Denise Góes - Por favor, uma breve biografia, enfatizando como nasceu o seu interesse pelo haicai. Dentro de todas as suas atividades (acadêmicas ou não), qual é o peso dado ao estudo e a elaboração de haicais? Qual a sua relação com o haicai hoje?
 
Paulo Franchetti - Comecei a me interessar pelo haicai, academicamente, na seqüência de um trabalho sobre a Poesia Concreta, que terminei em 1982, e quando começava uma pesquisa sobre Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, dois portugueses que viveram no Oriente e sobre ele refletiram.
 
Eu tinha lido as traduções de Haroldo de Campos e de Octávio Paz. Li, então, as de Moraes, e maravilhei-me com os seus livros e com os de outros ocidentais que viveram e escreveram sobre a China e, especialmente, sobre o Japão: Lafcadio Hearn, Basil Chamberlain, Eugen Herrigel.

 

Quando comecei a estudar japonês, para entender melhor a escrita ideogramática, tomei também contato com o trabalho de Paulo Leminski sobre Bashô. A bibliografia desse livro me conduziu a uma das leituras mais fascinantes que pude fazer: as obras de R. H. Blyth, que foi, mais do que qualquer outro, o criador do haicai para o Ocidente. Na seqüência, passei a ler tudo o que fui encontrando sobre o assunto: D. T. Suzuki, Earl Miner, Allan Watts e tantos outros que moldaram o orientalismo da cultura pop dos anos 50 e 60. Só muito mais tarde tive acesso a alguma bibliografia sobre o haicai produzida originalmente em japonês.

 

Mas o interesse pela poesia e pela cultura japonesa vem de muito antes: vem desde quando morei em Guaíra, na fronteira com Minas Gerais. Vivi ali dos 11 aos 15 anos. Era uma cidade de intensa colonização japonesa. Tinha muitos amigos nisseis e era muito presente, no meu dia-a-dia, a cultura da comunidade, com as festas, as comidas e a língua, que era praticamente a única falada pelos pais e avós de amigos e namoradas. Creio que o interesse por estudar seriamente essa língua e essa cultura deve muito a essa base afetiva.

 

Durante muitos anos, dediquei-me intensamente ao estudo do haicai. Foram os anos nos quais estudei japonês, primeiro numa escola de Campinas e depois com a minha colega da Unicamp, Elza Taeko Doi. Desses primeiros anos de trabalho resultou um livro, Haikai — antologia e história. O texto introdutório é o resultado do estudo dos tratados e poemas; as traduções foram feitas durante as aulas que tive com a Elza. Ainda hoje leio haicai, participo de uma lista na internet e ajudo a organizar, na Unicamp ou no Espaço Cultural CPFL, de Campinas, concursos nacionais e oficinas de haicai.

 


DG - Quais as principais diferenças entre o haicai japonês e o brasileiro? É possível fazer essa diferenciação? Os poetas brasileiros mantêm alguma ligação com a tradicional forma de fazer haicai? O que mudou? Existe alguma relação entre o concretismo brasileiro e o interesse por haicais?


PF - Creio que existem, no Brasil, três tendências, ou três linhagens de haicai.

 

A primeira delas, em antigüidade, é a que se origina em Guilherme de Almeida. Guilherme de Almeida julgava que o haicai era a "a anotação poética e sincera de um momento de elite" e acreditava ainda que, para a definição do gênero, era preciso que houvesse uma rígida estrutura métrica e de rimas. Guilherme de Almeida parecia acreditar realmente que os haicais japoneses tinham título, e por isso os seus sempre vêm com título.

 

Uma segunda vertente do haicai brasileiro provém da ação dos imigrantes japoneses, que aqui trataram de aclimatar o haicai, preservando o que julgavam o mais importante no gênero. É a tradição que tem como vulto principal o poeta Nempuku Sato, que veio para este país com a missão de aqui semear e fazer florescer e frutificar a forma e o espírito do haicai. Atualmente, a tradição se mantém em São Paulo e outras cidades, por meio de grupos ou associações dedicados ao haicai, das quais a mais antiga e conhecida é o Grêmio Haicai Ipê. Penso que o haicai tradicional praticado pelo Grêmio tem sido, para todos os que se dedicam a esse tipo de poesia, uma referência central. Para o Grêmio, haicai é um poema breve, de preferência com metrificação precisa. Mas o que de fato distingue o haicai dessa corrente é a exigência de que o haicai seja objetivo e traga sempre uma, e só uma, palavra indicativa de estação do ano na qual o poema foi composto.

 

Por fim, há uma terceira forma de incorporar o haicai à nossa tradição, que consiste em valorizar o lado 'zen' da forma e da disposição do espírito. Nesse caso, o haicai é olhar atento, busca de um sentido segundo, irônico ou místico, que se instala a partir de uma anotação rápida, de uma "sacada", isto é, da percepção súbita de alguma relação interessante entre coisas ou entre elementos da linguagem. O mestre dessa modalidade de haicai foi Paulo Leminski, cuja prática, de modo geral, é ainda o modelo de muitos dos que se aproximam contemporaneamente do haicai. Nessa vertente, por definição, a métrica deixa de ter importância. E também terá importância diminuta o enquadramento do poema na sucessão das estações, por meio da "palavra de estação".

 

Sendo assim, é difícil falar em "haicai brasileiro". Há "haicais brasileiros" e a distância ou proximidade de cada um em relação ao haicai (ou, como dizem hoje, haiku) japonês é muito variável.

 


DG - É possível traduzir um haicai japonês dando conta de todo o seu universo ao transpor para o português?


