Heranças, pesos,
contrapesos
.......Estes primeiros anos da década de 2000 têm sido
pródigos em observações quanto à questão da forte relação dos poetas
atuais com modelos canônicos de poesia no Brasil, a ponto disso ter se
transformado em piada, se esmaecido e perdido a graça, até porque a
repetição talvez tenha servido de vacina para um necessário amadurecimento
das novas expressões poéticas. Tento, aqui, expor, de forma prática,
algumas observações sobre isso e novas tendências poéticas, feitas a
partir da experiência de 4 anos de edição da revista BABEL, que
me colocou em contato direto com muito do que se produz atualmente de
poesia no país, revista que, também, em seu número 3 (set/dez/2000),
procurou realizar um registro possível de reflexões sobre a questão do
cânone, com depoimentos de poetas, críticos e editores, assim como no
número 4 publicou outros textos sobre o assunto.
.......O
recebimento de livros e textos inéditos, a leitura de livros recentemente
publicados, o contato com os poetas, de certa forma confirma a constatação
corrente, aceita de forma quase generalizada, de que a poesia que se
produz contemporaneamente no Brasil sofre o peso da herança deixada
principalmente pela Geração de 45 — Jorge de Lima, por Mário de Andrade,
Oswald, Drummond, João Cabral e a Poesia Concreta. As novas expressões
poéticas, dessa forma, encontram-se paradoxalmente expremidas no interior
do triângulo formado pelo verso livre do modernismo, pelas formas
clássicas de versos marcados e pela depuração exaustiva do concretismo. E
isso é tão cabal que aqueles que não estão procurando um diálogo, um
desdobramento dessas poéticas, em busca de se diferenciar, estariam
ignorando-as, pode-se dizer por náusea até, porque é um espelho horrível
esse que está aí para as novas gerações olharem e suplantarem em busca de
uma dicção distintiva.
Grifes da crítica
.......Definições desse confronto têm dado aos novos
poetas a pecha de serem meros epígonos ou diluidores, na expressão de
Alfredo Bosi (O Estado de São Paulo, 16/9/2000); ou fabricantes
de grife, no caso de Iumna Maria Simon, para a qual os modelos canônicos
se transformaram justamente nisso, em grifes, vestidas pelas novas
gerações (Novos Estudos CEBRAP 55 nov/1999) ou, ainda, numa
observação mais recente, como a de Paulo Franchetti na BABEL 4
(jan/dez/2001), que assinala a existência de protopoetas, ou seja: o
confronto com essas heranças, transformadas em "grifes", tem gerado uma
curiosa diluição das linguagens poéticas produzindo uma mescla de baixa
tensão que resultaria em poetas com linguagem surgida do amálgama de dois
ou três outros poetas canônicos. Essa conclusão de Franchetti se deu após
a leitura de livros recentes de poetas que têm conseguido certa distinção,
ou seja, o mineiro Ricardo Aleixo, o paulista Cláudio
Daniel e o paranaense Ademir Assunção — grifo para remarcar a
descrição de sabor regionalista usada pelo Suplemento Literário Minas
Gerais, onde foi publicada a resenha (n.º 76, outubro/2001), que
denota um recorrente uso classificatório por parte de jornalistas,
resenhistas e críticos no país para analisar os poetas que, no entanto,
nunca se comprova eficiente e diz mais de quem dele se utiliza que da
própria poesia; não foi o caso de Franchetti. No caso desses poetas
haveria, segundo Franchetti, "uma mistura de Cabral, irmãos Campos e
Leminski, em doses variáveis", também presente nas recentes antologias
Esses poetas (Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998), de Heloísa
Buarque de Hollanda e Outras Praias (São Paulo: Iluminuras,
1998), de Ricardo Corona, resultando nesse "protopoeta" de fraca dicção.
