©astrid westvang
 
 
 
 
 
 
 
 

Gula

 

Nove horas e vinte sete minutos. Os pais de Mariano, religiosos e conservadores, acabaram de sair para a missa, deixando-o sozinho em casa. O ritual de domingo se repetiria: o confronto entre pecado e rotina voltaria e acontecer naquele dia.

Posicionada na janela em frente ao banheiro da casa de Mariano, Narcisa, a vizinha, já o espera. O menino está atrasado alguns segundos, e o desespero que ela sente quando ele demora sempre é justificado como "amor demais". Ela mordisca, vagarosamente, um pequeno pedaço de quindim e o procura pelo binóculo. Apressado, Mariano procura os pêssegos e a faca, os únicos acessórios que usa para seduzi-la.

Impaciente, Narcisa espera pela nudez do garoto de coração selvagem. Sabe que será impossível tocá-lo, e esta constatação representa uma dor intrauterina que é aliviada quando ela o vê. Mais uma vez, ele aparece com o habitual suspense de ocultar seu corpo com uma toalha amarela rasgada, como se ainda houvesse algo a ser revelado, jogar o trapo no chão, como se não a visse, e ligar o chuveiro.

O último pedaço do quindim derrete na boca de Narcisa, doce demais. Mariano finge não olhar para a vizinha, mas prestava atenção em todos os movimentos dela. Em gestos calculados, sempre em busca de plasticidade, corta pequenos pedaços do pêssego escolhido e o mastiga, suavemente, como se degustasse cada partícula. Narcisa gosta de olhar, é seu maior segredo. O pêssego termina, e a semente escorrega pelo ralo. Nu, estrategicamente enquadrado à janela do sobrado da frente, Mariano escolhe outro pêssego e, antes de passá-lo em seu corpo, contempla a fruta com triste volúpia. Está excitado, gosta de ser desejado pela vizinha obesa, muito mais velha do que ele.

 

 

***

 

Narcisa compreendeu que o momento decisivo em sua vida foi tê-lo visto, quando voltava do mercado, cheia de sacolas ao lado do marido e da filha pequena. Viu, atrás do caminhão de mudança, primeiro as pernas finas, depois o short de malha fina e o peito raquítico, atrás da caixa de brinquedos que levava para dentro, e o rosto mais angelical que havia visto. Naquela época, Mariano tinha, no máximo, 11 anos, enquanto Narcisa, com o coração disparado, acabara de completar 38.

Ela não se lembrava ao certo quando passou a preferir doces amarelos, quando o corpo do jovem garoto passou a ser seu objeto de desejo, ou quando a mania de observar entrou em sua vida. Desde que viu Mariano pela primeira vez, embora nunca tivesse coragem de falar com ele ou ninguém de sua família, passou a procurá-lo em todos os lugares.

Perdidamente apaixonada, criava justificativas para evitar qualquer contato físico com o marido. Não se importava que ele procurasse outras mulheres, sabia que isto acontecia mas queria, sim, que a deixasse em paz. O trabalho de turno dele facilitava as coisas, mas o homem, de origem humilde e modos grosseiros, geralmente molhado de suor e com as axilas cabeludas que exalavam cheiro compatível ao trabalho de estivador, queria, ao menos, "mexer" no sexo da esposa. No início, Narcisa sentia ânsia de vômito. Depois, em sua cama redonda, passou a simular masturbações para que ele ejaculasse nela e dormisse rapidamente.

Mariano, por sua vez, mantinha uma postura de conformismo em relação ao mundo. Com família de origem rica que perdera tudo antes dele nascer, achava que a situação nunca mais poderia ficar pior. Mesmo sempre vestido com roupas doadas por primos e amigos da família, todas com número maior do que usaria normalmente e que o deixava com um ar ainda mais enfadonho, ainda destoava dos moradores daquele bairro pobre. Tinha classe e passava horas dedicado aos estudos de astronomia e quadros.

Não sabiam, mas tanto Mariano quanto Narcisa precisavam um do outro. Ele, para exibir o corpo. Ela, para observar a intimidade dele. Ambos para suprir a carência que incendiava seus corações. Como explicar a paixão e a verdade com que ele revelava seu corpo, embora não tivesse coragem de dirigir a palavra a ela em outro ambiente? A fantasia realizada aos poucos, o jogo de sedução que os envolvia. O lirismo dos pensamentos de Narcisa em relação a ele, considerado o fruto proibido para seus atos, o seu desejo mais secreto, a loucura e a razão contraditória de seus sentimentos.

