*

 

Se não escolhermos a onda

virá o mar com os escolhos do nada

Onde formos

serás a minha palavra

Te tocarei com a ordem

e com o olhar de Deus

e terás o fogo

onde queimarei

o que for celeste

 

Serás a adaga que carregarei

para decepar destroços

Te tocarei com as mãos

e com a quentura do afago

e terás o fogo

de um ser celeste

 

Se não vier com a força

a onda será um desfazer-se em nada

Serás a onda de desfazer

os prantos e as pestes

Arrastarás estrelas e meteoros

e serei teu destroço celeste

 

 

 

 

 

 

*

 

Encontrar por exemplo debaixo do escuro

o baixeiro com o suor da primeira jornada

sem que irrompessem as visitações da queda

Por exemplo os móbiles dos brotos no campo

o exemplo do pai que faz o monte de espigas

Encontrar por exemplo debaixo do escuro

a larga folhagem do imbé e da quaresmeira

deixadas rente à pedra traída pela força

Por exemplo a palha espalma vivas ao sol

por exemplo a leveza da água move o moinho

e o fio de farinha sem notícias da fome

Encontrar a chave com o exemplo do fogo

e a porta do enigma da quentura do forno

E sempre a euforia dos trigais nas mãos do homem

 

 

A Natália

 

 

 

 

 

 

*

 

Ainda que não venha nenhum barco

e bruma alguma traga a carga de lenha

Ainda que o barqueiro venha louco

e todo o aço da certeza afundará

Ainda que o vento atormente com fúria

e vá a madeira polida afundar-se

Ainda que a carga seja a lâmina

com o colo certo de degolar

Ainda que na porta anunciem

que a florada do dia irá murchar-se

Ainda que seja um vasto mar

e a alma em deleite vá secar-se

Ainda que o mar seja uma rocha

e no deserto o coração vá navegar

 

Ainda assim o faroleiro acenderá

 

 

 

 

 

*

 

Não sou senão outra escavação

outra madeira para o pó das traças

A desfigurada nesga de terra

nos traçados mapas da fúria

 

Não sou senão outro túnel

outra cerca no labirinto

A rachadura em uma terra

onde sorriem as faces do deserto

 

Sou a aguardada porta

onde brilha a saída do fosso

Em mim giram os trincos

e irão entrar com outros gozos

 

 

 

 

 

*

 

Navego e o mundo é só onde estou.

Dizem que há nortes com flores e flautas.

Dizem que há largos portos,

o prumo nas mãos dos nautas.

 

Amam nas águas as jias.

Dizem que para os mil filhos.

Não encontrei para as orgias

as garotas indo sem rumo.

 

Dizem que há os tálamos

à espera cobertos de goivos.

Foram vistos os acantos

e as garotas ainda navegam.

 

Navego num mundo sem prumo e sem nauta.

 

 

 

 

 

*

 

No galho a casca não é definitiva

Para filhotes surgem tocas,

as juntas amontoam pó e surgem trevos

 

Muda o pássaro a plumagem

só para ter outra mais viva

e assim combinar com a nuvem

 

Vivo de me mudar de caminhos

para não ter de dar o mesmo tédio

Dar outro gosto à ternura

 

Vamos mudar de banda

Vamos bandear de brisa

E em meus braços nasçam ninhos

 

 

 

 

 

*

 

Conhecemos dias de ira, de fogueira

de goivas nos músculos, de cão destravado

Mas sobra o vento novo sobre as orlas

Em Thule sobra o transe dos guerreiros

Sobram limões, palavras renovadas

Vêm galhos ornar lábios e janelas

Vão vê-los só quem busca por beleza

só quem pensa colheita, quem deseja

quem pensa fruto e desfrutar desejos

Vamos falar daqueles cogumelos

cresciam rente ao rego e às formigas

Já chegam outros oferecendo sol

com seus lábios abertos e janelas

 

Muito existe, menos o país da ferrugem

 

 

 

 

 

*

 

Tangido a estalos secos

o cavalo ecoa no asfalto

empurrado dentro do enfado

Pressupõe um mundo que nada

sem nódoas no verde

O tempo dentro da viseira

não existe nas laterais

O espaço não passa

de uma água incapaz

de escapar aos canais

A distância se acanha

sem declarar aonde a chegada

Pode ser onde for

os corvos não acabaram

Talvez montes de lixos

ou a repugnância do estorvo

Apavora desconhecer

quando será admitido beber

e mesmo se haverá água

Suplício não saber quando

será dado o último estalo

Angústia o desperdício da marcha

levando nem mesmo ao atoladouro

 

