O Grito | Edvard Munch, 1893 | Óleo e Pastel S/Cartão |91x73,5 cm |Galeria Nacional de Oslo, Noruega
 
 
 


 

O poema

 

há um relato de voz naquela voz,
tão retorcida voz, toda ela espanto.
o corpo que é voz tem um esgar
que deixa de ser corpo e é só voz.

se munch se dissesse, rediria
a voz candente, noite de gravura,
que é gravura e voz que firma a tela.

intensos tão meandros destes traços
que num itálico do grito a fala sente
o homem ser só grito, sem mais homem.

(Em Matéria Bruta, 2006)

 

 

 

Razão

 

1. O desafio aceito: o caminho

 

Recebo, do José Aloise, o convite/convocação para escrever "a genética da coisa". Coisa que é o meu poema "O Grito", trabalhado sobre o Munch. Aceito. Cabe buscar o que dizer. Não domino os aparatos críticos. O caminho será o relato do caminho de chegada ao poema. Que forças me moveram. É mais um percorrer a mim mesmo, com as influências que me amarram. Sempre estive mais para fazendeiro do ar.


"sou fazendeiro do ar,
do mar, índia, portugal,
de natal, das trevas, minas.
sou fazendeiro da noite,
sou fazendeiro esquisito,
mais pra feio que bonito,
menos do bem que do mal.
claros delírios, donzelas
verdes azuis amarelas,
nascentes do meu jardim.
fazendeiro de fazendas,
mistura de pano e rendas,
de bois, jumentos e éguas.
cada passo eu piso léguas
da fazenda que há em mim".

(trato)

(Em Bené para Flauta e Murilo, 1990)

 

 

2. O meu interesse agudo nas artes plásticas

 

As artes plásticas sempre me tocaram de forma especial. Isso só fez crescer a partir da minha convivência em tempo integral com o meu camarada, amigo, irmão, Carlos Scliar. O cotidiano tomado de telas, objetos, gravuras, desenhos, histórias, biografias, discussões, me movimentou forte nesse caminho da arte. Eu tive nele um mestre permanentemente disposto a contribuir, esclarecer, questionar. Me fortaleci. Daí o falar, na poesia, das artes plásticas e dos artistas, cresceu. Sobre o Scliar e o seu trabalho, me manifestei várias vezes. Sintetizado:



Scliar, Carlos


"suspira objeto endiabrado,

natureza desmontada.

cada traço remonta.


de muito, faz desassombros na tela".


(Em Bené para Flauta e Murilo, 1990)



Uma breve palavra sobre o amigo desafiador.

 

 

3. Picasso, o galo bélico

 

Nesta conversa, Picasso é uma obrigação. Vejo um galo desenhado por ele em 1938. Agudocomo todos os galos e mais agudo por ser de Picasso. daí sai o

"Galo bélico, Picasso, 38".

"agudo ângulo, reteso, o galo vinca
a noite que desnuda no pescoço.
um galo válido, picasso, 38,
quadrimestria, no cubo, quintessência.
fala reta, de galo, quase reto
como se outro galo não possível.

um galo amplo, falado como espera
de outra tão manhã, picassiana."

(Em Tempo quando, 1996)


Afinal, o poema é plástico. Vou dizer das artes e dos artistas através dele.

 

4. Uma sequência obrigatória: "a tua noite é vesga, a tua ânsia é água"

Alguns gritos, de vária dimensão, aparecem. O ovo é a origem.

"o ovo é um riso e afago da manhã.
seu branco é texto da pele de um dente
que quebrado traz podre, enxofre, galo.
se um picasso sabe, ele o transforma ovo.

picasso, cúbico, do ovo, mondrian
fazido cores puras, geometria rouca
de levar tapa de cérebro escarlate
com tanta vida a defender de traços.

se ovo fui, quieto arregacei
umas manhãs-kandinsky, voluptuosas
de cor. talvez uma quirera
se benfazeja seja faça-se roault".

(Em Matéria bruta, 2006)

 

 

5. Munch: a angústia desmonta

No fundo impacto do expressionismo, Munch delimita. Não há como passar ileso por ele. A amargura do personagem/ser na ponte, o torcido do corpo e da boca, as linhas gerais da imagem, as cores que submetem o meu olho, levam a que eu me manifeste. O grito me caça. Aquele ente vedado, puro grito e ânsia, é o que sobra em palavra.

"intensos tão meandros destes traços
que num itálico do grito a fala sente
o homem ser só grito, sem mais homem".
 

 

março, 2010
 
 
 
 

Romério Rômulo (Felixlândia/MG). É professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Poeta e editor, prefaciou e publicou com Sebastião Nunes a primeira edição assinada dos poemas eróticos de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Até então todas eram clandestinas. Publicou os livros de poesia Bené Para Flauta & Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996), Matéria Bruta (2006) e Per Augusto & Machina(1999), entre outros. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro. Outros poemas podem ser lidos em seu blogue [ http://romerioromulo.wordpress.com ].

 

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