©mário rui feliciano
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

"Os poetas são malditos mas não são cegos,

eles enxergam com os olhos dos anjos"

 

 

Roberto Piva não foi um poeta nascido em São Paulo, no dia 25 de setembro de 1963 e falecido por complicações de Parkinson e câncer no fim da tarde de 3 de julho de 2010, também em São Paulo. Ele ainda existe por aí e, assim como Helena Kolody flana por Curitiba, estrelando os eventos, saraus e abençoando os poetas paranaenses, Piva ainda bebe nos bares, vai às peças de teatro independentes, visita seus queridos, lê Dante, causa balbúrdia e é lembrado com muito carinho e respeito por aqueles que o conheceram.

Como citado no livro Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia, de Camila Hungria e Renata D'Elia (Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011), ao saber que iria morrer, Piva disse que desejava caixão lacrado, porque não queria ninguém o olhando. Não queria padre. E não queria ser enterrado. Dizem que ele não tinha medo da morte, essa desconhecida que a qualquer momento nos encontrará e nos abraçará com sua capa, levando-nos para onde ninguém sabe. Alguns esquecem que essa dama negra e luminosa existe e, como toda pessoa imbuída de grande consciência, percebo, pelos seus poemas, que Piva não a esquecia. Por isso, sua relação de intensidade com a vida, o experimento de drogas, a mão nas colmeias sexuais, a transgressão dos valores morais, as experiências-limites. O movimento beat tem muito a ver com isso: o fato de existirmos sem saber por que e de não nos curvar às regras impostas pelos outros, porque devemos ser os senhores de nosso destino e viver nossa vida com intensidade, aproveitando tudo conforme achar conveniente. E, para isso, muitas vezes precisaremos quebrar leis, sair da realidade de formas lisérgicas e dionisíacas e confrontar sistemas. Enfim, transgredir, em todos os significados possíveis atribuídos à palavra "transgressão". Ainda em Os Dentes da Memória..., "Roberto Bicelli costumava dizer que Piva era 'imorrível'". E até hoje ele continua criando polêmica. Mais vivo do que nunca. Quem mora em Curitiba sabe: cuidado ao falar mal de Paulo Leminski. Em geral, ele é nosso ai-jesus. E em São Paulo, entre alguns artistas, Piva é o ai-jesus. Por quê? Primeiro porque ele adorava e odiava São Paulo, assim como Leminski em sua relação com Curitiba. E, segundo, porque assim como existe um nicho de escritores, críticos e leitores que amam a estética, a naturalidade e a loucura dos poemas de Piva — e, acima de tudo, sua proposta ideológica de conduta em um cenário cultural paulistano até então recatado, com regras estilistas acadêmicas demais — existem estudiosos e leigos que detestam as coisas que ele escreve e suas escolhas estéticas. Ninguém está certo ou errado: todos têm seus motivos, suas coerências e posições. Roberto Piva é furdunço. Não o conheci pessoalmente, tampouco estudei sua vida e obra a fundo, mas pelo que soube com amigos próximos que o conheceram em vida, ele não fazia questão de agradar e, por isso, despertava o ódio de alguns. Por vezes, reagia agressivamente com os moralistas. Noutras, era gentil, afetivo e terno com quem amava. Complexo? Creio que não. Assumidamente rebelde e excêntrico, seus escritos não poderiam dizer o contrário. Piva afirmava não lapidar demais seus poemas porque a vida precisa ser vivida. Sobre sua relação com a escrita, Régis Bonvicino (2009) diz, em artigo publicado na Sibila | Revista de Poesia e Crítica Literária: "Noto que Piva, poeta superior a 95% dos que aí estão, tem fé na palavra e, digamos, muita fé na contrarreligião, representada pelo xamanismo. Não se esqueça que xamãs são caciques, ou seja, chefes, detentores de segredos, e não só mágicos, salvadores da humanidade — o que se choca, em termos relativos, com sua própria poesia, que se pretende libertária. Talvez a graça de sua presença e poemas resida nessas contradições tão veementes de uma pessoa doce".

