PARÁBOLA

 

 

Não eram mais que cinco ou seis

Garotas de uma igreja evangélica

Vendendo copinhos de água mineral

No sinal de trânsito

Transpirando mais de juventude &

Orgulho por sua modesta aventura

Fora do útero materno dos condomínios

Do que pelo calor do meio-dia que derretia o asfalto

E subia entre suas pernas

E que bem podia servir como advertência

Sobre o fogo eterno que as esperava

Caso andassem fora da linha

Mas não foi esse o recado

Pelo menos para a adolescente loira

A mais bonita do grupo

Que decidiu

Com um sorriso que apagou

Seu próprio medo ardente

Dar de graça o copinho de plástico reluzente

Ao homem suado que argumentava sorrindo

Que, por ser um magnata,

Nunca tinha trocados

E que continuou sorrindo

No caminho de casa

Tendo de fato matado sua sede

Mas também a raiva, o cansaço

O tédio e o medo.

 

 

 

 

 

 

O ESTADO DAS COISAS

 

 

o que se pode esperar de um poema:

que fique de pé e ande sem muletas

mesmo sendo coxo como byron

 

que não faça ver o pior cego

mesmo sendo um glauco mattoso

 

que não tenha pena de seus leitores

como dylan thomas

mas também não seja sádico com eles

como ninguém que eu lembre no momento

 

que aceite seu lugar no aqui agora

se houver um para ele

e que o tempo faça o resto

se der tempo

 

o que não se pode esperar de um poema:

levitação coletiva na praça Tahir

lamentações no Muro das Lamentações

napalm em embalagem de sorvete

 

finalizações relâmpago para

comentaristas de UFC

 

(isso até se pode esperar

— considerando o estado geral das coisas)

mas não se deve

ou deveria.

 

 

 

 

 

 

SURSIS

 

 

Aos que condenam

os poemas que escrevo

por conterem veneno de menos

Aos que não encontram neles

vísceras o bastante

para afogar as mágoas

Aos que esperançosos

vasculham cada verso

em busca de armas químicas

e saem decepcionados

Aos que em silêncio

sacodem a cabeça

como o médico de campanha

que fez tudo que era possível,

O benefício da dúvida

contra o edifício das certezas

acompanhado por mensagens

de condolências aos que chegaram

no final da festa.

Tanto quanto qualquer outro

meu coração é uma aldeia devastada

e dos escombros, isso eu sei bem,

 

dá pra construir algum tipo de bomba

um navio naufragado

uma armadura de super-herói

um parque de diversões demente

um instrumento para alguém tocar.

A escolha é sempre solitária

 

 

 

 

 

 

TOQUE TO MYSELF

 

 

Você tem certeza

que achou mesmo a cara

da posteridade mais feia

que a prudência de blake

Ou não será tudo digressão em torno

do fato incontornável de que

Mais e melhores poetas virão

Embora nem sempre apareça

Um

É melhor encarar os fatos

retirar com cuidado

o esporão daquilo do seu calcanhar

parar de alimentar esse bicho

escondido sob o tapete vermelho

por onde todo dia

desfilam famélicas

as irmãs top models da congregação

do selvagem coração dos poetas

 

 

 

 

 

 

BURROUGHS NA AMAZÕNIA

 

 

Replicando o pajé que soprou

A fumaça sagrada do tabaco

Sobre o vinho bárbaro

Que enfim se revelava

A seus lábios de navalha

William S. Burroughs soltou a névoa

Do mata-ratos que usava desde que

Trocara o deserto mexicano

Pelas vielas da Amazônia

Sobre a cuia que o poema imagina de barro

Ou velha caneca enrugada

Ao fim de sua procura pelo "barato definitivo"

Que deveria curá-lo da "doença" da heroína.

O gesto ritual reencenado

Pode ter sido apenas um espasmo

De ironia senhorial

Na mente do junkie egresso de Harvard

Assim como

A silenciosa expressão

Do mais puro júbilo

Inteiramente impossível

Em outras circunstâncias.

 

 

 

 

 

 

CLÁSSICO

 

 

Foi assim que me sentei de noite

na pequena sala do apartamento

para assistir Brasil x China

enquanto lia Amuleto

meu primeiro livro de Roberto Bolãno

Me vi então dois dias antes

sentado sozinho no mesmo sofá,

só que de tarde,

assistindo ao começo de Brasil x África do Sul

lembrei  das lágrimas que me encheram os olhos

como quase sempre bestamente

na hora do hino nacional brasileiro

só que daquela vez não foi

só pela lindeza da música

mas porque havia uma orquestra tocando

e o regente era joão carlos martins

dando tudo como se fosse não um amistoso

de sete de setembro

mas o final da Copa do Fim do Mundo.

