PF - Creio que existem, no Brasil,
três tendências, ou três linhagens de haicai.
A primeira delas, em antigüidade, é a que se origina em
Guilherme de Almeida. Guilherme de Almeida julgava que o haicai era a "a
anotação poética e sincera de um momento de elite" e acreditava ainda
que, para a definição do gênero, era preciso que houvesse uma rígida
estrutura métrica e de rimas. Guilherme de Almeida parecia acreditar
realmente que os haicais japoneses tinham título, e por isso os seus
sempre vêm com título.
Uma segunda vertente do haicai brasileiro provém da ação
dos imigrantes japoneses, que aqui trataram de aclimatar o haicai,
preservando o que julgavam o mais importante no gênero. É a tradição que
tem como vulto principal o poeta Nempuku Sato, que veio para este país
com a missão de aqui semear e fazer florescer e frutificar a forma e o
espírito do haicai. Atualmente, a tradição se mantém em São Paulo e
outras cidades, por meio de grupos ou associações dedicados ao haicai,
das quais a mais antiga e conhecida é o Grêmio Haicai Ipê. Penso que o
haicai tradicional praticado pelo Grêmio tem sido, para todos os que se
dedicam a esse tipo de poesia, uma referência central. Para o Grêmio,
haicai é um poema breve, de preferência com metrificação precisa. Mas o
que de fato distingue o haicai dessa corrente é a exigência de que o
haicai seja objetivo e traga sempre uma, e só uma, palavra indicativa de
estação do ano na qual o poema foi composto.
Por fim, há uma terceira forma de incorporar o haicai à
nossa tradição, que consiste em valorizar o lado 'zen' da forma e da
disposição do espírito. Nesse caso, o haicai é olhar atento, busca de um
sentido segundo, irônico ou místico, que se instala a partir de uma
anotação rápida, de uma "sacada", isto é, da percepção súbita de alguma
relação interessante entre coisas ou entre elementos da linguagem. O
mestre dessa modalidade de haicai foi Paulo Leminski, cuja prática, de
modo geral, é ainda o modelo de muitos dos que se aproximam
contemporaneamente do haicai. Nessa vertente, por definição, a métrica
deixa de ter importância. E também terá importância diminuta o
enquadramento do poema na sucessão das estações, por meio da "palavra de
estação".
Sendo assim, é difícil falar em "haicai brasileiro". Há
"haicais brasileiros" e a distância ou proximidade de cada um em relação
ao haicai (ou, como dizem hoje, haiku) japonês é muito
variável.
DG - É possível traduzir um haicai japonês
dando conta de todo o seu universo ao transpor para o
português?
PF - Penso que é possível, da mesma
forma que é possível traduzir uma poema árabe ou um poema lírico grego
ou latino: se o tradutor é hábil, alguma faísca sempre atravessa as
distâncias temporais e culturais. Mas há todo um background
cultural e, principalmente, uma tradição poética, com lugares-comuns,
temas preferenciais, alusões e referências, que, se deixada na sombra,
empobrece a percepção do diferente, diminui o alcance e o prazer da
leitura. Mesmo para ler Dante, um poeta central no cânone do Ocidente,
um bom aparato de notas, que explicite alusões, referências e contextos
faz toda a diferença. Por que esperar que com o haicai seja
diferente?
DG - O que o haicai brasileiro guarda do
tradicional (técnica e forma) haiku japonês?
PF - Como disse, não existe o "haicai
brasileiro". Cada uma das três tendências que listei acima guarda algo
da técnica, da forma ou do espírito do haiku japonês. Guarda aquilo que
julga mais importante, ou aquilo que entende ser o essencial do gênero
do haicai, aquilo que justifica a sua "importação". Creio que há alguns
aspectos da técnica e da forma do haicai mais interessantes e outros
menos. Alguns devem merecer mais atenção e esforço do praticante; outros
parecem secundários. A forma convencional do haicai, por exemplo —
o fato de ser formado por versos de 5, 7 e 5 sílabas — é algo de
menor importância, na minha opinião. Já composição por justaposição de
duas frases, uma delas nominal, que se percebe na maioria dos haiku, me
parece muito mais interessante e importante. É difícil responder em
poucas palavras, pois a técnica do haicai mereceria um comentário mais
longo. Há várias maneiras de conceber a "técnica".