Também é interessante perceber o estreitamento de Piva com a Astrologia e o misticismo em geral. Um que da música Esotérico escrita por Gilberto Gil e interpretada por Maria Bethânia e Gal Costa, outro que de Jim Morrison, cantando People are strange. Em vários poemas Piva faz alusão a elementos astrológicos, e percebo, especialmente, traços saturninos no meio de versos surrealistas e sensuais. Em 2008, a Editora Globo lançou três volumes das obras completas do autor. O terceiro volume se chama Estranhos sinais de Saturno e reúne o livro Ciclones, de 1997 e o inédito Estranhos sinais de Saturno (1997-1999), com manifestos de várias datas, e um disco compacto, com gravações de poemas lidos por ele mesmo, prefácio de Alcir Pécora e posfácio de David Arrigucci. A seguir, um dos poemas que contém traços de Saturno:

 

NOTURNO

 

Teus olhos não ficam bem senão em mim

Que desato o bouquet da tua angústia

Neste tempo de espera.

Sofres uma solidão recortada

Na tarde de duas pálpebras

Absorto no retorno das nuvens

Magoadas de outros climas.

Só eu sei, silêncio de jade,

Flor da manhã, Deus triste,

O que te consola do vento.

Só eu sei que não sabes

Eximir-te do enfado

Da noite das bocas.

 

[Publicado na Antologia dos Novíssimos. São Paulo: Massao Ohno, 1961] 

 

Piva foi um pioneiro no Brasil em vários sentidos, junto com outros poetas, principalmente Antonio Fernando de Franceschi, Claudio Willer, Decio Bar, Raul Fiker, Roberto Bicelli e Sergio Lima. Em artigo na Zunái — Revista de Poesia & Debates, Chiu Yi Chih afirma que "Em meados dos anos 60, Piva e seu círculo de amigos — Cláudio Willer, Décio Bar, Sérgio Lima, entre outros —, estavam profundamente mergulhados nas pesquisas do surrealismo e da poesia beat norte-americana. Esses dois últimos movimentos foram fundamentais para a renovação da arte. O surrealismo nos trazia a liberdade no plano da criação artística através do exercício desimpedido da imaginação. Não separava a criação artística da vida transgressora. E os beatniks influenciados também pelo surrealismo e pelas vanguardas modernistas acabaram atualizando esse mesmo princípio, criando inúmeras obras revolucionárias. Piva absorveu essa vitalidade renovando nosso modo de ver e fazer poesia. Radical como era na vida e na poesia, ele bebeu dessas fontes. Compreendeu tanto quanto Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e André Breton a importância do exercício da imaginação".

Haveria muito o que falar, pesquisar e ponderar sobre quem foi Roberto Piva e sua obra. Muito o que dizer sobre os beatniks e os surrealistas. Infelizmente, como ele mesmo dizia, a vida é para ser vivida, e, de certa forma, ficar escrevendo demais não faria parte da essência desse texto, por isso, a interrupção abrupta. Uma hora as coisas têm de acabar. Saturno sabe: a vida nos prepara solavancos e cortes. É quase sempre dolorido. E sábio.

 

Para saber mais sobre o poeta: documentário Assombração Urbana com Roberto Piva, dirigido por Valesca Canabarro Dios.

 

 

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Nota das editoras: a Germina recomenda aos seus leitores o financiamento coletivo para a construção, em São Paulo, da Biblioteca Roberto Piva, que guardará o acervo do poeta e funcionará como espaço cultural e ponto de encontro em torno da poesia. Participem: www.catarse.me/bibliotecarobertopiva.

 

Leia mais: Roberto Piva Está de Volta

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setembro, 2016

 

 

Priscila Merizzio é curitibana. Publicou os livros de poesia Minimoabismo (Patuá, 2014), finalista do Prêmio Oceanos Itaú Cultural, e Ardiduras (7Letras, 2016).

 

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