 

 

 

 

*

 

E há os que ficam

dentro da margaça

apenas carregando os fardos

 

E há os que são pura massa

sem nenhuma levitação

que lembre a graça

 

E há os que em estado

de nenhuma graça

nem se sentem desgraçados

 

E há os que silenciam

a mágica da graça

vestidos com suas fadas

 

E há os que arregaçados

de tanto levar coiçadas

recomeçam para alcançar a graça

 

 

 

 

 

*

 

Ser o cipreste da beira do Nilo

Esquecido da ferrugem das pragas

e sem a impiedade das aves do tempo

Entregue ao saibro do silêncio

nem a mínima para o rumor da sabedoria

 

Iria me deixar num barranco

com as mãos na corda do abismo

E quem visse a ameaça da queda

não acharia fraudes

não apanharia frutos

 

Não emprestaria madeira às viagens

ou cachos às virgens em romaria

Não pediria água, saibro ou sol

Não se apiedariam de minhas ruínas

as lianas em flor e os braços

 

Resina alguma exigiria o cristal do sangue

Areia alguma me envelheceria

Quando alguém contemplasse a secura

com as garras cravadas nas beiras

não exigiria sinecuras e pirâmides

 

Ser a secura na beira do Nilo

 

 

 

 

 

*

 

Avistar um palmo

na frente

do nariz

uma idéia

infeliz

Ainda mais quando

ficamos sem idéias

nada a gente

já não diz

Está tão escuro

que a gente

só contradiz

Quando a gente

arregaça as mangas

e apalpa

não sente que está

espantando a garça

 

 

 

 

 

*

 

Somos os encarregados de impedir as trevas

Nunca anoitecer para não ter de esperar o sol

Se alguém do reino das trevas ameaçar uma árvore

ou preparar o barro da tinta negra

— acabar com o corte de derrubar a madeira

e com a escavação do saibro em gênese na noite

 

Nem a folha de jasmim

nem o olhar da criança

nem a barra do dia

Nada pode ser pintado de escuridão

 

As flores não mais cairão dos galhos

se os funerais todos foram cancelados

As heroínas assistirão a vitória definitiva

e desistirão todas de envelhecer

 

 

 

Salomão Sousa (Silvânia-GO, 19/09/52). Mudou-se para Brasília em 6 de janeiro de 1971. Jornalista do Poder Executivo, trabalha atualmente em assessoramento parlamentar pelo Ministério do Trabalho. Participou do movimento da Poesia Marginal, no final da década de 70, principalmente com Esbarros. Nessa época, assim se manifestava Jorge Amado sobre Salomão Sousa: "Um poeta de primeira ordem — original e humano, sensível e consciente. Poesia que não é cera, é chama". Organizou as antologias Em canto cerrado (de poesia) e Conto candango, com escritores de Brasília. Esta última está registrada como obra de abonação da Enciclopédia de literatura brasileira (1990), de Afrânio Coutinho, principalmente do verbete Literatura, Candanga. É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil. Participa da Antologia da nova poesia brasileira (1992), de Olga Savary; e dA poesia goiana do século XX, de Assis Brasil. Bibliografia: A moenda dos dias (Brasília-DF: Ed. Coordenada, 1979); A moenda dos dias/O susto de viver (Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira em co-edição com o INL, 1980); Falo (Brasília-DF: Ed. Thesaurus, 1986); Criação de lodo (Brasília-DF: edição do autor, 1993); Caderno de desapontamentos (Brasília-DF: edição do autor, 1994); Estoque de relâmpagos (Brasília-DF: Secretaria de Cultura do DF, 2002); Ruínas ao sol (Prêmio Goyáz de Poesia. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2006); Safra quebrada (Brasília-DF: Patrocínio do Fundo de Arte e Cultura, 2007). Editou o zine Chuço (premiado em Aracaju-SE). Tem crítica literária e poemas publicados em diversos jornais do país, tais como Suplemento Literário de Minas Gerais, O Popular e Correio Braziliense. Em 2001, ganhou o Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal, com o livro Estoque de relâmpagos (poesia). Está organizando a antologia Alguns poetas de Brasília para a I Internacional de Brasília, que será realizada em setembro de 2008 pela Biblioteca Nacional de Brasília.

 

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