É muito diverso o interesse que a "técnica" do haicai
despertou no Ocidente. Os poetas concretos se interessaram, sobretudo,
por um aspecto "técnico" que não seria exclusivo do haicai: a composição
por meio de harmônicos visuais, numa língua ideogramática. Já Eisenstein
se interessou pela técnica da montagem e pelo efeito de sentido da
composição por justaposição. Wenceslau de Moraes se interessou pelos
aspectos espirituais, de modo geral. Blyth, como Suzuki, divulgou o
haicai como poesia "zen" por excelência. Os haicaístas tradicionais
brasileiros se interessam sobretudo pela utilização correta das palavras
indicativas de estação num país de tão grande diversidade climática como
é o Brasil. Assim, os vários haicais brasileiros são, na verdade,
apropriações de aspectos diferentes de um tipo de texto (mas não só: de
um tipo de atividade, de gesto poético) que reconhecemos sob o nome de
haicai ou haiku japonês.
DG - É comum encontrarmos jovens poetas que
acreditam ser fácil fazer um haicai. O que eles precisam para escrever
um haicai? Haicai é técnica, sentimento, ou apenas um instante na vida
do poeta? O que um poeta deve ter em mente ao escrever um
haicai?
PF - É relativamente fácil
escrever um haicai, se "haicai" significa apenas poema breve em três
linhas variáveis, baseado numa simples tirada espirituosa ou num
trocadilho. É igualmente fácil, para aqueles que sabem metrificar e
rimar, fazer um haicai como o definiu Guilherme de Almeida.
Quanto a mim, o que me interessa no haicai é um jeito de
estar no mundo e na linguagem. Há uma disposição de espírito, um jeito
de olhar e de selecionar o que se vê, que se encontra muito
freqüentemente nos mestres japoneses. Uma pessoa que ler uma porção de
haicais de Bashô, Buson, Issa e Shiki (os quatro mais conhecidos
mestres), logo perceberá do que se trata.
Na linhagem de haicai que julgo a mais interessante, para
escrever bem é preciso, sobretudo, não ficar ansioso para escrever bem,
e exercitar a linguagem e o enfoque de haicai a todo momento, para
chegar a um ponto no qual não se pensa em nada ao anotar uma
percepção.
DG - O haicai é síntese? Como você descreveria
um bom haicai?
PF - Não creio que seja correto dizer que
o haicai é síntese. É antes uma recusa a dizer longamente, ou a dizer
com muitas palavras. E é também uma recusa a dizer o máximo com o
mínimo, como o faz, por exemplo, uma fórmula algébrica. O haicai diz
muito, mas o faz por meio do vazio que fica entre os dois elementos
justapostos ou entre o que é dito concretamente e o que poderia ser
dito, o que fica apenas como pano de fundo ou silêncio voluntário.
Por isso tudo, um bom texto de haicai, em minha opinião, é
aquele que consegue o suficiente com o mínimo, que modestamente não
exibe virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante, mas
que apenas situa uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior
de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e
componha um quadro único, que se apresenta ao leitor como pura
presentificação de um momento fugaz. De modo geral, portanto, o bom
haicai (tal como o entendo) é aquele que destaca um elemento
transitório, de percepção individual, sobre um fundo cíclico, perene ou
estável, que identificamos sob o nome "natureza".
DG - Quem é o leitor de haicai? Sem o
conhecimento do que é haicai, um leitor leigo, digamos, consegue
compreendê-lo?
PF - Creio que sim. Um leitor leigo
certamente "entenderia" a Eneida, Os Lusíadas, os
poemas de Baudelaire ou o Waste Land, de T. S. Eliot. Mas, sem
dúvida, um leitor que pudesse contar com mais informação sobre cada um
deles — e sobre os textos que os precederam, ou se construíram tendo-os
como referência — teria mais prazer na leitura e, talvez, nesse sentido,
mais entendimento.