por que ela veio
Não sei como tudo
começou. O ponto exato do começo não sei. Isto para mim é tão insolúvel
quanto saber em que ponto nascemos, em que ponto morremos. Sei o
acontecimento, ou os acontecimentos, factuais, exteriores, que
antecederam o desejo, quase amor. Como um cinetoscópio mecânico que
antecedeu a arte do cinema. E aqui, a lembrança de uma representação
teatral, da tela, vem a propósito.
Tudo começou com uma
gargalhada. Havia um filme em cinemascope, uma adaptação de um conto de
As Mil e Uma Noites, em que um imenso gênio saía de uma garrafa trazida
à areia da praia pelas ondas do mar. Esse gênio possuía uma coisa tão
maravilhosa quanto o sair do gargalo como fumaça e lá nas nuvens surgir
medonho. Essa coisa era a sua gargalhada, estrondosa. Ela começava pela
irrupção de uma voz, de um jato saída de um túnel, ih-ih-ih...., a
subir, a tomar forma, que crescia para um ah-ah-ah-ah-ah-ah, como uma
metralhadora de trovão. Por adorar essa gargalhada, eu consegui dela uma
caricatura. A minha voz de adolescente era compensada pela força que eu
imprimia à garganta, pelo bom fôlego que sustentava o crescendo do
ah-ah-ah-ah. Assustava, pelo que me parecia. Pelo menos, ela me fazia
crer que lhe fazia susto.
Vejo-a de saia,
sempre de saia, em um tecido de cor clara, com as coxas róseas (e aqui o
sonho, com a sua trapaça e transparência de mil sentidos, com o seu
desprezo de tempo e lugar que invade e ultrapassa volumes, paredes,
despreza com muita razão a comezinha, cotidiana, geometria lógica, para
ampliar-se numa lógica arbitrariamente humana: os dados factuais da
história, do tempo, dos costumes daqueles anos, apontam que eu não
poderia vê-la nas coxas e de saia a um só tempo. As saias daquele tempo
desciam até os joelhos. Como vê-la então assim, como se tivesse a barra
subida? A razão, acredito, é que eu já possuía a visão de suas coxas com
a saia levantada, de um acontecimento mais caro que ainda não narrarei,
e ao vê-la de saia, de cor clara, como se estivesse de camisola à luz do
dia, a passear, organizo-a na "lógica" como se estivesse com a saia
levantada. Isto me diz a mecânica do sonho desmontada). Nessa visão
repetida, que eterniza as vezes poucas em que a vi de fato assim, ela
está no quintal da nossa casa, é de tarde, há uma sombra declinante das
4 para as 5 da tarde, e ela, a sua pessoa, está de costas para mim.
(Sempre de costas,
sempre sem mostrar o rosto, por quê? Sinto que se ela o pusesse de
frente, eu jamais teria a coragem de fazer o que fiz. E aqui devemos
dividir o peso e a carga da nossa culpa e covardia. Quando eu a lembro
de costas, a minha lembrança não é uma recusa ao real. Aqui não há esta
recusa. Lembro-a de costas porque, precisamente, de costas era a sua
maneira de se deixar e se oferecer a mim, para o assalto. Para o contato
direto, físico, imediato, esta era a sua forma, a sua sedução, a sua
covardia. Mas como ser herói aos 15 ou 16 anos? O caso não é de ser
herói, o arrostar um inimigo muito mais poderoso. Não. O caso é um
defeito moral, que assume o caráter de uma desonestidade. Nossa
desonestidade, fraqueza minha e dela. Fraqueza que era uma ativa
hipocrisia, porque mantinha as aparências de parentesco, de irmãos que
se respeitavam, de irmãos com inocência na carne, de um para o outro,
puros, enquanto o sexo campeava, a cavalgar, rebelde, solto e
desembestado. O conflito de ser besta selvagem ou besta domesticada. É
claro, a realidade mostrou, passamos a agir como bestas ladinas, assim
como diziam ser o escravo ladino, ensinado, que aprendera um ofício. Sem
que, é preciso que se diga, aos nossos próprios olhos descêssemos um
milímetro sequer do respeito que deveríamos ter, resguardados que
estávamos pela farsa e fingimento. No que tange à besta mesmo
tínhamos vergonha, medo, embora dela necessitássemos como um sedento
deseja e busca a fonte.)
