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Não encontrei linha de costura nas Lojas Americanas

Era terça-feira quando o ele que morava comigo me disse que a manchete do dia era o adeus-pra-sempre. Uma hora ou outra aconteceria e eu até esperava pra esse ano, já que em todos os meus períodos férteis ele não me fecundara. A semente morre. O óvulo envelhece. A vida não se renova. E tudo que não se renova: extingue. Nem sempre do algodão úmido nascia um pé-de-feijão. Nem todo o bonsai comprado de um japonês do Paraguai, sobrevivia.

Sábado ele me rondava feito felino castrado. Eu lavava uma pilha de pratos e copos porque a família aportara para o jantar. Minha mãe falava sobre a primavera, as alergias, os espirros. Meu pai comentava que logo um avião cairia, era a temporada das quedas. Minha avó puxava os pêlos do rosto para se lembrar de quem era. Eu ruminava uma alface. Ele me olhava pra antecipar a feição do meu desatino ao me dizer na terça que partiria. Enquanto Zeca Baleiro se grudava às juntas da minha alma breve despedaçada. E eu já via no olhar do cara que me encantava desde que decidi parar de fumar e ser uma pessoa legal, que ele não era o Zeca e sua voz grave, ele era simples e ganhava pouco, fora resgatado de um lar órfão, tinha 13 anos a menos e se encaixava direitinho entre minhas pernas. E era um felino. Medroso. Zeloso. De si mesmo. Assim no final do sábado fui deixada debaixo do lençol, trocada por várias doses de decisões sem gelo nem limão mas a firme idéia de ser deixada. Estava escrito em seus olhos que partiria mesmo que eu fizesse escândalo e me humilhasse. Sem estratégia alguma de proteção ou contra-ataque, assistia em silêncio um homem se despedindo do seu destino e o destino molhado de lágrimas temia desmoronar. A gente sentia. Mulher sabia. Quando a porta se fechava atrás de um cara pra nunca mais se abrir pela sua mão. A última pá de terra. A flor que cai delicadamente sobre o caixão. A palavra amém dita entredentes. E o primeiro sentimento era o de alívio, lá se vai o traste, menos dois centímetros de carma, oh, santa cruz que saiu de meus ombros. E depois o suicídio por dentro.

Mas o que acontecia no meu caso era que eu não me matava por matar. E eu tava com preguiça de planejar a minha extinção. E se ele mudasse de idéia e voltasse? E se eu tivesse dado cabo de mim e. Para onde ele voltaria?

E se ele voltasse para alguém que não fosse eu? E se eu não tivesse mais para quem voltar?

No domingo ele contava estrelas entre uma rabiscada e outra num pedaço de papel. E quando saiu pra comprar cigarro ou telefonar pra outra ou visitar um lugar pra morar quando me matasse de si, eu fucei. Farejei tal qual cadela sem vergonha na cara. Revirei tudo. Encontrei o papel com desenhos confusos, estrelas, lua, as iniciais de seu nome em maiúsculo, fortes, caneta azul depois preta, escrito: terça-feira sem falta. Comi o papel e a profecia, engoli sem água o futuro. Se me deixasse eu morreria. Sem ele eu não era eu. Sem mim ele não era ninguém.

Outro dia eu era especial e miolo e beijo profundo me lavando as pétalas. Outro dia não era terça. Outro dia não era noite. Outro dia não era foice. Outro dia não era desespero. Outro dia era antes, segunda. E na segunda as lojas Americanas abriam. O único jeito de reter o amor era costurá-lo sobre uma superfície segura. A cama.

Mas nas lojas americanas não tinha linha de costura. Tive de andar pelo centro exibindo olheiras, parafusos soltos, imensidão de aura vazada de vultos. Até que cheguei a um lugar branco e comprei linha de suturar peles humanas. E quase ri entre soluços e espasmos de demente:

— Costure meus pulsos, verte amor, que desperdício, moço, não acha?

O moço não entendeu porque só fazia sexo. Pra conter a dor da solidão.

Peguei o ônibus errado e me perdi na cidade que nasci. A angústia era tanta que meus olhos evitavam olhar pra fora. De mim.