Outro domingo. O pêssego é escolhido e, antes de dar a primeira mordida, Mariano lança a Narcisa um olhar fulminante. Percebeu que havia algo errado, era a primeira vez que o vizinho olhava diretamente para ela, já que nunca seus olhares se cruzaram durante o ritual. Soube, à partir dali, que estava sendo usada em um pacto de silêncio entre os dois, justamente para alimentar o egocentrismo dele, que devora o pêssego, agressivo, e depois cospe a semente. Seu olhar diz que a odeia, sai do banheiro para se vestir.

Mariano era o único que poderia colocar um ponto final naquela situação. Admitia também ter se tornado dependente das manhãs de domingo, mas não poderia ficar prisioneiro de uma história em comum com uma desconhecida. Alimentar isto, naquele momento, seria prejudicial. Aos 13, não precisaria permanecer estagnado na mesma fantasia de sempre. Decidiu nunca mais aparecer na janela.

 

***

 

A falta de comunicação entre os dois fez com que Mariano só percebesse o trivial e escolhesse um detalhe importante: Narcisa o amava acima de tudo, não importava o mundo, importava ele. Se tivesse chance, largaria tudo, casa, família, filhos, só para viver com ele e sugar diariamente o seu hálito.

Poderia forjar a morte, mudar de identidade, aparência, viver reclusa em um apartamento sem sair para nada, suportar as piores humilhações. Não sofreria, queria ser contemplada apenas pelos olhos de Mariano. Se ele quisesse, poderia continuar com a vida normal, ela não se importaria de esperar horas, dias, meses, anos. E, quando ele chegasse, com os mantimentos, o jogaria na cama sem deixá-lo falar e o chamaria de "filho da mãe", quando questionasse os motivos dele em fazê-la esperar e tanto.

Narcisa estranhou a ausência dele no primeiro domingo, mas pensou que Mariano tivesse algum compromisso. Na segunda semana, temeu pela saúde do amado. Só percebeu que ele tinha cortado qualquer tipo de comunicação quando viu a cortina transparente substituída por uma muito mais escura. Chorou a noite inteira e justificou ao marido enxaqueca, quando ele a questionou na cama porque soluçava.

Estava cada vez mais triste e se dedicava menos à família. Não cozinhava mais, justo Narcisa que se gabava aos mais íntimos que segurava seu casamento pela boca do marido e pelos pratos exóticos e afrodisíacos que preparava. Já não tinha ânimo de limpar a casa, passava dias inteiros prostrada na cama, ou devorando tudo o que fizesse parte de sua casa. De uma hora para outra, objetos passaram a fazer parte de sua cadeia alimentar. Comia qualquer coisa, menos pêssego.

Mariano continuou a viver normalmente. Sentia falta dos pecados cometidos nas manhãs de domingo, mas não voltaria atrás de sua decisão. Queria se sentir desejado e esperava que Narcisa se humilhasse para ele. Mesmo sem conhecê-la, sabia que não aconteceria. Sentia-se desprezado, a vizinha aparentava estar indiferente e isso a fazia superior.

No sábado, em uma madrugada de lua cheia, Narcisa, já abandonada pelo marido que levara consigo a filha, não conseguia dormir. Apresentava olheiras profundas e havia engordado setecentos quilos. Acabara de degustar parte dos cabelos e o que havia sobrado das paredes. Não conseguia mais andar e se arrastava pelo chão da casa, fornicando com ele e dando risadinhas abafadas. Esse gesto a fazia se sentir viva. Arrastou-se em direção ao espelho, o único objeto que sobrara e, em um ímpeto de coragem, olhou-se pela primeira vez depois de constatar que Mariano não a queria mais.

Sua imagem, refletida em cores frias, mostrava que estava desfigurada. Apenas os olhos continuavam iguais, embora traduzissem mais tristeza do que antes. Transtornada, resolve destruir o espelho com os próprios dedos. O sangue se espalha entre suas mãos e percorre pelo resto do corpo, a pele adiposa é colorida de vermelho. Seus olhos marejados observam os cacos de vidro e o sangue espalhados pelo chão. Ainda resta a alternativa de devorar o que lhe resta da imagem, engolindo os pedaços do espelho.

Aos poucos, com a garganta cortada pelo vidro que desce rasgando os órgãos internos, descobre o sabor dolorido de um amor trágico. Não estava com fome, mas comeria tudo. Só assim seria capaz de se sentir feliz mas, em vez de alívio, começou a esvaziar, aos poucos. Perdeu o controle da situação e não teve forças nem para pedir socorro. A gula derrama. O sangue lava a casa da mulher obesa.