Esteticismo conformado x incisividade
crítica
.......No caso de Ademir Assunção, de quem tenho maior
familiaridade de leitura, há de fato em sua linguagem certa identidade com
a linguagem de Leminski, do qual, além de ter sido amigo, é árduo
defensor. Essa semelhança se dá sobretudo pela busca consciente da
musicalidade que transforma muitos dos seus poemas em letras de música,
inclusive gravadas em CD por músicos como Itamar Assumpção, Edvaldo
Santana, Madan e outros e que permite leituras públicas cadenciadas em
eventos que têm se multiplicado nos últimos anos. Sua poesia mais recente
(Zona Branca, São Paulo: Altana, 2001) se destaca sobretudo por
uma postura inconformista com a sociedade, a cultura e a política
(reiterada no romance Adorável criatura Frankenstein, Ateliê,
2003), que é um diferencial na cena poética contemporânea, de certa forma
conformada, para não dizer, em muitos casos, alienada, fator esse que tem
tornado sua expressão distintiva nesse cenário.
.......É de
se chamar a atenção tal característica pois a poesia contemporânea tem
sido muito livresca, estetizante ou de uma lírica ausente no que se refere
ao tempo em que vivemos, faltando nela incisividade crítica, consciência
política, social e histórica, traço modernista que certamente tem sido
ignorado em prol de uma escrita que corre o perigo de reconhecer-se no
futuro apenas beletrista, com grande chance de ser engolida pelo tempo que
passa e ser esquecida. Há, no entanto, exceções, como a já citada postura
inconformista de Assunção, a corrosividade dos sonetos de Glauco Mattoso e
experiência poéticas como a de Joca Reiners Terron, com
Eletroencefalodrama e Animal Anônimo (Ciência do
Acidente, 1998 e 2002) que também tem conseguido em sua poética uma
negatividade crítica interessante, ou Jairo Batista Pereira, cujo livro
Capimiã (Medusa, 2002) dá uma folga no seu redundante esteticismo
de linguagem abrindo nele uma janela para incorporar a temática dos
sem-terra sem necessariamente cair no panfleto. Sendo este um texto que
corre o risco da generalização ao tratar de questões abrangentes, há que
se assinalar que, logicamente, as exceções podem ser ampliadas.
Contra e a favor dos cachorros
loucos
.......Assim, não me parece ser o caso da poesia de
Ademir Assunção um exemplo de diluição, ainda que tenha Leminski como um
dos modelos para elaborar sua poética, sobretudo porque demonstra uma
atitude beligerante contra o status quo que a faz crescer em
significação. No que se refere a Leminski, entretanto, em antologia
recente que preparei (Passagens — Antologia de poetas contemporâneos
do Paraná, Imprensa Oficial do PR, 2002), um dos critérios que acabei
por definir para as escolhas foi o de que, para ter uma cara, aquela
antologia deveria ser contra Leminski, tal a sua influência em
muitos dos poetas que li. Sendo assim, um critério básico foi ignorar todo
e qualquer poema assemelhado a haikai, evitando, também, tanto quanto
possível, poemas que lembrassem demais a dicção de Leminski, até mesmo
para colocar essa discussão em pauta para os
antologizados.
.......Essa onipresença de Leminski, se nacionalmente
chega a ser um problema para muitos, no Paraná, então, onde nasceu e viveu
atuando de forma marcante nos meios de comunicação e culturais, chega a
ser um obstáculo. Ricardo Corona, que editou até recentemente os dez
números da revista Medusa, em entrevista disse que a si próprio,
como poeta, se quisesse construir uma obra poética característica, só
restava a possibilidade de escapar do modelo presentificado por Leminski.
Sendo assim, buscou forte inspiração no simbolismo, movimento poético que
foi também muito forte no Paraná, na época em que se deu, para fazer uma
leitura curiosa da contemporaneidade, com linguagem marcadamente plástica
e tensa pelo vocabulário precioso, através do qual, ao mesmo tempo em que
ilustra uma paisagem filtrada pelo olho, sugere uma alucinação fílmica,
conforme os poemas de Cinemaginário (SP, ed. Iluminuras, 1999).
No caso de Ricardo Corona, portanto, a fuga de um modelo forte como
Leminski o levou a outro, a herança simbolista que, aplicada a um olhar
contemporâneo, deu um resultado interessante.
