Rodrigo de Souza Leão — Simone Campos, você enfrenta algum preconceito por ser uma escritora tão jovem (25 anos)?

 

Simone Campos — Quando produzo algum efeito literário mais elaborado, as pessoas tendem a pensar que foi por acidente ou porque vivi aquilo. "Ela é muito nova, não pode dominar a técnica ou ter a imaginação para isso". Como muitos autores jovens se inspiram mesmo na própria vida, e com orgulho, as pessoas ficam predispostas a acreditar nisso e eu acabo no mesmo saco, por mais que esperneie dentro dele. Já fui acusada de autobiografismo em relação a uma libertina branquela (A feia noite), a uma morena pobre que parte para o exterior (Elidu), uma lésbica apaixonada (Bondade) e uma patricinha rica (No shopping). Quer dizer, basta usar a cabeça para ver que não é possível. Se bem que, no fundo, é um elogio: consegui tornar aquele personagem real para o leitor...

 

 

RL — Como foi ganhar a bolsa Petrobrás Cultural? Qual a importância deste incentivo para escritores?

 

SC — Foi ótimo — embora a burocracia me enerve. A importância da bolsa é que te dá o tempo para trabalhar. Fazer sucesso com o primeiro ou segundo livro não te dá o dinheiro para comprar o tempo. Então você rascunha na beira do caderno na aula, pára o trabalho e digita algo, escreve de noite quando chega em casa... e assim o livro anda muito devagar! Claro, andar depressa demais também não adiantaria, porque é preciso fermentar as idéias um pouco — quanto vinho verde há por aí... E você não precisa escrever o tempo todo. Ler, pesquisar e observar também é importante. E até não fazer nada.

 

 

RL — O rótulo geração 90 cabe bem para definir a sua produção? Qual a característica e o que há em comum entre os escritores contemporâneos?

 

SC — É um rótulo. Eu nunca escapo dessa sensação de ser uma das 15 debutantes: no fundo cada uma é um indivíduo singular, é meio chato levá-las assim em bloco para a festa. A maioria topa isso pelo bem dos álbuns de fotografia e da memória fraca das tias. Eu publiquei em 2000, então, estou entre a geração 90 e a 00 — até saí na antologia Geração 90 e numa matéria chamada "Geração 00" com meses de diferença. Para definir o que qualquer uma das duas têm em comum, eu precisaria abraçar o rótulo, generalizar e ler todo mundo, e não acredito em fazer nenhum dos três.

 

 

RL — O seu primeiro livro é sobre um shopping. O que é fascinante neste universo e como foi a elaboração do livro?

 

SC — Mundos artificiais são extremamente fascinantes, tanto pela sua dinâmica interna como na sua relação com o exterior. Shoppings. Internatos (vide Harry Potter). Seitas. Clubes. Grupos de apoio (Clube da Luta). A pesquisa no shopping era uma pesquisa que qualquer um podia realizar facilmente e que apesar disso era uma inovação. Mas só sendo adolescente para ter aquela visão de terreno.

 

 

RL — Como é o seu processo criativo?

 

SC — Ando por aí e observo; paro e penso; carrego um caderno e escrevo também no computador. Estoco as idéias, sinopses e cenas, e de vez em quando essas idéias se aglutinam e formam parágrafos. Quando tenho um trecho promissor, abro um arquivo novo só para ele, e começo a guardar recortes e informações sobre o assunto, além de pesquisar. Com o texto quase pronto, procuro leituras que tenham a ver com ele para ver se não estou repetindo ninguém e para ver se tenho mais alguma idéia para melhorá-lo. Às vezes, também sonho com histórias originais e altamente simbólicas.

 

 

RL — Quais os escritores que fizeram e quais os que fazem sua cabeça hoje em dia?