E ele não partiu na terça. Nem na quarta. Nem na sexta. Enquanto dormia eu despertei artesã, artista da paixão. Meu lado mais mulherzinha enfiou a linha no buraco da agulha. Meu lado mais Amélia despejou sonífero no suquinho de laranja espremido na hora, amor, quer? O amor queria. Meu lado mais humano mostrou o focinho gelado e doente, debruçou-se sobre o corpo inerte daquele. Que mais humana me deixava chorando à míngua. E costurado ele foi. Costurado ao colchão. Para nunca mais fugir. Pele pedaços colados na linha e tramas dos fios da colcha de amortelassê. Ali ficou.

Partiu enfim no domingo. À janela eu me despedia dele. Debaixo da língua a pele morta se desfazia como corpo de amante que acaba de morrer, se decompor. E era tão bom mastigá-lo. A gengiva sangrando.

 
 
 
 

 

Delicado Amor

Dobra a roupa dura sem amaciante que tirou do varal, cata com os dedos e leva à boca os grampos de madeira, junta o balde vazio do chão e carrega todos para dentro de casa. Inclusive corpo esquálido, pele ressecada, juntas duras, olhos glaucomados de mágoa. Encontra um fio de sol no rosto e o afasta retirando-se para debaixo da sombra de um amarelado limoeiro. Ensaia um sorriso ao descer o olhar para uma antiga bicicleta Monark, aro 14, decorado com pedaços de canudinhos plásticos coloridos. O guidão está torcido de modo estranho. O dono da bicicleta a abandonou há cinco anos ao entrar na puberdade. As imagens de um garoto moreno pedalando velozmente pelas ruas do bairro, buzinando contra pedestres desatentos na calçada e raspando de fininho (como ele dizia, "raspei de fininho, mãe") os troncos das árvores e à beirada dos valões.  À esquerda, próximo ao canteiro de miúdas margaridas, a mão de couro de um goleiro, a costura da luva desalinhavada, o polegar arreganhado num rasgo como se apontasse a falta do dedo. O menino não quer mais jogar futebol. Nem andar de bicicleta.

Traz as lembranças pra junto do peito. Recolhe um suspiro escondido entre as costelas; dói, o ato de suspirar dói. Assegura-se mais uma vez de que não esqueceu roupa no varal. O fio de nylon está esticado e vazio. Agora, não mais. Pousa nele um pardal. E a mulher de quarenta anos aparentando dez a mais, estica os olhos toldados por pálpebras insones até a janela da minúscula garagem, atravessa as grades mas se detém no vidro. Embaçado, sempre. Uma cortina de hálito é dispersa pela mão cujo dedo anelar jaz a sombra de uma antiga aliança. O recinto possui uma luz tuberculosa, as quinquilharias de outros tempos se amontoam indignadas, um colchão de solteiro se recusa a combinar espaço com a mesinha de madeira sustentando um prato com comida e um copo com água. E a mulher não vê mais nada.

Raspei de fininho, mãe...

Deposita as roupas sobre uma mesa de fórmica riscada com esferográfica azul com o símbolo do timão. Nas tardes de domingo o filho vestia o uniforme do Grêmio, cantava o hino do clube e seguia o pai em direção ao estádio. Voltava eufórico ou tristonho, dependia o resultado. Mas voltava.

Abre a porta da garagem com cuidado, entra procurando não fazer barulho, a luz de fora ilumina parcialmente o recinto. É como uma caverna. Tropeça num arranjo de correntes, elos grossos que se unem. Argolas de prisão como as vidas que se entrelaçam e se vigiam cegas em adoração. Só lhe resta tatear as paredes. É possível ouvir mais de uma respiração. Alguém se recolhe a um canto morno e guarnecido de cobertas. Um bichinho magro e abatido. Por cifrados instantes a suspensão do movimento porque duas criaturas se reconhecem na escuridão. A mulher sofre a primeira contração uterina; o outro: respira pela boca. Então ela sai e tranca novamente a porta.