Do poema-piada à crítica-piada:
angústia, orgulho, furor
.......Sob outro aspecto, a relação de muitos poetas
contemporâneos com modelos canônicos tem sido por demais cordata, caso de
alguns naquela antologia de paranaenses, a ponto de se permitir chegar a
uma síntese como a que chegou Paulo Franchetti em entrevista na mesma
Babel 4, que parece uma piada. Disse ele, parodiando o livro de
Harold Bloom, que a relação de muitos poetas com modelos canônicos eleitos
tem gerado não a angústia da influência, mas o seu oposto orgulho da
influência. Por sua vez, o poeta Fábio Weintraub, pegando a bola,
criou uma variação a que chamou de "furor da influência", conforme brincou
em mesa sobre poesia na Feira Primavera dos Livros de 2002, em São
Paulo.
.......Note-se quanto a isso entrevista feita por
Rodrigo de Souza Leão com Amador Ribeiro Neto (circulada na revista
eletrônica Balacobaco ano V — n.º 21 — Rio de Janeiro, 2 de junho
de 2002) cuja pergunta e resposta são sintomáticas das preocupações dos
poetas contemporâneos. Pergunta ele: "Como encara o fato de que, como nos
alerta Harold Bloom, todo poeta forte descende de outro poeta forte? É
angustiado por alguma influência?". Eis a resposta: "Como uma coisa
profundamente natural. Você não pode criar ignorando a tradição poética
existente e os avanços que ela já conquistou. Eu reconheço o peso absoluto
que Augusto de Campos tem sobre minha poesia. Isto me é motivo de muita
alegria — não de angústia. Faço uma poesia que vem do Augusto e se
distancia dele para poder ter uma marca própria. Enfim, para poder ser
minha poesia".
.......Outro caso, assumidamente divertido, é o de
Luiz Roberto Guedes¹, que escreveu uma série de poemas
em homenagem derramada a Mário de Andrade, cujo título é
Mariogames, enviados para publicação em BABEL mas ainda
inéditos por falta de espaço suficiente na revista. O autor apresenta
esses poemas dizendo o seguinte:
......."Mas os
Mariogames... Serão Mariogramas genuínos? Caso de possessão por
mariolatria desvairada? Ou só compulsão descarada de materializar a
máscara, mimetizar a voz, um mood, uns tons e timbres entre os
'trezentos-e-cincoenta' do Multimário de Andrade? O caso é que hoje em dia
essas incorporações não têm nada de extraordinário ou original... Pois
quando que escrita mediúnica primou por ser única e original? O espírito
da coisa é arlequinagem por amor a Mário. Visitação do fantasmário.
Louvação do Mário vivo. Vivomário!".
.......Também um outro escritor, que tem se destacado
pela publicação de vários livros de ficção e obtenção de prêmios e também
pela edição de uma revista, a Iararana, em Salvador, na Bahia,
Aleilton Fonseca, publicou no seu número 3, de maio/2000, um poema cujo
título é quase idêntico ao de Mário de Andrade e a ele dedicado: "A
meditação sobre o Tietê", de Mário de Andrade, virou "Meditação ao Tietê"
e, quando se poderia esperar uma paródia, tão ao gosto dos modernistas,
que medisse forças com o singular poema de Mário, o que temos em Aleilton
Fonseca é uma reescrita condensada, contida mesmo, e em versos menores, em
que até o tom melancólico é reproduzido, numa homenagem
espelhada:
"Águas do Tietê,
no jorro de tuas
nascentes:
melhor ficassem paradas
em teus reflexos
afluentes.
(...)
Águas do Tietê,
onde me queres
levar?
— teu traçado e teu destino
não se casam com o
mar...
(...)
Há remédio mais perfeito
do que apenas uma
lágrima,
se todos chorassem em teu leito,
lavando tuas águas da
mácula.
(...)
Te olho e não me vês, assim
em vão, corpo cego de
águas:
em verso te afogo em mim,
em ti me afogo em
mágoas..."
