvidos

o farfalho aguçava a fala.

Pisávamos o áspero do tempo

e as aflições não duravam

mais que as nuvens cheias

de tormento.

 

Até que num súbito

instante confidenciou

seu nome na voz de ave.

Desde então é dele

que nascem todos

os gorjeios.

 

 

 

 

 

 

[ Máquina ]

 

 

há uma opressão de girassóis

e primaveras

em meu peito

 

as ruas cheias

os mundos cheios

— de fato nada repleto

 

todos tropeçam

na falsa lua

de um velho relógio

 

aguardam a anunciação

na verde sala de espera enquanto

as coisas reclamam a voracidade de máquinas

 

e respiramos

borracha e cobre

e rostos queimados

 

no fundo do peito

um arranhar de giz

brota, como se um menino

 

ousasse caminhar

inexperiente pelos chãos

da via

 

mas ainda que pisasse

suavemente espelhos

seria irremediável aprender rachaduras

 

há uma rede de pescar

(rasgada) no mar do meu peito.

 

 

 

 

 

 

Sanfoneiro

 

 

                   Para Gonzaga e Dominguinhos

 

 

Na sanfona,

cada marfim é um calo

de quilômetros.

O pedaço de seca

que jaz nos castelos

desliza pelos grossos dedos,

arrepia o canto

das enseadas que

rasga o peito.

Não é triste a

memória melodiosa das águas,

é áspera e firme como

o berrante que imita o pasto.

 

Para o sanfoneiro

dor é música.

 

 

 

 

 

 

Leite branco

 

 

                   Para Zilda

 

 

Quando pequeno,

observava a mãe

na faina diária

de lavar a lua:

bacia repleta de leite

e estrelas e roupas

inundadas de branco.

Seus dedos poliam com

exatidão o reflexo da orbe,

acalmavam impurezas de astros,

ressequiam o lamento

das constelações

no varal da noite.

Durante um longo tempo

minhas roupas abandonaram

o olor da alfazema,

algumas partículas do Big Bang,

e cultivaram os buracos

do universo.

 

Assombrosamente

eu me vestia

de iluminado.

 

 

 

 

 

 

A mulher coberta de sede (Lot)

 

 

possuía ombros

roídos

como

as pedras

da cidade

que queimou

na confusa santidade

 

partiu

sem jamais

ausentar-se:

o desejo calcifica

o assombro

 

desperdiçou olhos

de lamentos

porquanto não

viu a sede das

entranhas

 

e no ar

como um

vulto salino

fez-se

tempo de mar

 

 

 

 

 

 

Marimbondos

 

 

Tenho predileção pelo rasteiro.

O que se apequena me interessa sobremodo.

Observo o chão até quando dialogo com a morte.

Enviesado como bichos

que farejam o impulso num poste,

desejo mais o pertencimento das coisas

que a distância.

Têm fome meus pequenos olhos.

Reviram margens, poeira,

locais onde resista a permanência.

Inclino-me pelas tardes que o canteiro balança:

é no vulto que mora o fardo das coisas.

A exemplo da grandeza,

um cristal bruto é mais emaranhado

de universos que inutilidade mineral.

Fóssil de nebulosas em sua antiguidade.

Absorver o bruto deveria ser ensinado no colégio.

A pedra é mais velha e continua a crescer por dentro.

Simplesmente esquecemos de nos avolumar.

Erguemos aviões mas não prolongamos o corpo.

Ajeitamos terno, ensimesmamos rugas.

Predileção mesmo tenho é por marimbondos,

livres na imensidão de asas

mas atados à comodidade

do casulo.

 

 

 

 

 

 

Beleza

 

 

algumas palavras

são extremamente belas

não se sujeitam

aos frêmitos da voz

Morte

por exemplo

é tão bonita

e aguada quanto

Rio ou Mar

despenca

colinas escuras

na passagem

entre o feixe

e o arenoso

 

Belas

algumas palavras

não quedam

ou oxidam

duram mais

que a boca

e o sentido

dos dentes

 

 

 

 

 

 

Cortejo

 

 

Debaixo do peito

um enterro é sempre

mais árido

que o sepultamento

em terra.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. É poeta, cronista e editor. Trabalha como coordenador editorial e produtor gráfico. Publicou Sempre existe um último momento (Hífen Editorial/ed. autor,2011), Vidro de guardados (ed. autor,2010). Integra as antologias 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Vol. I (ZL Editora, 2014), Qasaêd Ila Falastin — poemas para a palestina (Patuá, 2013), Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, 2012) e Agenda poética celacanto (Celacanto, 2011). Assinou uma coluna de crônicas no blogue editorial da editora Alta Books entre 2012 e 2013 e possui textos publicados em várias revistas literárias, no Brasil e na Espanha, entre elas Zunái, Eutomia, Cronópios, Odara (UFRJ), Subversa, Saúva, Cuarto própio, generación espontánea. Costuma perseguir silêncios e se encantar com o ínfimo.

 

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