 

 

 

 

 

 

COCAR

 

 

de manhã

na praia

sozinho depois do café

juntei penas de guará

que as ondas depositavam

a meus pés

como uma oferenda ao avesso

então entrei no carro

e peguei a estrada de volta

 

 

Tutóia, ago/12

 

 

 

 

 

 

VINHAIS

 

 

toda vez que o sinal fecha

ou o trânsito emperra

encaro fixo

esse resto acuado de mata

como se um tupinambá

fosse surgir dali

a qualquer momento

 

 

 

 

 

 

MAYA NA WEBCAM

 

 

lembrando WCW

 

 

pouca gente entendeu

quando a lolita do condomínio

esperou ficar sozinha em casa

para se masturbar

em frente ao notebook

na cama da mãe socialite

enviando depois a gravação

para os diretores da escola

respeitáveis homens e mulheres

que a comiam com os olhos

de segunda a sábado

mas que não seguraram a onda

e a traíram por pura covardia

quando o escândalo

veio a público

a família mudou de cidade

terapeutas & pastores entraram em campo

falando o que bem entendem

de herr freud e das escrituras

decididos a eliminar a doença

da mente e do espírito da garota

mas ela já estava em outra

meditando na freqüência de seu corpo

lendo reich marcuse jung

enquanto fingia aceitar a pajelança

sem ligar a mínima para aquela parte

de seu tenro passado

que ficou no ar

assombrando os sonhos de muitos

que nunca vão saber

quem de fato

era aquela garota

nem antes, nem depois

do que houve

 

(eu sou um que sabe...)

 

 

 

 

 

 

O DEUS QUE CINGE MINHA FRONTE

 

 

O deus que cinge minha fronte

Enquanto escrevo meu poema

Não aceita menos que alegria

Como oferenda em seu altar.

Só isso apraz à severa divindade

Indiferente ao sangue dos touros

E aos aromas doces do Oriente.

Mortal que sou anseio pela graça

E estou sempre em busca desse ouro

Não para adornar minhas palavras

Que embora não rejeitem o brilho raro

Fazem sua liga de metais mais rudes.

Sou apenas mais um entre muitos

Mas se pude merecer o olhar do nume

A despeito de tão parcas virtudes

Que o riso flua à luz do lume!

Cumpro meu dever: honro seu nome.

 

 

 

 

 

 

O REI NUNCA SONHA

 

 

Tendo criado para si uma nova genealogia

O rei foi se esquecendo aos poucos de seu povo

Ate que um dia o apagou da memória por completo.

Em vão se desdobraram os conselheiros

Para alertá-lo sobre as conseqüências

Funestas de seu erro.

Em vão o velho navegante evocou

Cabeças reais espetadas em lanças

Nas ilhas selvagens de sua juventude.

Em vão a rainha e seu séquito

Gastaram os olhos na fumaça das velas

E os dedos nas contas do rosário.

 

Um dia as águas do rio expulsaram o vento

E os peixes morreram afogados.

A herdeira mais bonita extraiu os olhos

Da boneca preferida e os comeu.

E os poucos livros existentes

Amanheceram com as páginas em branco.

Pensaram em deus, pensaram no diabo

Muitos se flagelaram, muitos subiram ao céu

Na fumaça de seus corpos martirizados.

Os poucos restantes se dispersaram

Pelas estradas sem olhar para trás.

 

Fiquei eu para contar a história

Mas já não sei meu nome ou quem sou

Sei que sou velho, cego e tenho um cão

E todos os dias renovo minha súplica:

Sonha comigo, meu senhor,

e eu devolvo o esplendor do teu reino!

 

 

 

 

 

 

A LOUCURA MOSTRA AS UNHAS

 

 

Sempre que a loucura mostra unhas de gato

Para arranhar teus ossos sob a paz do beco

Deixa elétrica dor dizer na lata e a seco

Vida de gado na mesmice desse mato

 

Fingindo ser farinha de outro saco

Cão e gato se lambem à luz do gueto

Erguendo brindes comem o mesmo naco

Da tua carcaça crua em branco & preto

 

Exposto assim ninguém aguenta o tranco

Entrega os pontos antes do último ato

Um pirata perneta caolho troncho e manco

Surge do fundo para afundar teu barco

 

Dança com esse lobo até soltar o pelo

No fim tem sempre um olho atrás do palco

Uiva de escalpo em punho e fim de papo

Pouco importa saber quem paga o pato.

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©alexey titarenko] 

 

 

Fernando Abreu. Maranhense de São Luís, mas viveu na cidade de Grajaú, no interior do estado, até os 13 anos. Durante cerca de dez anos editou a revista de poemas Uns & Outros, ao lado de outros integrantes do grupo Akademia dos Párias. Tem três livros publicados, sendo o mais recente Aliado Involuntário (Exodus, 2011). Antes vieram Relatos do Escambau (Exodus, 1998) e O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003). Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro, Nosly, Chico César, Chico Nô, Junior Aziz, Neto Peperi e Gerson da Conceição.
 
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