GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE
 [ julia filardi | autorretrato ]

 

 

 

 

 

 

Dirceu Villa – Nota-se no seu trabalho fotográfico uma variedade impressionante de enfoques executados com completo domínio do material visual, mas chama a minha atenção particularmente o uso da cor, explorada em possibilidades muito variadas também. Alguns fotógrafos tendem a preferir o preto & branco. Sendo você também pintora e artista plástica, isso teria efeito em sua fotografia, desse modo?

 

Julia Filardi – Sim. A cor disposta em texturas, contrastes e gradações tonais fisgam meu olhar. Acredito que não apenas a cor sofra tal efeito, mas a composição e toda uma ampla gama de escolhas vindas da pintura, como recortes de detalhes geométricos que muito se assemelham, por exemplo, à pintura abstrata. Depois de um tempo fotografando fui percebendo padrões de composição, imagens onde predominavam linhas circulares, perpendiculares, orgânicas.

 

 

DV – Qual é a diferença entre um trabalho de interação dinâmica com modelos (com efeito até dramático, ou performativo, e erótico na sua fotografia) e outro de descobrir nas coisas um quadro que se deseja fixar? Quero dizer: você se sente dirigindo a ação, ou concebendo cenários, e isso diferiria muito de quando você ajusta o ângulo e o foco, mas a foto já está lá de alguma forma seminal?

 

JF – Certas fotos são arranjadas; outras, pegas de supetão, filhas de um feliz acaso. Há uma distinção radical, o tempo é outro. Uma é planejada, mesmo que seja em instantes. Outras te surpreendem. Pode acontecer de eu perceber que algumas imagens são interessantes só quando vou editar. Há, é claro, diferença no que tange à interação (embora sempre presente com os elementos de uma foto mais estática), e tudo varia demais de uma foto com pessoas para uma outra de paisagem/geometria/arquitetura, por exemplo. É sempre muito singular,  cada foto tem sua peculiaridade. Situações de cenas prontas, em que é preciso só clicar; cenas em que você elimina objetos, insere ou cria toda a cena. Em se tratando de pessoas, cada modelo é um universo: com alguns há um vínculo quase instantâneo, e a qualidade dessa ligação fará total diferença no resultado de uma foto; com outros é uma construção ou até um embate. Pode existir diálogo intenso ou silêncio, direção clara, fluidez, uma trava.

 

 

DV – Além da evidente conexão com as artes plásticas, há alguma outra arte que põe você particularmente disposta à fotografia? Noto mesmo que há um aspecto cinético muito forte em várias de suas fotos, mesmo em algumas até quase abstratas.

 

JF – A dança. Penso que exista uma espécie de dança natural nos gestos cotidianos. De tão triviais, passam despercebidos. O corpo no espaço e sua movimentação me fazem pensar. Fotografar o carnaval do Rio de Janeiro foi um exercício muito rico, o corpo em dança, exposto, mas surpreendido pela câmera (o que era minha intenção), eufórico ou logo após, já exausto. Fiz aulas de dança dos 9 aos 15 anos. Antes disso, gostava de dançar livremente pela casa, envolta num enorme véu com o qual criava figurinos variados e me apresentava aos passantes em frente de casa. Hoje tenho um grande interesse no butô (a partir do qual fiz uma série de estudos de desenhos), em dança africana e em alguma coisa da dança contemporânea. O teatro também tem despertado minha atenção.

 

 

DV – Há algo muito interessante em sua fotografia, que é um uso da ironia visual, como naquela foto "sem deus", pichado em concreto, diante de uma avenida cheia de carros; ou formas que sugerem coisas; ou mesmo aquela do "congresso em chamas", que por um truque do ângulo o Congresso Nacional parece estar queimando. Como funciona isso, é o estalo de uma oportunidade? Você está particularmente atenta a isso ou simplesmente acontece?