Acerca-se dos brinquedos do filho, recolhe-os um a um, enfia-se num círculo de Legos, chupetas gastas, mamadeiras velhas, bonecos, carrinhos, dominós, gibis, carimbos, bolinhas de gude, raquetes, patins, revistas masculinas, cds, latinhas de cervejas vazias, canetas esferográficas sem carga, pedras de crack.

Amar é um crime hediondo, uma espécie de homicídio doloso. As partes envolvidas, expostas aos tiros, camuflam-se em trincheiras de voile. Para a mulher rodeada de infância e adolescência de outrem, a crueldade do acontecimento está incrustada como um mioma no útero. Mesmo que erga o olhar para a cela à frente, mesmo que odeie todas as más influências que lhe roubaram o filho, mesmo que as tentativas de resgatá-lo do vício, das bocas de fumo, dos inferninhos nos quais ele vendia objetos do próprio lar se esgotem, mesmo que os ombros já se cansem de carregar um corpo drogado de arrasto de uma margem à outra da cidade, mesmo que agora escute passos no quintal após o desligar de um motor de automóvel, o bater de uma porta e uma seqüência de palmas e ouça o seu nome e ouça o nome do filho preso acorrentado ao pé de uma mesinha de madeira e verta lágrimas quentes dos olhos opacos e a dor se multiplique em contrações violentas e a maldita vida se vingue em quem só pede amor e a porta da garagem se abra a mãos estranhas de um conselheiro tutelar que a informa sobre a prisão, mesmo assim é a melhor saída.

Algemada, encontra a viatura à frente da sua casa. Os vizinhos apontam e comentam (o monstro mantém o menino de 15 anos em cativeiro doméstico). A paisagem ao redor é dissimulada, todos usam máscaras sociais mal-acabadas. Então ele surge carregado por dois homens, amparam-no pelos ombros, falam-lhe coisas agradáveis e de bom augúrio. No meio do caminho, entre o meio-fio e o portão de casa, mãe e filho sepultam o olhar da despedida. Doce e profundo dizer sem verbalizar a morte do encontro.

Ele entra na ambulância. E chora.

Ela entra na viatura. E chora.

Nunca mais.

 

 

 

 

Tempestade de Areia Branca

Todas as manhãs ela caminhava à beira da praia e admirava o mar. Abaixava-se para juntar uma concha, fitava o céu e as gaivotas, lançava os braços pra trás do corpo e sentia-se abençoada por viver no litoral. Aquele lugar era o paraíso. O contorno da cadeia de montanhas sugeria um corpo de mulher deitada de lado, os quadris largos, a volúpia. E tudo era verde, um verde que se desfazia e se revigorava à medida em que as cores dos dias se alternavam. Uma faixa de areia branca e fina, cristalizava suas partículas para serem lavadas pelas ondas encapeladas. Ao longe, detendo-se os olhos numa linha imaginária, o horizonte se fundia com a superfície das águas. O vento era manso naquela manhã.

Como costumeiramente fazia, a mulher circulou a orla com despreocupação. O cavalete, a tela e os pincéis podiam lhe aguardar. Quem a puxava pela mão era a vida, na sua urgência e gana, contando os segundos, derrubando os grãos dentro da ampulheta. E, assim, deixava-se levar, piscando os olhos para a brisa gelada que teimava em lhe desmanchar o longo cabelo azul.

Nesse dia em particular, deitou-se sobre a areia, os braços cruzados detrás da cabeça, os pés livres dos calçados, os pensamentos deslizando como seda no céu do crânio. Vivia um momento original, acabava de vender tudo o que tinha para se refugiar na ilha e pintar.

Aos poucos, foi-se protegendo no calor do sono, sentindo um fio de brisa beijar-lhe os ombros. Encantou-se com a carícia e adormeceu. Quando despertou, havia um homem ao seu lado, também deitado e dormente. Possuía uma pele branca como a areia e o cabelo azeviche. Lembrava-lhe vagamente regiões perdidas na infância, pedaços de faces esquecidas e tinha o cheiro de antigos amores. Vestia uma roupa de pescador ou de alguém que caíra de um navio de carga; mas, estranhamente o tecido estava seco e limpo. E quando abriu os olhos, o pôr-do-sol o varreu com suas luzes alaranjadas e lhe revelou a face abatida. Olhava-a com confusão, como se acabasse de descer de um disco voador.