Na manhã seguinte, Mariano desiste da ideia tola de interromper o ritual. Espera os pais saírem para missa. Forja outro incidente que rasga a cortina nova. Assim como fez antes, precisa convencer os pais a compararem outra cortina, desta vez transparente, e espera ansiosamente pelas nove horas e vinte sete minutos. Os três pêssegos e a faca já estão em seu poder. Caminha lentamente para o chuveiro, mas a mulher não aparece. Desiludido, resolve ir embora do mundo. Suas lágrimas se confundem com o orgulho ferido: está apaixonado pela vizinha.

 

 

 

Marítimo

 

 

Sexta-feira da paixão. Acordo estranho, com gestos de quem acabou de voltar de um pesadelo e não se lembra mais. Penso coisas improváveis, como "todos carecem ocultar os enigmas menos cítricos", mas não dou atenção porque acabei de levantar.

Preciso comprar peixe. Escolho uma blusa vermelha nova para vestir, sem tirar a etiqueta. Não me importo com o que os outros irão pensar. O incômodo que a etiqueta colada nas costas traz não é nada comparado ao flagelo de Cristo. De alguma forma, gosto de me punir pelo que os outros fizeram com ele. Entro em minha calça jeans escura e apertada. Nada de sapato nos pés, é preciso tirar os sapatos da mente para me tornar um ser humano mais amplo.

Vou a feira, com passos ainda dados com sonolência. Meu andar está impregnado do chão e sua atmosfera simplista. Ando descalço, por caminhos ocultos. Preguiçoso em prestar atenção nos caminhos, sou guiado pelos Paralelepípedos até a banca. Na banca de jornal, páginas ilustram tragédias locais para embrulhar a refeição do dia seguinte. Peço para pagar pelos peixes antes de serem pesados, não importa que custem mais caro. As pessoas sempre aceitam excentricidades se levarem vantagem. Uma senhora está em minha frente, sorri. Sua boca tem um quê de artificial, é minha inimiga íntima, mas escancara dentes e lábios porque é sexta-feira da paixão. Precisa ser aceita.

Fico em dúvida se respondo ao sorriso hipócrita. Olho para o peixe em destaque na banca de pescados. Um deles é dilacerado em pedaços diante de meus olhos. Não manifesto nenhum sentimento. Testemunho a morte e não faço nada. Apenas represento o papel que me cabe naquele momento e vejo até que ponto a normalidade pode me atingir.

O vendedor começa a fatiar outro peixe. Em segundos, o animal é transformado em vários pedaços ensanguentados. Meus olhos acompanham com estranha volúpia. Que ser humano sou eu, que presencio a morte com requintes de crueldade e não me choco, nem me atrevo a impedir? Ultimamente, sequer obedeço a meus instintos: apenas me calo diante das circunstâncias. A vida é assim.

Retribuo o sorriso e a mulher vai embora com a sacola na mão. Ela não sente pelos peixes. Canibal. O assassino me atende de maneira simpática. Penso que, por mais que seja amável e me atenda bem, suas mãos sempre estarão sujas de sangue. E não adiantará lavá-las nunca, em certos casos a água torna-se desnecessária. Quando peco, esfolio meu corpo embaixo do chuveiro e não vejo resultado. Sinto-me imundo, a água apenas alivia, nunca redime. Minha epiderme também estará sempre suja de mãos alheias, e não há nada que posso fazer a respeito disso.

Compro sete quilos de várias espécies de peixe, escolho os menores, quero muitos. Todos têm destino certo, mesmo que seja impossível reescrever a sina deles com um final menos trágico. Não aceito que o vendedor limpe os peixes de suas escamas e do sangue da banca. Quero-os do jeito que estão e sinto nojo daquelas mãos, precisas e sádicas. No dedo dele, uma aliança falsa. Teria família, filhos ou seria apenas outro hipócrita? Não importa, nada trará os peixes de volta.

Isso me faz sofrer. Vou ao ponto de ônibus em frente à banca. Espero a condução, o ônibus demora. Presencio outros crimes ali. Talvez seja um sinal para que eu livre outros peixes da tragédia consumada. Deixo a sacola de peixe a vista e corro para a banca. Compro mais peixes. Muitos. Ele sabe que não quero limpeza nos peixes, não entendo porque pergunta novamente. Peço para que coloque tudo na mesma sacola. Vou buscar a que ficou no ponto de ônibus e, depois de cheia, volto para lá.

