Iniciação de uma Fada | Guido Boletti | Acrílica Sobre tela | 200x50 cm | BH

 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

Teu peito é palco dos meus ritmos,

e em uníssono danço teu som

[Coração que galopa em ti!]

Que te seja meu ventre convidativo

 e te ordene a cumpri-lo em ritual.

Tu que me fazes ser bailarina:

umas vezes menina, outras vezes tribal.

[Katyuscia Carvalho]

 

 

 

Índia nua

a desvendar a grande teia

 

[mariposa voou rasante]

 

Um gorgulho verde numa haste de papiro

e duas minguantes

na profundeza dos olhos

habitam

 

Desce o silêncio aracnídeo

pra que mais íntimo se perceba o cetim

, o ondular de uma gata

e seus morros

 

[viva ardência entre folhas]

 

De mais fundo vêm as águas

         de mais fundo

e tudo o que daria iluminura

 

Cheguei de uma terra

sem mestres

pra louvar uma tora no fogo

e as estrelas desejadas pelas gavinhas

da ramagem

 

[soubesse ao menos

algum tipo de esperanto]

 

Ó dançarina de fogo e de névoa

lenço de só palpitação

 

 

Razão

 

 

Esse poema nasceu das sensações de uma visita ao blogue de minha amiga Katyuscia Carvalho, o "Kanauã Kaluanã", vocábulos que no Tupi significam "aquela que dança, grande guerreira", respectivamente. O espaço é um oásis de bom gosto, sensualidade, intimismo e arrebatamento nas letras e nas imagens. A idéia intuída da índia ao mesmo tempo dançaria e guerreira, somada ao poder da imagem de uma bela mulher deitada sobre um manto vermelho na serapilheira da floresta solicitaram uma contemplação, e comecei a escrever.

A ambientação haveria de ser noturna, de modo que coloquei uma mariposa e seu vôo (de feiticeira), a imagem de um besouro numa haste de papiro — a planta que por milênios registrou a história — o que remetia à proximidade da água. Coloquei também as minguantes das pálpebras da índia no fundo de seus próprios olhos, na esperança de que sugerisse alguma intimidade respeitosa, como contidos normalmente são os primeiros movimentos de atração.

Trouxe à cena um aliado — o silêncio — mas com uma qualificação zoológica para, ainda, reforçar o estado de mudez contemplativa, porém, com algo de incógnita ou temor (a figura da aranha). Do desejo ainda mais avultado pelo silêncio, haveriam de brotar a sensação do toque numa pele ainda idealizada e o movimento do corpo da gata com sua topografia sensual, levando à sensação de ardência.

"De mais fundo vêm as águas/ de mais fundo"... Com água quis representar aquilo que existe de mais primordial: a busca da fusão espírito-carnal, o que poderia fazer de todos nós, xamãs. Fusão que haveria de resultar numa nova realidade iluminada. 

A sensação de arrebatamento prosseguia, porém, com a persistência de algum temor resultante do confronto de duas realidades tão distintas — a índia bonita dormindo tranquilamente em seu ambiente silvícola e o Homo urbanus com seus hormônios jorrando em solo estranho). Como ato falho, é comum sairmos com justificativas assim que uma temeridade se apresenta; desse modo tentei explicar a mim mesmo: "cheguei de uma terra/ sem mestres/ pra louvar uma tora no fogo". Terrível isso. É como a criança que começa a lembrar os pais de quantos dias precisou faltar da escola naquele mês devido à dores de garganta, antes mesmo de tirar da bolsa seu boletim com notas baixas... Afirmar que chegou de "uma terra sem mestres" representa insegurança, ou seja, é um atestado de incompetência do sonhador diante da louvada/ desejada/ perfeita "tora no fogo". Mas essa insegurança fazia sentido: todas as gavinhas da ramagem também se esticavam de desejo pelas pequenas fagulhas/ estrelas que desprendiam da tora em chamas. Essas gavinhas poderiam estar armadas de arco & flecha, bordunas, zarabatanas... O corolário dessa insegurança foi a lamúria por um canal mais direto de comunicação que levasse ao êxtase: "soubesse ao menos/ algum tipo de esperanto"...

Como nem tudo na vida é muito simples, restou mesmo é desconversar: "Ó dançarina de fogo e de névoa/ lenço de só palpitação"... Ir além disso seria prolixidade...

 

 

junho, 2011
 
 
 
Assis de Mello é zoólogo, docente na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita filho, Campus de Botucatu. Apesar de cientista, passa 50% de seu tempo duelando com Descartes e tudo aquilo que é excessivamente racional, pois está convicto de que certa irracionalidade deve trazer felicidade. Publicou o livro de poemas Na borda da ilha (São Paulo: Lumme Editor, 2010), que pode ser encontrado aqui. Mantém o blogue Coisas do Chico [http://coisasdochico.blogspot.com]
 
Mais Assis de Mello em Germina