 

JF – A foto "sem deus", em particular, foi feita numa passagem que realizo diariamente, portanto foi fruto de uma observação oportuna (combinação das imagens), mas persistente (dada a repetição da visualização). Hoje o pichado não está mais lá, mas um amigo que mora há mais tempo na cidade comentou que logo picham de novo.  Já a do "congresso em chamas" foi o estalo de uma oportunidade: somente ao subir na pira da pátria (nome sugestivo), sem nenhuma pretensão, girando e explorando os ângulos, surgiu essa ideia. O processo de criação pode variar. 

 

 

DV – Quais são os fotógrafos e fotógrafas — ou trabalhos fotográficos — que você mais aprecia? Podem ser os que você tem apreciado mais recentemente, também.

 

JF – As referências de que tenho estado mais próxima: Duane Michal, Helena de Almeida, Masao Yamamoto, Issei Suda, Josef Koudelka, Anne Brigman, Sally Man, Francesca Woodman, Eikoh Hosoe, Miwa Yanagi, Ken Rosenthal, Shōmei Tōmatsu, Nobuyoshi Araki, Alexey Titarenko, etc.

 

 

DV – Como tem sido a recepção ao seu trabalho fotográfico? Você utiliza meios de divulgação digital, um site como o flickr, o facebook, & tem também o seu tumblr, recebeu convites de outros sites: sente que há espaço para a fotografia autoral no Brasil?

 

JF – Ainda não fiz nenhuma exposição de minhas fotografias em meio impresso. Tenho usado por enquanto esses meios de divulgação digital (flickr, tumblr e facebook), os quais acabam também sendo espaços de troca entre artistas. Recebi recentemente o convite de um site que sempre foi uma referência na descoberta de artistas novos e também antigos da história da fotografia mas, infelizmente, e provavelmente por razões de censura à nudez na arte (o que também ocorre no facebook), foi retirado do ar após anos de depuração de material de alta qualidade em fotografia. Mas está sendo refeito em novo endereço e a postagem com meu trabalho será atualizada em breve.

 

O espaço para a fotografia autoral de qualidade ― como para toda boa arte ― não é farto e bem valorizado, via de regra. Temos o nicho dos fotógrafos tradicionais e muito profissionais/técnicos, e, no pólo oposto, os artistas contemporâneos que usam a fotografia como linguagem, que podem ser bastante tradicionais, também, no sentido de cair em lugares-comuns, se repetir e, muitas vezes, numa absorção fácil pelo público, ganhar mais espaço mercadológico. A visibilidade de um artista é algo muito delicado, depende de múltiplos fatores que extrapolam a qualidade da arte em questão.

 

 

DV – Você é do tipo técnico ou intuitivo? Ou ambos? Se se ocupa de técnica, ela antecipa a foto como preparação ou acontece simultaneamente com o processo compositivo?

 

JF – Sem pensar duas vezes, intuitivo. Embora consciente da importância da técnica. Em certos momentos as duas coisas se fundem sem que eu me dê conta. Com a experiência, técnica e intuição passarão a andar juntas, espero.

 

 

 

 

 

 

Julia Filardi é fotógrafa e artista plástica nascida em Bauru/SP, em 1978. De avó pintora naïf, pai músico e mãe professora de piano e artes plásticas, inciou seus primeiros cursos de desenho e pintura aos 14 anos. Mudando-se para Londrina em 2002, aperfeiçoou-se em técnicas antigas de pintura. Participou também de cursos na Escola Visual do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde surgiram suas primeiras fotos, integrando a série "Cores-luz: fragmentos televisivos". Dirigiu, com sua avó Myriam Sanson, o Ateliê Expressão em Bauru (1997-2011), e deu cursos de desenho artístico, pintura e história da arte pela oficina Glauco Pinto Moraes. Desde janeiro de 2012 reside em Brasília, continua dando aulas em regime de ateliê aberto, cursa faculdade de artes visuais e faz formação em psicanálise lacaniana.