 
SC — Comecei com Monteiro Lobato, Roald Dahl, esse tipo de coisa. Depois, na época de No shopping, estava totalmente ligada em Nabokov, Clarice Lispector, Machado de Assis, Dostoiévski e Kafka. Hoje, sem ter abandonado os de antes, Philip K. Dick, Agustina Bessa-Luís, Haruki Murakami, Neil Gaiman, Chuck Palahniuk, Alan Warner, Tchecov, Bulgakov. Acabei de ler um livro da Colette de que gostei muito.

 

 

RL — Você gosta de ficção científica? O que mais lhe atrai neste gênero que é considerado menor?

 

SC — Gosto especialmente do tipo de ficção científica que examina a natureza humana (e robótica) e não tanto a ciência: Aldous Huxley, Philip K. Dick, Ursula LeGuin. Gosto também da possibilidade de exorcizar o futuro, uma capacidade anti-cassandra. Quando você fala, não acontece.

 

Outra coisa admirável: ao escrever um romance histórico é que precisa de imaginação para estruturar personagens e enredo, mas não o cenário. O cenário vem com pesquisa. Na ficção científica você precisa imaginar cenário e personagens/enredo. É duplamente embasado na imaginação.

 

Estou terminando um conto que conjuga os dois, romance histórico e ficção-científica. Nele, uma velhinha dos dias de hoje acorda jovem. Pesquisei para saber quais os referenciais da velhinha, lá pelos anos 50 e 60. Foi aí que descobri que, para ela, os dias de hoje são ficção-científica.

 

 

RL — Qual a importância da internet para o escritor atual?

 

SC — É o canal de divulgação ao alcance de qualquer escritor. E quando se disseminar mesmo o e-book, vai ser mais importante do que nunca. Agora, o escritor, pelo menos o brasileiro, tem que perder essa idéia de "maldito" e começar a divulgar direito o trabalho, sem depender tanto de assessoria de imprensa. O que não significa aporrinhar a paciência de todo mundo para ler o original dele, e sim atrai-los para essa leitura de forma criativa.

 

 

RL — Qual a influência da música, da pintura e outras artes no seu trabalho?

 

SC — Às vezes, parece que estou pintando com palavras, especialmente no início dos textos. Uso muitos verbos de ligação, estabelecendo um clima, uma temperatura, e também uso muitas cores e luzes diferentes. A música entra como insumo — eu escrevo ouvindo música, chego a coletar algumas que têm a ver com o tema e fazer listas — e como fonte de ritmo. Todo texto tem que ter ritmo. As outras artes contribuem aqui e ali, como a arquitetura na hora de imaginar a disposição de um apartamento, algo muito importante no caso do A feia noite. O quarto da Maria Luiza fica de frente para um paredão, escapa do sol. Tive que criar uma planta baixa, pensar em pontos cardeais. Mas isso não fica aparente na história — e nem pode ficar. A pesquisa tem que ser invisível.

 

 

 

 

 

RL — Acredita em escrita feminina? Escrita tem sexo?

 

SC — Às vezes tem, mas não está condicionado ao sexo do autor ou do leitor. É algo arquetípico. A Patrícia Mello e a Ana Paula Maia escrevem livros de macho, em que acontecem coisas sujas e criminosas. E Alan Warner e Chuck Palahniuk já escreveram, pelo menos um livro cada um, com mulher em primeira pessoa. No entanto, eu gosto de todos. Ou seja, no fundo, classificar não ajuda muito: toda literatura é meio hermafrodita.

 

 

RL — Como você definiria seu estilo de escrever?

 

SC — O único jeito de defini-lo é dizer que ele é mutante, maleável: um estilo Zelig. Ele se molda ao tema que escolho. Ele se torna o personagem e o cenário. Ou seja, o leitor tem a impressão de que estou sempre escrevendo algo muito diferente. Por um lado é bom, garante a originalidade, mas por outro, deixa o leitor sem chão, porque ele pode gostar muito de um texto e ver pouco ou nenhum reflexo dele no próximo.

 

 

RL — Qual a importância de participar de uma antologia? O que é uma antologia?