.......O tom por demais recatado e de homenagem
aderente coloca o "Meditação" de Aleilton Fonseca em desvantagem a Mário;
já Luiz Roberto Guedes, graças à jocosidade com que encara a missão de ter
que homenagear Mário de Andrade, consegue, senão se medir com o modelo,
pelo menos corresponder em algo à poética em que se inspira. No entanto,
em relação a Mário ainda, nada há contemporaneamente como
Paranóia, de Roberto Piva, que supera com grandiosidade o
modernista prestando-lhe uma homenagem à altura e criando um livro de
poemas que é um dos melhores da década de 1960, nada deixando a dever
àquele com o qual dialoga.
Homeros em fuga
.......Outro aspecto de tentativa de distanciamento de modelos canônicos
brasileiros pode ser encontrado no trabalho de dois poetas que têm
aparecido em Babel e cujos trabalhos julgo interessantes: Paulo
de Toledo² e Mauro Faccioni Filho³. Ambos partem de Homero para elaboração de uma obra
poética bem característica. No caso de Paulo de Toledo refiro-me sobretudo
a um poema de denso trabalho de linguagem, cujo título é "Musa em fuga",
publicado em Babel n.º 2 (maio/agosto/2000), que em apenas 4
páginas praticamente faz uma síntese da Odisséia sugerindo ser
essa a leitura possível para um leitor midiático contemporâneo. Ainda que
Homero seja a fonte, essa leitura somente foi possível pelo viés de
leituras como a do Finismundo, de Haroldo de Campos, que é o
modelo de linguagem de que se parte para chegar a essa síntese que é "Musa
em fuga", sem certas empedraduras verbosas típicas de Haroldo de Campos,
daí sua excelência como possível superação deste modelo.
.......No caso de Mauro Faccioni Filho se em
Helenos o modelo inicial é Homero e a cultura grega, isso ocorre
apenas como metáfora para designar a vida contemporânea, pois ele
reapropria-se apenas aparentemente das formas clássicas. Em
Helenos a tradição grega é transformada numa somatória de signos
usados numa linguagem marcadamente performática, que vai, aos poucos, no
decorrer do poema, se transformando e contaminando dos traços da
atualidade até chegar a uma dicção medida e racionalizada que tem um
desdobramento diferenciado no seu livro seguinte, Duplo Dublê, em
que erotismo e incomunicabilidade se combinam para representar a condição
de "duplo dublê" do homem contemporâneo.
.......Outro caso de relação com modelos canônicos,
de forma tensa, é o de Marcelo Sandmann4.
Em Lírico renitente (7Letras, 2000), esse poeta inicia uma série
de cinco poemas nos quais se destaca a concisão e o apuro formal que,
associados, se traduzem em visível e marcante contenção. O modelo
inspirador, que logo vem à mente do leitor como sugestão, acaba por
imediatamente se explicitar no sexto poema, sintomático no livro, por ser
um nítido divisor de águas para o autor, ao mesmo tempo em que é
sintomático dos dilemas que pairam sobre quem se propõe a escrever poesia
no Brasil hoje. Mais que palavras definitórias, as práticas de "concisão"
e de "apuro formal" como que têm dono e nem precisa muito para logo se
saber que se está tratando de João Cabral de Melo Neto. O sexto poema do
livro, portanto, leva o sugestivo título de "O Engenheiro Embriagado" e é
explicitamente dedicado a João Cabral. Como disse antes, o poema é um
divisor de águas no livro, pois depois da rigidez contida dos poemas
iniciais, o poeta apresenta o poema como um conhaque em que, embriagado,
se assume "irregular com / todo rigor, // desregradamente lúcido, //
calculadamente im- / perfeito". E em seguida apresenta poemas mais
relaxados, afins com a proposta-título do livro, de ser um "lírico
renitente", como que abandonando a tensão do confronto com o modelo
canônico de João Cabral, ou como que chegando à náusea do modelo
escolhido. A poesia de Marcelo Sandmann é particularmente exemplar quanto
a essa questão do confronto com modelos de linguagem, pois tem justamente
procurado se firmar a partir de leituras explícitas de Leminski, José
Paulo Paes, Dalton Trevisan ou o já mencionado João Cabral.