Como um sedento
deseja e quer água. Como a carne deseja alma. Digo isto e me vem à mente
o desejo que ia e voltava, que avançava e súbito voltava-se num recuo,
para subitamente recuperar o avanço. O que desejávamos com este jogo? A
sua consecução, o seu fim, o seu gozo final? Não sei. Na impossibilidade
de ir ao fim, já não digo ao fim, que não sabíamos, que não conhecíamos,
na impossibilidade de exercer o percurso, o ir e vir do prazer, o
penetrar e sair do ferro na sua ostra, de penetrar enfim no sonho roído
e acalentado por nossos olhos baixos e carentes, na torturante
impossibilidade desse usufruto, exercíamos o jogo, o avanço e recuo do
que só agora percebo, era ele próprio, esse jogo, um simulacro do coito.
O sedento no deserto não atingia a fonte, a fonte viva e sumarenta. Mas
atingia um delírio com todas as características da água, que se bebia e
sorvia em gotas, ainda que muita e insuperável sede tivéssemos. Um amor,
um processo de amor que era uma distendida agonia. Não queríamos, nem
poderíamos parar. Mas não podíamos desenvolver até as últimas o que
desejávamos. Faltava-nos a esperteza, por Deus. Faltava-nos a coragem,
por Deus. Então houve a gargalhada.
Penso e repenso nos
simulacros de gozo que perdemos. Digo, nos simulacros de gozo real.
Digo, do puro gozo, ainda que não nos fundíssemos em um só corpo. Penso
agora, quando tudo ou quase tudo é perdido, nas possibilidades do amor
sem penetração que perdemos. Faltava-nos astúcia, conhecimento, apesar
da nossa hipocrisia. É natural, claro. É revoltantemente natural. Num
tempo em que tudo era desejo, em que tudo era prenúncio e anúncio de
carne fodida e fornicada, presente em teus pés, Carmem, nas marcas dos
teus pés na areia, na fita de cabelo esquecida a um canto na sala, na
tua voz, nos falsetes da tua voz, no calor da tua voz que me transmitia
um álcool no peito. Presente no teu pentear-se ao espelho, em um retrato
preto e branco do teu rosto, que mata, até hoje, com a tua expressão
alheia e séria na foto, fingida, na tua passagem próxima a mim, com um
halo e ímã no corpo radiante, que me fazia crispar os dedos para não te
pegar, tocar, amassar com a volúpia dos meninos que amassam o barro e o
comem, aquele corpo céu que nos negavam, mas que nem por isso
renunciávamos a seu gozo, numa época em que a totalidade era o desejo,
vejo agora, quanta pureza, quanto amor legítimo, de altíssimo nível
moral, perdemos. Por que não o praticamos com a seiva de nossa alma? É o
terrível da maturidade, da experiência. Lembrar os momentos da mais
absoluta fome em que não se comeu o fruto ofertado. A maturidade, a
experiência, alimenta-se desses dois pólos: no primeiro, o pólo do nada
ver, no segundo, o ver por completo, numa tardia
consciência.
Então eu penso e
repenso no gozo, nas suas possibilidades. Encontrarmo-nos fora daquela
casa, por exemplo.
Poderíamos sair os
dois sozinhos. Poderíamos ir ver algum parente, alguma pessoa amiga,
iríamos de fato, mas durante a caminhada, em algum lugar do caminho, em
algum lugar com mato, protegidos por árvores, sim, num lugar sombreado e
oculto, nós nos encontraríamos. Se a luz do dia nos detivesse, porque,
mesmo ocultos poderíamos ser descobertos durante o dia, porque do mato,
do lugar entre urtigas não possuíamos uma chave secreta, se temêssemos a
luz do sol como os vampiros, então poderíamos sair à noite. Seguiríamos
pelo escuro, por uma estrada de barro, até uma árvore gigante, larga,
que nos abrigaria no escuro fundo da noite... Nesse ponto a imaginação
fraqueja, tremula, assim como tremíamos no desfecho natural dos nossos
beijos e abraços. Agora tremo. Deve ser porque a imaginação trilha e
segue o vivido, porque mesmo a projeção para o futuro estremece. O
futuro do pretérito é um renascer do pretérito. Ou será pura e vazia
mentira. Então recuemos ao vivido na casa do pai
agonizante.
Mas recuar diante do
futuro do pretérito não é o mesmo que responde à interrogação:
Por que não saímos
dos limites daquela casa? Por que não fugimos da sufocante vigilância?
