"O homem envelhece é porque não aguenta viver, ainda não

 sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo".

João Guimarães Rosa

 

João Guimarães Rosa é reconhecido pela crítica como um alquimista da língua. Escritor inventivo, o autor de Grande Sertão: Veredas firma-se no panorama literário brasileiro como artista que trabalhava com as potencialidades da Língua Portuguesa, pois acreditava que para transformar a realidade fazia-se necessário trabalhar de modo autônomo a linguagem que diz o mundo.

Para este ensaio, escolhemos a novela "Cara-de-Bronze", presente no volume No Urubuquaquá, no Pinhém, de Corpo de baile (1956), enfatizando o personagem principal — o fazendeiro — e o seu último desejo: conhecer o quem das coisas. Nessa novela, João Guimarães Rosa, cujo centenário de vida foi comemorado em 2008, utiliza recursos da técnica teatral — o reiterado uso de diálogos — e também da técnica cinematográfica, pois há momentos em que a narrativa surge como um roteiro de cinema.

Em "Cara-de-Bronze", é possível observar o mecanismo de construção de uma novela. Temos presente nessa narrativa um personagem chamado Moimeichego — um Eu quadruplicado — que participa da estória lançando perguntas para colher informações acerca do fazendeiro Cara-de-Bronze. Pode-se compreender a figura de Moimeichego como a do autor, em sentido lato que, se introduzindo nos interstícios literários, tece a estória com detalhes dispersos e, a partir do aparecimento de outras figuras, urde as diversas estórias, como podemos ler em determinado trecho de "Cara-de-Bronze":

 

Mas a estória não é a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá. Mas – é estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaíba nova, da que é lustrada. [...] Quem conheceu de pero Segisberto Jéia? Quem sabe como ele empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura... Sem a existência dele — o Cara-de-Bronze — teria sido possível algum dia a ida do Grivo, para buscar a Moça? O Velho, com a cabeça encalombada de bossas — como se dela fossem brotar idades e montanhas. Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas. Mas, o que fazia, era para se esquecer, de si, por desimaginar. [...] O homem envelhece é porque não sabe agüenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo. (ROSA, 1984, p. 104-105).

 

 O vocábulo Moimeichego sugere a estratégia do autor de se imiscuir na estória, um sinal de sua patente existência. Temos nessa palavra o vocábulo "eu" versado em quatro idiomas: francês, inglês, alemão e latim. Ao lado dessa entidade, há outra: a do narrador que é parcialmente onisciente, pois que ele mesmo partilha da dúvida que a todos os vaqueiros perturba: quem viria a ser Cara-de-Bronze? O fragmento a seguir mostra a tentativa da construção da imagem do fazendeiro Segisberto Jéia, mediante um mosaico de características, tanto físicas quanto pessoais:

 

Moimeichego: Primeiro, vocês me contem a descrição do Cra-de-Bronze. Tal e Tudo.

O vaqueiro Tadeu (rindo): É deveras, minha gente... Só num mutirão, pra se deletrear. Eh, ele é grande, magro, magro, empalidecido...

O vaqueiro Adino: Muito morenão...

Moimeichego: Mas, é pálido, ou é moreno?

O vaqueiro Doím: Mão de inveja caiou a cara dele!

O vaqueiro Mainarte: Inveja? Só se for inveja mas do que ninguém não tem.

O vaqueiro Sãos: A bom: ele é escuro; mas já foi mais.

O vaqueiro Raymundo Pio: Amarelou no tempo, feito óleo de sassafrás...

Outro vaqueiro: Palidez morena...

Outro vaqueiro: Tem partes, e tem horas... O alto da cara com ossões ossos...

Outro: Ele todo é em ossamenta de zebu: a arcadura... (idem, p. 93-95).

 

Observa-se nesse excerto a presença de Moimeichego e sua curiosidade a respeito do Cara-de-Bronze. É notável ainda o nome de um dos vaqueiros: o vaqueiro Mainarte. Atentemos à primeira palavra que compõe esse nome: Main. Essa palavra nos remete ao pronome possessivo alemão — mein, meu — cuja pronúncia é "main", seguido de arte. Verifica-se, portanto, mais uma estratégia de inserção do autor na estória: Mainarte – minha arte.

O narrador que surge no trecho a seguir e que palmilha "Cara-de-Bronze" está situado fora do grupo de vaqueiros. Sua função parece bem clara: ele orquestra os acontecimentos que se desenvolvem no exterior da cena e tece considerações acerca da matéria narrada:

 

Não. Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas – também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. [...] Mas, como na advinha – só se pode entrar no mato é até ao meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira. (idem, p. 103).

 

Essas considerações são de caráter metaliterário, pois o narrador incursiona pelos meandros de como se contar uma estória: afiança ao leitor virtual que é dificultosa, que não é tarefa simples, e pontua que alguns não gostarão da narrativa, por necessitarem de um fim, porém esse epílogo não será alcançado tão facilmente, uma vez que a estória é concebida como mato cerrado, cujas trilhas não existem: só pode entrar até o meio. Se o leitor adentra até o meio da estória, do meio para o fim será mais estória. No entanto, se a entrada somente é permitida até o meio, quando se terá noção de um possível final?

"Para chorar noites e beber auroras" (p. 117), o Grivo, personagem que já aparecera em outra novela do escritor, "Campo Geral", é escolhido pelo Cara-de-Bronze para relatar o quem das coisas. Durante a travessia, o Grivo vai colhendo detalhes dispersos, "uma massa de lembranças", matéria bruta para a poesia que jorra das canções do cantador da fazenda, o Quantidades. Palavras-cantigas, presas em redes que não se veem.

O fazendeiro Cara-de-bronze, cujo apelido nos remete ao material, o bronze, misterioso, metal que não tem a glória do ouro e da prata, mas que serve para forjar armas, está confinado a um quarto, doente, talvez à beira da morte, e seleciona um vaqueiro que possa lhe trazer a poesia dispersa do ambiente. Vemos esse fazendeiro como metáfora do patriarcado em decadência. Cara-de-bronze não tem filhos, é uma potência que não engendrou nada além de uma fazenda. Dele, os outros vaqueiros fazem um mosaico discursivo.

Compreendemos Grivo como um clássico contador de estórias, porque ele tem por função reunir detalhes dispersos, como o nome de plantas e de pássaros, a visão da rede de uma mulher, a "Muito Branca-de-Todas-as-Cores", e oferecer esses detalhes ao seu patrão, que está dentro de um universo fechado, o quarto, para, quem sabe, perpetuar-lhe a existência.

 

 

 

REFERÊNCIA

 

ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

 

 

 

 

junho, 2009
 
 
 
 
Sarah Forte (Fortaleza/CE). Estudante de Literatura Brasileira. Gosta de escrever contos. Uma iniciante.
 
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