 

SC — Uma antologia é uma filtragem: será necessariamente subjetiva, parcial. A importância, é claro, provém do fascínio das pessoas com listas, querem saber quem passou no crivo dessa vez e conhecer mais de perto a produção recente. No caso das antologias temáticas, a pessoa tem curiosidade de saber como cada um tratou o tema, se dois tiveram a mesma idéia e coisas assim. Então, tem um papel divulgador muito importante, embora quem fique de fora, injustamente ou não, resmungue um pouco. Eu entrei em umas e não em outras, para mim está bom.

 

 

RL — Tem algum mote que a acompanhe pela vida? Fale um pouco dele ou de alguma frase que tenha importância para você?

 

SC — "Se existe algo que lhe incomoda, verbalize em detalhes". Isso serve tanto para a vida como para a literatura. Na literatura, "verbalizar em detalhes" é mais complexo: tem gente que explica mesmo, tintim por tintim, o que, além de não ter o efeito esperado, causa sonolência. Às vezes, escrever parece com criar um código de programação. O leitor vai cumprindo aquela programação e sai do outro lado mais vivido. Recriar a experiência para o leitor sem soar pretensioso, fazendo com que ele sinta o drama, é o desafio que perdura.

 

 

RL — O e-book tem futuro?

 

SC — O e-book é o futuro. Assim que inventarem um leitor digital decente, o livro em papel vai começar a virar o que virou o vinil: item de colecionador. Isso não é ruim: vai salvar muitas florestas. Mas o mercado vai virar de cabeça para baixo, é claro. Vai ser uma seleção natural mais estrita para autores e editoras.

 

 

RL — Quem é o escritor brasileiro?

 

SC — O escritor brasileiro não desiste nunca. O escritor brasileiro é, antes de tudo, um forte. Às vezes, até os que deveriam desistir, não desistem. Alguns querem ser escritores pelo desgosto com a sociedade, pelo fato de poder trabalhar longe dela e ao mesmo tempo garantir seu sustento por ela, e outros estão deslumbrados com a sociedade mas vão fingir que não, até para aparecer mais.

 

Estamos na periferia do mundo literário, e não conseguimos ser exóticos o suficiente para ser publicados "lá fora". Aí nos voltamos para o mercado interno, que só agora está começando a florescer, e temos que adivinhar do que o público gosta, porque todo mundo finge que sabe, mas só se apóia em dados externos ou posteriores como listas de best-seller. Aliás, a maioria dos escritores brasileiros é alérgico a marketing, quer dizer, não gosta nem de pensar em leitor, editora, divulgação.

 

 

RL — Qual o papel do escritor na sociedade?

 

SC — Depende do escritor. Dá para escolher seu papel, quer dizer. Se vai ser um ser político, apolítico, um ermitão ou mais um escritor de mesinha de bar. Mas acho que é escrevendo, e não sendo, que se tem mais poder para influir no imaginário de uma sociedade; disseminar idéias subjacentes que geram, mais tarde, as mudanças. Além do mais, aqui no Brasil, o escritor tem um dever extra a cumprir: levantar a bola da literatura, torná-la mais disseminada, especialmente, escrevendo bem.

 

 

 

 

 

 
 
março, 2008
 
 
 
 
 
 

Simone Campos. (Rio de Janeiro-RJ, 1983). Jornalista, escritora, tradutora. Publicou No shopping (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000) e A feia noite (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). Participou das antologias 21 contos pelo telefone (São Paulo, Editora DBA, 2002); Geração 90 — os transgressores (org. Nelson de Oliveira, São Paulo: Editora Boitempo, 2003); 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura (org. Luiz Ruffato, Rio de Janeiro: Editora Record, 2004); Entre nós (org. Luiz Ruffato, São Paulo: Editora Língua Geral, 2007). Ganhou a bolsa Petrobras de Criação Literária 2007 para escrever o terceiro livro, de contos, Amostragem complexa, que será concluído em 2008 e publicado em 2009, pela 7Letras. Escreve para o jornal O Globo e o Le Monde Diplomatique online. Edita o blogue Sibylla. Mais informações clicando aqui.

 

Mais Simone Campos em Germina

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.