Se a nossa casa estava com uma cruz marcada (meu Deus, agora sei, agora
compreendo por que demos um decisivo passo seguinte! Por que a cruz, por
que a revolta contra a cruz, e as formas e conteúdos que tomou o nosso
passo seguinte!), dizia, se naqueles limites éramos irmãos, se ali havia
o pecado do incesto, um crime tornado monstruoso pela agonia do nosso
pai, por que não afastamos a cruz em brasa da nossa pele, afastando-nos
dela com o nosso afastamento da casa? Com a maturidade depositada hoje,
é mais fácil ver. Para sair, e com isto possuirmos um roteiro prévio
para o nosso encontro em algum lugar escondido, precisaríamos antes ser
íntimos na carne. Se não isto, pelo menos deveríamos possuir um acordo
prévio entre nós, que rejeitasse a hipocrisia de irmãos que se
esbarravam aqui e ali, por acaso. Precisaríamos de uma história de
verdade para os nossos carinhos. Isso ainda não tínhamos, porque com
obstinação isso ainda evitávamos. Ora, estava escrito que para
atingir o alvo teríamos que ultrapassar o abismo. (Suo, no pescoço e na
consciência.) E para atravessá-lo insuficiente era a ferramenta da
coragem, exigia-se também a experiência da safadeza, o vício, que por se
repetir se transforma cada vez mais numa afoiteza sem freio. Até então,
naqueles iniciantes círculos do amor, só possuíamos o instinto, animal,
mas não poderíamos foder como os cachorros, porque a esse instinto
descia o medo da punição, e do estigma. Antes fôssemos cachorros,
suspirávamos. Mas nem assim, nem essa impossibilidade de atingir o puro
animal afastava os nossos corpos. Dir-se-ia que melhor ainda nós nos
queríamos, porque duplicado era o prazer com o duplo gozo da proibição:
a proibição do sexo em nossa idade e o pecado. Se tu, a irmã e a heresia
em uma só pessoa, se tu não te podias abrir escancarada, aberta e voraz
como o desejávamos (digo isto baixinho, ainda, tão vivo ainda me é o
sentimento da proibição), então ao redor da escâncara, à margem da boca,
do amor, íamos pelo tênue fio da representação. Por isso digo, tudo
começou com uma gargalhada.
À maneira do gênio do
filme de aventuras, à maneira do gênio saído do fundo da garrafa, eu me
pus a gargalhar. Lembro da primeira vez. Tu te encontravas sozinha, à
tarde, no quintal. O pai se encontrava no hospital. Tu te penteavas
diante de um espelho, próximo ao banheiro. Então me ocorreu, não sei por
quê. Então me ocorreu que tão frágil tu te encontravas,e tão convidativa
ao assalto, e tamanha era a nossa fome, na altura dos nossos 15 anos,
que apenas de calção, sem camisa, envolvi-me num lençol, e de repente
soltei com todos os meus pulmões e minha precária arte:
ah-ah-ah-ah-aaaaaaa.... Com o susto, tu te voltaste, e eu, o gênio
desperto por aquela e naquela gargalhada, ergui os braços nus, com
ameaças de te agarrar. Então, em lugar da raiva, da fala com o teu ar de
menina raivosa que eu largasse daquilo, então correste. Correste, e
lembro o teu rosto e coxas rubras. (Como lembro, coxas e traseiro a
correr, como uma lebre domesticada, ensinada, de confortável pêlo, como
uma lebre que se pudesse acariciar no rabinho curto, e que se aninha
aconchegante, embora antes corresse, para melhor usufruto de nossa
volúpia.) E à segura distância te voltaste, e com o dedo, que me chegava
como um dedinho de feitiço, me recriminaste, teatral e bondosa:
— Você é louco? Você
me mata de susto.
Sem ensino,
aprendeste depressa. Depressa aprendeste o espírito e alma da
representação. E eu, ator novo, mal começado no teatro, repeti o
improviso, por não saber o seu desenvolvimento: — ah-ah-ah-ah...... E
abrindo os braços de ti me aproximei. Então, melhor atriz, com as tuas
mãos tocaste o meu pescoço, tocaste os meus ombros, como se quisesses me
afastar de ti. E eu, mau ator, canhestro, iniciei nova gargalhada.
Então, em lugar de nova fuga, ou de me expulsares da tua presença, diria
melhor, em lugar de me expulsares de ti, com atos sérios, decididos e
eloqüentes, então, em lugar de para sempre abandonares o palco, então,
com falas de que eu te matava de susto, com as mãos para melhor me
expulsares, atualizaste toda a mímica e apuro do bom teatro. Tu e as
tuas mãos, tu nas tuas mãos me tocaste o rosto, com palavras que não
significavam medo, embora a medo se referissem, porque ao dizeres que
morrias de susto, de medo, tu me tocavas no queixo, na face, e
deslizavas tuas mãos por minhas têmporas. Que repouso! Ao sentir aquele
falso medo, aquele contato da pré-história amorosa, que avultou o meu
desejo, fiz parar a minha voz de gênio de fumaça. E te perguntei,
assustado, se tiveste medo. Então me respondeste que sim, primeiro
amorosa, quase em lágrimas, clamante do próximo ato. Depois, enraivecida
e frustrada e com desprezo abandonaste a cena.