Em foto original de lhl
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                                                                                                                  
 

 

        Parafraseando Oswald de Andrade, "em Recife, ano 446 da deglutição do Bispo Sardinha", pensei no movimento antropofágico de 1928 ao deparar-me com um diálogo entre um sacerdote e uma velha índia, no relato Atuação dos Jesuítas na Formação do Brasil, de Irineu Cavalcanti:

— Minha avó, se eu lhe desse um pouco de açúcar, ou outro bocado saboroso de lá de minha terra, minha avó comeria?

Responde ela:

— Meu neto, nenhuma coisa da vida desejo; tudo já me aborrece; só uma coisa me abriria o apetite: uma mãozinha de um tapuia de pouca idade, tenrinha, para chupar aqueles ossinhos, creio que, então, tomaria algum alento, mas, coitada de mim, não tenho quem vá flexá-lo.

Não gosto de fazer citações longas, mas essa, tenham paciência, não resisti em fazê-la, porque me mostra um outro lado da antropofagia brasileira, diferente do que eu estava acostumado a encontrar nos manuais. O fato ocorre antes de 1759, ano em que os jesuítas foram expulsos do Brasil. Os antropólogos me diziam que a antropofagia praticada por nossos índios era eminentemente ritualística. As palavras da velha índia me mostram que por trás, vamos dizer assim, dessa função manifesta — para usar Robet K. Merton — pode esconder-se uma função latente, ou seja, é manifestamente ritualística e latentemente gastronômica, para não falar chic.

Para horror dos monótonos e delicados vegetarianos, confesso minha desconfiança de que a carne humana deve ser saborosa, tão saborosa que os pigmeus da Melanésia, dizem os Indiana Jones, a chamavam de "porco comprido".

Perdoem-me essa escabrosa comparação nestes tempos em que temos um gourmet na Presidência da República, mas suspeito que o sabor do feto humano que uma família miserável de Pernambuco estava um dia desses comendo numa lixeira era algo parecido com o dos leitõezinhos desmamados nas ceias de Natal dos nossos banqueiros, nestes tempos do plano plurianual Avança Brasil (lembranças do Pra Frente Brasil?).

Dizem que o padre Anchieta ficava freqüentemente furioso quando sabia de colonos brancos mergulhados na antropofagia, como remotos precursores, às avessas, de nossos modernistas, a ponto de exclamar: "já se achou cristão a mastigar carne humana!". Quem sabe não seria carne de algum tapuia criança tão desejada pela velha índia?

Comecei este lero-lero (que expressão velha!) falando no modernismo antropofágico, tentando lembrar que ele procurava absorver os valores alienígenas para reformulá-los em produto nativo de exportação, e preciso terminá-lo emendando-o com esta tal de globalização que não é de hoje. Para nós, povos subdesenvolvidos, começou na década de cinqüenta. Ao invés de deglutir o bispo enlatado de uma cultura de massa, para transformá-la em coisa nossa, em criação autóctone, estamos sendo literalmente deglutidos e vomitados à imagem e semelhança do grande canibal do Norte.

E o pior é que não podemos chamar John Wayne para nos salvar.

 

 

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[Texto publicado originalmente na coluna "Marco Zero", da revista "Continente Multicultural", 2002]

 

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Outro texto de Alberto da Cunha Melo em Germina