Finalmente, o ônibus chega e levo vários quilos de morbidez nos braços. Dentro dele, fica impregnado o odor de peixe. Todos me olham. Nunca me importo. A senhora que está ao meu lado tapa as narinas. Vou para a praia, devolver os peixes mortos ao mar. O ritual de toda sexta-feira da paixão está quase finalizado. A promessa está cumprida e meus versos são inconstantes, mas firmes. Hoje, é necessário jejuar para me sentir menos pecador. Sei que não há nada preciso em meus atos, mas insisto neles. Em frente ao mar, devolvo os peixes, um a um. Jogo, com toda força. E não me preocupo com os que não entendem. Nesse dia, eles são apenas coadjuvantes, expectadores de minha vida. Sou um ser marítimo, desde sempre.

 

 

 

O dia 9151

 

O despertador tocava sempre no mesmo horário da manhã. "Evidente que a palavra 'eu'  não passa de um pseudônimo usado pelos medíocres", foi o primeiro pensamento do dia de Homônimo, antes saber que se confrontaria com seu lado negativo mais tarde. Gostaria de passar mais tempo na cama, mas se permanecesse ali as coisas sairiam de seu planejamento.

Ao escovar os dentes, questionava-se em aceitar ou não seu nome, já que seria o mesmo independentemente de ser chamado de qualquer coisa. Talvez esse fosse o maior enigma de sua vida e toda sabedoria que acumulara ao longo dos anos, em que testou ser chamado de qualquer coisa classificada como animal, vegetal ou mineral e não sentiu diferença. 

Creditava nomes como rótulos que passam a vida inteira no cotidiano de todos. As pessoas se acostumavam, simplesmente. Alguns ainda acumulavam mais de um em sua trajetória, quando atendiam por apelidos. Normalmente, esses eram os ridículos das biografias. Nomes seriam enterrados com as pessoas e juntamente esquecidos, mas jamais chegariam a atingir as particularidades de um indivíduo, por mais insignificante que ele fosse. "Se querem mesmo chamar pessoas de algo, que cada nome fosse exclusivo, como uma patente", pensou, ao se arrumar para o trabalho em seu 9151º dia de nascimento.

"Pessoas não ultrapassam gerações, morrem", pensava enquanto se vestia. Era o mesmo dia de sempre, disfarçado de outra data. "Os atos, nem os irrefletidos, mudam alguma coisa. Por isso não quero filhos", disse, ao checar a aparência no espelho. Lavar as mãos era algo inerente dele, assim como não se apaixonar, nem fazer amizades.

Se pudesse, Homônimo não dividiria sua presença com ninguém. Só se mantinha no emprego pela necessidade de se sustentar, já que começou a trabalhar cedo justamente para sair de casa e sumir do mapa. A própria sombra era sua arqui-inimiga, se pudesse contar quantas vezes havia tentado se separar dela, iria se perder nas contas.. Por isso, preferia as noites, quando tinha a nítida sensação de estar sem ninguém ao lado. Por incrível que pareça, gostava da vida e de sua rotina. Desde que estivesse só. 

Adorava odiar seus colegas de trabalho com todas as forças. Uma de suas diversões era ridicularizar em pensamento a postura, a vestimenta e a maneira de andar dos companheiros de trólebus, no entanto, algo sair diferente do previsto era desesperador para ele. Se o número exato de passageiros de todos os dias não subisse no trólebus, se desse um passo a mais ou a menos no caminho para o trabalho ou de volta para casa, se algum colega de trabalho faltasse ou se os seus horários não coincidissem com a mesma pontualidade, estava perdido.

Até que um dia, no caminho para o trabalho, sentiu que era perseguido e olhou o relógio. Estava atrasado um segundo e correu desesperadamente. Atrás dele, um homem de capa preta e olhos vermelhos empenha uma faca e tenta furá-lo. "São os mancebos de meu avô?", pergunta ao homem, que continua a tentar golpeá-lo. "Diga a eles que nunca mais voltei lá porque não gosto de outras presenças", explica, enquanto se desvencilha da faca. Subitamente, o homem pára e pede que ele diga a senha para que vá embora. "Um, dois, três mudar", responde. O homem assente, pede desculpas e some de cabeça baixa.

Precisava correr para não chegar atrasado ao trabalho, mas estava sem fôlego e parou para descansar, embaixo de um salgueiro chorão próximo a um riacho de sangue escondido por um matagal. Até escutar um choro de criança e seguir a voz. Começa a observar, escondido: um menino, com as feições idênticas às que ele teve na infância, mergulha naquele sangue como se quisesse se limpar de algo. Talvez da morte.

