diverso

 

 

nasce vário e lírico

o poema que faço sem farsa futura

poemas sífilis de difícil traço

em catarse minha iluminura

poema vil pois solitário

pus exato flor-de-lis impura

 

nasce útil e farto

o veneno que caço em noite escura

poema vício dando voz à vida

minha dor açoite e cura

poema foz fel fogo

desde o início até sua embocadura.

 

 

 

 

 

 

vampiro

 

 

nós feras

tu fera

a lua na sarjeta é tua ferida

nua

tua ferida é nua

era       

um dente na noite feroz

               na veia    eros

um simples desejo sobre o pescoço

o sangue em humana vadiação.

 

 

 

 

 

 

menstruação

 

 

uma garrafa de vinho tinto entre as pernas

e um desprazer mensal de sujar calcinhas

 

olho d'água fora de lugar

 

a faca não se vê.

 

 

 

 

 

 

natureza viva

 

 

a fruta cai do galho

não tem prato embaixo

não tem mesa

não tem chão

 

invento a fruta amassa

em

pleno

voo

 

 

 

 

 

 

natureza morta

 

 

o passarinho sem pernas

olha de dentro da gaiola

pendurada no teto

dentro do quarto da casa sem quintal

a tarde que brilha lá fora

 

o passarinho sem asas

olha o que o olho permite

o vôo inútil que a tarde inventa

a luz morna e provisória

que vai ser escuro daqui a pouco

 

o passarinho sem passarinho

a tarde abso

luta

sem pernas

sem asas

sem nada.

 

 

 

 

 

 

quarenta motivos pra morrer de amor

 

 

que me descarne

que me desespere

que me desestruture

que me desvele

que me desleve

que me despele

que me despetale

que me desrevele

que me desprepare

que desmonte

que me desconstrua

que me destrua

que me descresça

que me desmunde

que me desolhe

que me desbrinde

que me desbrilhe

que me deslinde

que me desrose

que me desrubre

que me desblue

que me desmanche

que me desvoe

que me desastre

que me desate

que me desarte

que me desgrave

que me deserte

que me desverse

que me descaminhe

que me descontinue

que me desfile

que me desplante

que me deslance

que me desligue

que me desalinhe

que me desenlace

que me despedace

que me desapareça

que me despeça.

 

 

 

 

 

 

música

 

 

belas as baladas de cat stevens

que me abalam

as balas de giulliano gemma

que não me calam.

 

 

 

 

 

 

breves impressões tiradas de um jornal

448 dias antes da morte de joão cabral

 

 

o tempo passa penso

joão pensa mas não vê

não mira miró

não se ilumina

não arquiteta palavra no papel

não sabe ditar nem geometria

 

joão cabral de melo neto

não ama

não dança

não Sevilha

não descansa

não joga futebol pelo américa de pernambuco

 

joão cabral de melo

não mata

não toma aspirina

não severina a dor por trás da retina

não constrói

não rói a parede de apipucos

 

joão cabral

não amadurece

mas escuta em silêncio o silêncio

- a música da morte –

e cultivando seu deserto como um pomar às avessas

joão apodrece.

 

 

 

 

 

 

haroldiana

 

 

de fato a fada faz parte de uma história mal contada

de um conto do vigário fadado a ter seu fim otário

 

de fato uma fada é uma falácia

uma flor a mais do lácio despetalada

um sino no exílio um idílio

por quem os signos dobram em delírio

 

de fato tudo é tudo

quase nada

noves fora fada.

 

 

 

 

 

 

aviso prévio

 

 

não te farei mais poemas de amor

todos os recursos foram gastos

poemas y poemas

lábios inúteis no papel

 

com nenhum deles

compraste uma bisnaga na lusitana

pagaste a conta de luz

o antibiótico para minha faringite

 

está definido

já não marco encontro com as coisas imprecisas

 

do meu coração te demito.

 

 

 

 

 

 

o paraíso

por causa de nelson rodrigues

 

 

rameiras raparigas marafonas meretrizes quengas mundanas zabaneiras bagaxas rascoeiras bandarras baratas vagabundas devassas cortesãs mariposas calhandreiras vadias sirigaitas tipóias de má vida corriqueiras hetairas extraviadas cabriolas micheteiras croias genis ambulatrizes maganas fuleiras barangas loureiras piranhas putas perras messalinas barregãs perdidas putanas polacas mulheres da vida mulheres da rua mulheres à toa mulheres-damas mulheres da zona prostitutas: nunca vi nenhuma delas triste.

 

 

 

 

 

 

autorretrato

 

 

duas arritmias graves

dores cíclicas nas costas

amígdalas arrancadas aos 6 anos

dores de cabeça de estimação desde os 20

gastrite aos 22

hepatite aos 24

fístula entrepernas extraída aos 33

retirada de vesícula aos 40

insuficiência mitral aos 44

vasectomia aos 45

artrose no dedo mindinho aos 47

plástica de válvula mitral aos 48

 

poesia desde os 17.

 

 

 

 

[imagens ©brassaï]

 
 
 
 
 
 
 
Celso Borges (São Luís/MA, 1959). Poeta, jornalista e letrista, é parceiro dos compositores Chico César, Zeca Baleiro, Nosly, Gerson da Conceição e Criolina, entre outros. Tem oito livros de poesia publicados, entre eles Pelo avesso (1985); Persona non grata (1990); Nenhuma das respostas anteriores (1996), XXI (2000), Música e Belle Époque, os três últimos no formato de livro-CD, com a participação de mais de 50 poetas e compositores de várias cidades brasileiras. No palco, desenvolveu com o DJ paulistano Otávio Rodrigues o projeto Poesia Dub, que se apresentou em São Paulo no Tim Festival e no Baile do Baleiro, ambos em 2004, e no projeto poético musical Outros Bárbaros, do Itaú Cultural (2005 e 2007). Em São Luís, criou outros três projetos: A Posição da Poesia é Oposição, com o guitarrista Christian Portela e o percussionista Luís Claudio; A Palavra Voando, com Beto Ehongue, e mais recentemente Sarau Cerol, também com Ehongue. Celso Borges é um dos editores da revista Pitomba.
 
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