No pântano estagnado da linguagem brotam
rosas
.......Essa tensão motivada
pela relação com modelos canônicos, ainda que em vários poetas seja
prolífica, acaba por criar uma situação de estagnação das linguagens
poéticas, o que tem motivado a busca de renovação dos modelos. Sendo
assim, os escritores têm feito um esforço de ler e, mais que isso,
dialogar com escritores de outras tradições, línguas ou nacionalidades,
transformando esse esforço em labor tradutório de poemas que em vários
casos tem sido nas duas mãos, fato imensamente facilitado pela
possibilidade da troca de e-mails e da internet, que permite o acesso a
conteúdos.
.......Para isso, as revistas de
poesia têm ocupado um papel fundamental na medida em que têm dado espaço a
esses esforços tradutórios, dando um sentido prático a eles na medida em
que publicam esses diálogos estimulando sua continuidade. Para ficarmos
apenas nestes últimos anos, tivemos o esforço empreendido pela revista
Medusa, que publicou entrevistas e traduções de poemas de
norte-americanos como Gary Snyder ou Jerome Rothenberg, do qual se
divulgou aspectos da etnopoesia. O mesmo esforço se dá com revistas como
Coyote, Cacto e Etc. Coyote, com 6
edições, tem combinado um esforço de publicar latino-americanos como o
mexicano Raúl Aguilera, os argentinos Hector Viel Temperley, Reynaldo
Jiménez e Tamara Kamenszain, os cubanos Pedro Juan Gutérez e José Kozer,
com destaque para o interessante trabalho do mexicano Heriberto Yépez;
além desses, tem publicado vários poetas norte-americanos. Cacto,
mantendo uma afinidade com o trabalho iniciado por Inimigo Rumor,
apoiado inclusive por participantes daquela revista, em 3 edições tem
publicado vários latino-americanos e muitos europeus, com destaque para
uma antologia de poetas portugueses feita por Carlito Azevedo, mas também
para poetas franceses, espanhóis, alemães, etc (a expressão "etc" aqui é
mais que apropriada diante do fato de que essa revista, seguindo
característica da Inimigo Rumor, raramente publica informações
biográficas sobre os poetas que dela participam, o que é um problema para
o leitor que queira saber mais sobre o conteúdo publicado). Etc, por sua
vez, tem dedicado em todas as suas 4 edições até agora significativo
espaço principalmente para escritores da América Latina, como Lola Arías,
Reynaldo Jiménez, Tamara Kamenszain, Anibal Cristobo, Mercedes Roffe, Ana
Arzomanian, Perla Rotzait (Argentina); Cecília Vicuña (Chile); Víctor
Sosa, Gabriel Bernal Granados, Ernesto Lubreras (México); José Kozer
(Cuba); Eduardo Milán (Uruguai) ou um destaque para 7 poetas da Patagônia,
entre outros já bem conhecidos como Roa Bastos ou Lezama Lima. Esse
trabalho é também característico em Babel, que desde o primeiro
número vem registrando as trocas havidas com poetas atuantes em outros
países, publicando traduções e originais: foram os casos dos franceses
Benoît Broyart e Christophe Manon, do norte-americano Jeffrey McDaniel,
dos argentinos Marina Mariasch, Martin Garcia, Romina Freschi, Daniel Link
e dos uruguaios Reynaldo Jimenez e Mónica Saldias, do angolano/canadense
Paulo da Costa, do indiano que vive no Canadá Rajinderpal S. Pal, do
mexicano Gabriel Bernal Granados, dos cubanos José Kozer e Rodolpho Häsler
e, de forma ainda mais expressiva, dos poetas eslovenos Josip Osti e Iztok
Osojnik, traduzidos por Mauro Faccioni Filho a partir de contatos
estabelecidos que levou a viagem até a Eslovênia, para participação num
festival.
