©zhang huan
 
 
 
 
 
 
 
 
 

belle époque

 

 

escadas tropeçam

calças voam

móveis acendem

baratas pedem socorro

as horas avançam sobre dias e noites

 

cadeiras sobem pelas paredes

tronos desfilam no telhado

trombas de elefantes varrem amendoins do fundo do poço

uma terceira perna se cala

pinga uma gota de sede no papel

 

as horas as horas as horas.

 

 

 

 

 

 

cinema

 

 

é curioso que me sinta assim:

fellini felino

tudo isso por causa dela

nem sei quem é ainda

mas quem exige documento de fadas?

simplesmente a vi:

pasolini pasolinda

 

 

 

 

 

 

mefisto

 

 

nem eterno nem moderno

desejo por desejo

prefiro o inferno

 

 

 

 

 

 

matadouro

 

 

a baba do boi é do boi

o berro do boi é do boi

a dor do boi é do boi

a morte do boi é do boi

 

mas o boi não é do boi

o carro de boi não é do boi

a bosta de boi não é do boi

a língua de boi não é do boi

a costela de boi não é do boi

o chifre de boi não é do boi

o couro de boi não é do boi

a carne de boi não é do boi

 

não é do boi o bumba-meu-boi

 

quase nada do boi é do boi

quase tudo do boi é do homem

e o que é do homem o bicho não come.

 

 

 

 

 

 

discriminação

 

 

niggers um após o outro vários

spics além de

jews cada vez mais

mobsters podiam ser menos

waps entre tantos

white trashes em excesso inúmeros ou quase

baianos a perder de vista inclusive

cucarachas centenas deles ainda assim

japas aos montes já demais

turcos

paraíbas

e assim por diante.

 

 

 

 

 

 

sádico

 

 

adoro a dor do outro

a falta de cor de couro

a mancha de sangue no ouro

na pele do corpo do outro

 

adoro a ferida do outro

a dura fenda que aflora

na parte de dentro na parte de fora

a dor do outro que me adora

que se rasteja que me implora

 

 

 

 

 

 

frankenstein pelo avesso

 

 

silicone nos cotovelos

lipoaspiração no calcanhar esquerdo

plástica reparadora na virilha

botox na falange do dedo mindinho

lifting no couro cabeludo

enxerto nos grandes lábios

cílios postiços no púbis

implante de pentelhos nas sobrancelhas

transplante capilar na bunda

revitalização de pele na orelha

rejuvenecimento das canelas

peeling nas entranhas

 

cada coisa em seu devido lugar

cada coisa fora dele.

 

 

 

 

 

 

discurso de posse

 

 

enquanto um deles lê o discurso no papelpapiro

e os demais ouvem de orelha em pé

uma traça rosnarói a medalha pendurada

no lado esquerdo do fardão

 

mais atrás

entre um cochilo e outro

outros pensam:

quem será o próximo?

 

urubus chovem lá fora.

 

 

 

 

 

 

anti-cage

 

 

a poesia é, de fato, o fruto

de um grito meu, teu, de todos nós

voz que acende um barulho

dentro da noite veloz

por isso tenho que gritar,

leitores surdos, ouvintes mudos

com versos, línguas, punhais, absurdos

 

porque a poesia é, na verdade, um mito

palavra que salta do papel e ousa

ave que pousa no risco do atrito

 

porque a poesia é uma bomba

susto que o homem ouve quase

como um avião cai

no corpo de um kamicase

 

e o silêncio é nada

argila seca, poeira desidratada

 

por isso o poeta tem que gritar

gritar em suma

porque o silêncio, porra,

é porra nenhuma.

 

 

 

 

 

 

mea culpa

 

 

falo blasfemo grito

como se tudo

já tivesse sido dito

em vão

 

palavras loucas

ouvidos moucos

 

eu sei

do céu ao chão

do sol ao léu

 

o réu sou eu.

 

 

 

 

 

 

persona non grata

 

 

eu disse quase tudo

eu quase não disse nada

é disso que sou feito

nem leite nem nata

persona non grata

 

esse o meu futuro

o ouro de que me acumulo

o verbo o pulo

o salto por cima do muro.

 

 

 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Celso Borges (São Luís/MA, 1959). Poeta, jornalista e letrista, é parceiro dos compositores Chico César, Zeca Baleiro, Nosly, Gerson da Conceição e Criolina, entre outros. Tem oito livros de poesia publicados, entre eles Pelo avesso (1985); Persona non grata (1990); Nenhuma das respostas anteriores (1996), XXI (2000), Música e Belle Époque, os três últimos no formato de livro-CD, com a participação de mais de 50 poetas e compositores de várias cidades brasileiras. No palco, desenvolveu com o DJ paulistano Otávio Rodrigues o projeto Poesia Dub, que se apresentou em São Paulo no Tim Festival e no Baile do Baleiro, ambos em 2004, e no projeto poético musical Outros Bárbaros, do Itaú Cultural (2005 e 2007). Em São Luís, criou outros três projetos: A Posição da Poesia é Oposição, com o guitarrista Christian Portela e o percussionista Luís Claudio; A Palavra Voando, com Beto Ehongue, e mais recentemente Sarau Cerol, também com Ehongue. Celso Borges é um dos editores da revista Pitomba.
 
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