Quando percebe que Homônimo o vê, quase em estado de choque, sussurra palavras selvagens e tenta correr, mas Homônimo o segura, quer saber a verdade. "Você é o mesmo menino que conviveu comigo na infância? O que aconteceu depois de agosto?", perguntou, acreditando ser ele o gêmeo que morreu de forma trágica e prematura, ou se quem teria morrido de verdade foi ele. "Por que essa morte ainda está tão presente em minha vida, por que, ou por quem, não fui com você?", questionou, ao apertar a criança, que grita, também assustada, e foge, ao se dissolver feito pó.

Homônimo quer ir embora dali, chegar ao trabalho, tomar tranquilizante, qualquer coisa que o faça se distrair para continuar vivendo como se nada tivesse acontecido antes. "Dormir é a melhor forma da fuga para os covardes, estou com sono", repetia, para não pensar em outra coisa. Andava em círculos, desesperado, sem querer encontrar ninguém que o ajudasse. Queria apenas voltar para odiar as pessoas, não era pedir muito.

Debaixo de uma macieira, uma moça, muito parecida com Homônimo, descansa de cabeça para baixo. Ela tem a mesma face dele, mastiga uma maçã e pede para que não revele a ninguém seu esconderijo, muito menos às suas irmãs gêmeas, que a expulsaram da aldeia. A jovem questiona se Homônimo também seria univitelino dela, mas ele responde que não sabe, e pergunta qual o caminho para a saída.

Ela o leva e, quando chega ao lugar indicado, desaparece. Homônimo percebe que ela mentiu, aquela não é a saída. Vê adiante uma cachoeira e um campo verde. Pessoas exatamente iguais a ele caminham com tecidos leves, de todas as cores, enroladas no corpo. Eram diferentes pela faixa etária e cortes, cores e tipos de cabelo. "Iguais que convivem sem se importar com a individualidade", pensou, enojado.

As mulheres reparam a presença do novato e pedem aos homens que não permitam que ele fuja. Crianças brincam livremente por ali, inclusive o menino encontrado no riacho de sangue. Os homens se aproximam de Homônimo e calmamente dizem que ele não poderá ir embora até conhecer o lado mau que está à sua espera. Então, Homônimo reclama que está atrasado para o trabalho e que acumular serviço acarretaria chegar em casa mais tarde, tirar os sapatos, vestir o chinelo, trazer o sapato para dentro, deixar a pasta no chão da área de serviço, lavar as mãos, fechar a porta e o trinco, sacudir as roupas da rua na janela, tirar as meias, lavá-las e deixá-las na pia, lavar as mãos, pegar a toalha, tomar banho, lavar a cueca no chuveiro, enxugar-se, vestir a roupa de casa, estender a cueca, a meia e colocar a toalha no varal,  jantar, lavar a louça e dormir.

Irredutíveis, os homens não dão outra opção a Homônimo, que vai até o lado negativo com muita má vontade. Idêntico a ele, o homem está de costas e, quando se vira, impaciente, Homônimo boceja. O homem que insiste em ser mau não amedronta Homônimo, que só pensa em ir embora dali para adiantar o trabalho. O lado negativo mostra a Homônimo pessoas conhecidas dele, aprisionadas em um espelho redondo.

Indiferente, Homônimo diz ao lado negativo que pode deixar todo mundo ali, se quiser, e se o atraiu até ali com o intuito de fazer chantagem com aquelas pessoas, faria um favor se as aprisionasse no espelho. E que, de qualquer forma, precisa ir embora antes de anoitecer, pois ainda pretende estudar a sanidade dos anjos. Então, o lado negativo desiste e avisa que uma nave o espera fora dali. Homônimo responde que é mais que a obrigação dele, e que foi um desprazer conhecê-lo.

Quando chega ao trabalho, Homônimo está extremamente irritado e como sempre não cumprimenta ninguém. Decide não almoçar para adiantar o serviço, que está atrasado. Em casa, pragueja os imprevistos e reclama. Antes de dormir, diante do espelho, sorri para si mesmo e diz boa noite ao irmão gêmeo, como faz todas as noites. "Veja bem, sou inofensivo. Não gosto das pessoas, só de você", explica, ao terminar de contar como foi o seu dia.

 

 

 
 
dezembro, 2010
 
 
 
 

 

Helder Miranda (Santos/SP). Jornalista formado pela Universidade Católica de Santos (UniSantos) e pós-graduando em Mídia, Informação e Cultura, na Universidade de São Paulo (Usp). Teve passagens pela Globo Livros, onde foi redator free-lancer de press-releases, e no portal IG, como resenhista de literatura .Também é escritor e roteirista. Editor do site cultural Resenhando [www.resenhando.com]. Twitter: @heldermm
 
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