.......Entretanto talvez os casos
mais expressivos e aprofundados dessa tentativa de renovação de linguagem
estejam nas revistas Inimigo Rumor e Sibila; no caso da
Inimigo Rumor, essa revista iniciou uma troca com poetas
portugueses, que passaram a ser divulgados no Brasil — o caso mais
interessante é o de Adília Lopes, cuja voz soa originalíssima nesse nosso
cenário. A repercussão desse trabalho da Inimigo Rumor é patente
pois resultou na sua própria transformação, passando a ser editada aqui e
em Portugal, incorporando também editores portugueses, dobrando tiragem e
número de páginas, segundo informações veiculadas pela imprensa. Além
dessa atenção a Portugal, a revista, após a união de esforços da 7Letras
com a Editora Cosac & Naif, passou a publicar junto com suas edições
pequenos livros com antologia de poemas de escritores latino-americanos,
iniciativa inaugurada pela argentina Tamara Kamenszain.
.......No caso da Sibila, com expressivo
conselho editorial, sobressai o trabalho de Régis Bonvicino, bem
conhecido, que levou a uma troca intensa, em duas mãos, com poetas
norte-americanos5.
Esse contato com outros escritores, essa busca pela renovação de
linguagens em Bonvicino produziu uma implosão da voz lírica conquistada
durante um período de experimentação pós-concretista levando à sua atual
dicção "rarefeita, extremamente fragmentária e elíptica", como muito bem
observou o poeta Luis Dolhnikoff na segunda edição de Sibila.
.......É expressivo também o caso de Josely
Vianna Baptista, talvez a mais importante tradutora de latino-americanos
no Brasil, com quase 50 livros traduzidos, além de dezenas e dezenas de
poemas traduzidos e entrevistas feitas, publicados em periódicos,
inclusive numa página que publicou, a Musa Paradisiaca, que
circulou em jornais do PR e SC, recentemente publicada em livro. Isso tem
levado à divulgação de sua própria obra poética fora do Brasil, através da
publicação de várias antologias, algumas em parceria com Régis Bonvicino,
ou de livros próprios como o caso de Poros Floridos, que saiu no
México em tradução de Reynaldo Jimenez e também em tradução para o inglês,
nos Estados Unidos.
.......Há também o caso
do poeta Floriano Martins, que edita as revistas eletrônicas Agulha e
Banda Hispânica, com expressivo trabalho de divulgação de escritores
da América Latina, com livros e antologias publicados e o esforço
registrado na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, que,
apesar do tom por demais acadêmico, enquanto circulou publicou expressivos
conjuntos tradutórios de poetas de vários países como Israel, EUA, França,
Itália etc.
.......É provável, também, que
tenha sido a busca por novos paradigmas, em fuga da estagnação canônica na
Argentina, que tenha levado a revista Tsé-Tsé, através de
Reynaldo Jimenez, a realizar uma interessante e expressiva antologia de
poetas contemporâneos brasileiros ("Pindorama — 30 Poetas de Brasil", in
Tsé~Tsé n.ºs 7/8, Buenos Aires, maio/2000) intensificando a
troca, a ponto de seus editores já terem vindo ao Brasil para lançamentos
e leituras de poemas e um deles, Reynaldo Jimenez, além de ter poemas
traduzidos em vários veículos, figurar até mesmo como membro do Conselho
Editorial de um, como é o caso da Sibila.
A nova poesia, enfim, ou apenas mais
prosa?
.......Outra interessante
observação a ser feita com relação à tentativa das poéticas contemporâneas
de sair daquele sugerido triângulo formado pelo verso livre do modernismo,
pelas formas clássicas de versos marcados e pela depuração exaustiva do
concretismo é o fato de que muitos têm buscado renovar a expressão através
do que se denomina correntemente como "poema em prosa". Essa forma de
texto notabilizada por Baudelaire tem sido muito usada nos últimos tempos,
sinal que aponta uma tentativa da poesia contemporânea de superar modelos
gastos — e experimentar outras formulações em busca de oxigênio. A recente
edição 14 da revista Inimigo Rumor (1.º sem/2003) foi dedicada
integralmente a ela, dando conta de um conjunto significativo de
escritores que a têm usado e numerosos têm sido os livros publicados com
esse tipo de poema (na edição de abril/2004 do jornal Rascunho,
por exemplo, publiquei resenha sobre três livros recentemente editados com
essa característica: O reino da pele, de Contador Borges (Iluminuras);
Dicionário mínimo, de Fernando Fábio Fiorese Furtado (Nankim) e
Meio-fio, de Rosana Piccolo (Iluminuras).