PF - Penso que é possível, da mesma forma que é possível traduzir uma poema árabe ou um poema lírico grego ou latino: se o tradutor é hábil, alguma faísca sempre atravessa as distâncias temporais e culturais. Mas há todo um background cultural e, principalmente, uma tradição poética, com lugares-comuns, temas preferenciais, alusões e referências, que, se deixada na sombra, empobrece a percepção do diferente, diminui o alcance e o prazer da leitura. Mesmo para ler Dante, um poeta central no cânone do Ocidente, um bom aparato de notas, que explicite alusões, referências e contextos faz toda a diferença. Por que esperar que com o haicai seja diferente?

 


DG - O que o haicai brasileiro guarda do tradicional (técnica e forma) haiku japonês?

 

PF - Como disse, não existe o "haicai brasileiro". Cada uma das três tendências que listei acima guarda algo da técnica, da forma ou do espírito do haiku japonês. Guarda aquilo que julga mais importante, ou aquilo que entende ser o essencial do gênero do haicai, aquilo que justifica a sua "importação". Creio que há alguns aspectos da técnica e da forma do haicai mais interessantes e outros menos. Alguns devem merecer mais atenção e esforço do praticante; outros parecem secundários. A forma convencional do haicai, por exemplo — o fato de ser formado por versos de 5, 7 e 5 sílabas — é algo de menor importância, na minha opinião. Já composição por justaposição de duas frases, uma delas nominal, que se percebe na maioria dos haiku, me parece muito mais interessante e importante. É difícil responder em poucas palavras, pois a técnica do haicai mereceria um comentário mais longo. Há várias maneiras de conceber a "técnica".

 

É muito diverso o interesse que a "técnica" do haicai despertou no Ocidente. Os poetas concretos se interessaram, sobretudo, por um aspecto "técnico" que não seria exclusivo do haicai: a composição por meio de harmônicos visuais, numa língua ideogramática. Já Eisenstein se interessou pela técnica da montagem e pelo efeito de sentido da composição por justaposição. Wenceslau de Moraes se interessou pelos aspectos espirituais, de modo geral. Blyth, como Suzuki, divulgou o haicai como poesia "zen" por excelência. Os haicaístas tradicionais brasileiros se interessam sobretudo pela utilização correta das palavras indicativas de estação num país de tão grande diversidade climática como é o Brasil. Assim, os vários haicais brasileiros são, na verdade, apropriações de aspectos diferentes de um tipo de texto (mas não só: de um tipo de atividade, de gesto poético) que reconhecemos sob o nome de haicai ou haiku japonês.

 


DG - É comum encontrarmos jovens poetas que acreditam ser fácil fazer um haicai. O que eles precisam para escrever um haicai? Haicai é técnica, sentimento, ou apenas um instante na vida do poeta? O que um poeta deve ter em mente ao escrever um haicai?

 

PF -   É relativamente fácil escrever um haicai, se "haicai" significa apenas poema breve em três linhas variáveis, baseado numa simples tirada espirituosa ou num trocadilho. É igualmente fácil, para aqueles que sabem metrificar e rimar, fazer um haicai como o definiu Guilherme de Almeida.

 

Quanto a mim, o que me interessa no haicai é um jeito de estar no mundo e na linguagem. Há uma disposição de espírito, um jeito de olhar e de selecionar o que se vê, que se encontra muito freqüentemente nos mestres japoneses. Uma pessoa que ler uma porção de haicais de Bashô, Buson, Issa e Shiki (os quatro mais conhecidos mestres), logo perceberá do que se trata.

 

Na linhagem de haicai que julgo a mais interessante, para escrever bem é preciso, sobretudo, não ficar ansioso para escrever bem, e exercitar a linguagem e o enfoque de haicai a todo momento, para chegar a um ponto no qual não se pensa em nada ao anotar uma percepção.

 


DG - O haicai é síntese? Como você descreveria um bom haicai?

 

PF - Não creio que seja correto dizer que o haicai é síntese. É antes uma recusa a dizer longamente, ou a dizer com muitas palavras. E é também uma recusa a dizer o máximo com o mínimo, como o faz, por exemplo, uma fórmula algébrica. O haicai diz muito, mas o faz por meio do vazio que fica entre os dois elementos justapostos ou entre o que é dito concretamente e o que poderia ser dito, o que fica apenas como pano de fundo ou silêncio voluntário.

 

Por isso tudo, um bom texto de haicai, em minha opinião, é aquele que consegue o suficiente com o mínimo, que modestamente não exibe virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante, mas que apenas situa uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único, que se apresenta ao leitor como pura presentificação de um momento fugaz. De modo geral, portanto, o bom haicai (tal como o entendo) é aquele que destaca um elemento transitório, de percepção individual, sobre um fundo cíclico, perene ou estável, que identificamos sob o nome "natureza".

 


DG - Quem é o leitor de haicai? Sem o conhecimento do que é haicai, um leitor leigo, digamos, consegue compreendê-lo?

 

PF - Creio que sim. Um leitor leigo certamente "entenderia" a Eneida, Os Lusíadas, os poemas de Baudelaire ou o Waste Land, de T. S. Eliot. Mas, sem dúvida, um leitor que pudesse contar com mais informação sobre cada um deles — e sobre os textos que os precederam, ou se construíram tendo-os como referência — teria mais prazer na leitura e, talvez, nesse sentido, mais entendimento.

 

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 
 
Paulo Franchetti é professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a Editora da Unicamp. Mais em seu site pessoal, em Encarte e aqui.
 
 
 
 
Denise Trevisan de Góes é jornalista. Trabalhou durante 15 anos no Grupo Estado (Estadão e Agência Estado) e agora direciona a sua carreira para o mercado editorial. Também faz reportagens para a revista EntreLivros.