O primeiro contato foi uma tentativa de conversação. Falaram junto, pararam e tornaram a repetir as mesmas frases. Olharam ao redor e se grudaram na nudez do silêncio. As ondas dialogaram por eles. Até que ela se ergueu e apontou-lhe a cabana onde morava. Ele sorriu e disse que sabia que era ali, perto e longe do mar.

Antes que a mulher abrisse a porta da casa, o homem a possuiu, contra a alvenaria, apenas lhe erguendo o vestido.

Amaram-se várias horas por dia. As semanas viravam as folhas do calendário. A pintora não pintava. O pescador mantinha-se longe do mar. Às vezes a mulher duvidava de sua sorte, ter um homem tão bonito e carinhoso, tão solícito e ardente, tão misterioso e terno. Velava-lhe o sono e antes que adormecesse beijava-lhe as pálpebras. Como temia perdê-lo, raramente o levava consigo à cidade a fim de comprar mantimentos. Ele permanecia dentro de casa, sentado no sofá, olhando pro vazio e à espera dela. Quando a mulher surgia — e livros e vinho e flores — o rosto do homem ganhava cor e vida, os lábios avermelhavam-se num sorriso, seu corpo ganhava movimento. Sempre. Em direção a ela.

Distante de casa e dele, a pintora sentia dores físicas e uma náusea insuportável. O ar tornava-se pesado, as paredes oprimiam-na, as ruas eram perigosas e os humanos assassinos. Urgia que voltasse e o tirasse do transe.

Na noite que seu carro quebrou na estrada e ela teve de ficar num hotel, o céu enlutou-se de nuvens carregadas de eletricidade. A tempestade sacudiu os coqueiros. E a artista caminhou em círculos, no quarto, por horas inteiras e quebradas. Cólicas agudas feriam-lhe o abdômen e o peito. Era varrida por lanças incandescentes que a faziam cair de joelhos no chão. Num gesto tresloucado, varou as ruas com a chuva açoitando-lhe a pele, o casaco apertado ao corpo, as lágrimas rolando-lhe pela face maquiada. Dois, cem, quinhentos passos. Ganhava as calçadas das avenidas, atravessava becos, cruzava por ruas secundárias em passadas largas e desesperadas. E ao perder um dos tamancos, jogou o outro fora e desatou a correr, correr, correr.

A imagem do seu amor à mente dava-lhe força e resistência. A consciência de que o presente lhe seria roubado também. Fora na praia que o encontrara, o homem trazido pelo mar. As ondas nervosas agigantavam-se e explodiam no ar, quebravam nas rochas e penetravam no colo de areia da praia.

Portas e janelas da cabana abertas. No interior, o vazio.

Rasgou a pele do pulso com as unhas. Gritou pelo amante, um nome inventado na última nota aguda do gozo. Patética, corria de um lado para outro em frente ao mar. Ainda tentou encontrá-lo pela vizinhança, batia nas portas, acordava os outros, rompia a monotonia típica de uma cidadezinha. Até que, esgotada de juízo, deixou-se levar pelo choro convulso.

Voltou à cabana como um vodu com alfinetes e agulhas espetados pelo corpo, a coluna tesa, órbitas oculares injetadas e vibrantes. Largou-se sobre a poltrona preferida do seu preferido e ali morreu. Sentada sobre o humano de areia, ladeada pelas roupas sem corpo.

 

  

(imagens ©sami sarkis / image source)

 

 

 

 

 

  

 

Janice Diniz (Porto Alegre, 1968). É escritora, revisora e professora de português, redação e literatura. Participou de antologias de contos fantásticos. Colabora com textos em vários sites literários. Recebeu prêmio editora Abril por seleção nacional de breve narrativas de histórias de amor, 2000. Publicou artigos em jornal de Sorriso, MT. Edita o blogue de ficção e não-ficção Teofilina Bermácia. E sai do forno sua primeira publicação solo: Ligações da Rua.
 

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