.......Entretanto o exemplo de maior experimentação
com essa possibilidade de escrita se dá nos livros de Fabrício Carpinejar,
que tem obtido sucesso junto à crítica e sobretudo, o que é raro quando se
fala de poesia, sucesso de público. Três de seus livros já esgotaram a
primeira edição e estão com nova reimpressão (ou "segunda edição",
conforme a editora, seguindo hábito viciado do mercado editorial que
considera ser nova edição a repetição do mesmo, quando, tecnicamente, a
expressão deveria ser "reimpressão"). Em abril/2004 saiu seu sexto livro
(Cinco Marias), sendo o terceiro por uma grande editora (é o
segundo pela Bertrand Brasil, do grupo Record, além de uma antologia dos
anteriores pela Cia. das Letras, em 2003). Em seus livros Carpinejar
superou o uso corrente da idéia de poema em prosa, que considera o texto
individualmente, e tem praticado uma escrita narrativa com o uso de
linguagem poética. Cinco Marias, por exemplo, foi escrito a
partir de uma notícia de jornal (aparentemente forjada pelo poeta) e
explora o cotidiano de uma mãe e cinco filhas vivendo isoladas em uma casa
depois de terem enterrado o pai e sua biblioteca no quintal. Em
Biografia de uma árvore, que em tudo parece um conto em linguagem
poética, a pontuação e as frases marcadas chegam a soar persistentes,
caracterizando o tom narrativo e a escrita que se faz no fio da navalha
entre prosa e poesia. A liberdade com que Carpinejar tem experimentado em
seus livros os recursos próprios da ficção têm se transformado em
marketing em busca de leitores, como o faz a editora na promoção de
Cinco Marias, que diz em seu material promocional que "a obra
pode ser lida tanto como poesia como romance", sugerindo ser um "Poema com
enredo, trama e suspense". O fato é que o trabalho de Carpinejar traz a
esse cenário um interessante fôlego para reflexão ao demonstrar que é
possível manipular a linguagem poética atribuindo a ela novos usos, de
forma a se sair do olhar viciado que entifica o poema e o totemiza a ponto
de quase grafá-lo em maiúscula e, portanto, idealizá-lo platonicamente
tornando os poetas servos de um modelo.
.......Por todos esses motivos, ainda que haja mesmo
o peso dos referidos cânones sobre os novos poetas, são indiscutíveis os
esforços no sentido da sua renovação, assim como das linguagens poéticas,
sendo crescente o número dos que estão conseguindo algum grau de
originalidade; à grande maioria desses novos escritores atuantes, no
entanto, parece-me que não está clara a questão da necessidade de busca de
uma dicção própria como forma de superação dos modelos, pois há uma
generalização do decalque, da busca por reconhecimento acadêmico (que em
muitos claramente aponta o desejo de ocupar uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras, uma vez que até já se ocupa uma cadeira da academia
municipal...) e um baixíssimo grau de insatisfação, de rebeldia e
insolência que engrandeceriam a poesia, sobretudo em momentos de
estagnação como este que, felizmente, apesar disso, tem dado novas flores,
sinalizando que está sendo superado.
(N.a.: Este texto, com sucessivos usos e acréscimos,
em processo, foi produzido de janeiro de 2002 a maio de 2003, podendo ser
considerado uma crônica desse período, assim como o desdobramento de um
olhar que se debruça sobre a paisagem, enquanto ela se transforma
transformando ele mesmo.)
Notas
Pequena antologia
de textos citados
Ademir
Demarchi nasceu em Maringá-PR, em 07.04.1960,
e reside em Santos-SP desde 1989, onde trabalha como redator.
Formado em Letras/Francês, com Mestrado (UFSC-1991) e Doutorado
(USP-1997) em Literatura Brasileira, é editor da revista BABEL,
de poesia, crítica e tradução. Tem quatro livros publicados; poemas,
artigos e ensaios publicados em livros, periódicos e sites
como Revista Coyote, Revista Oroboro e as revistas eletrônicas Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério. Mais aqui.