ÓCULOS ESCUROS Eu
sei que eu sou um vampiro que
nunca vai ter paz no coração Jorge
Mautner Não
era uma vez * Sábado
eu sempre ficava de boa, morgando à noite. Meus pais na rua e eu aqui. Um
pouco de games, depois cartoon na TV, dependendo do dia rolava um filminho
e tal. Eu preferia animação, ou então de luta. Via mais quando eu queria
me empanturrar de pipoca. É, eu era viciado, comia tipo uma bacia inteira.
Mas o normal era mais ficar no pc ou jogando online, que aí eu sempre tava
com alguém. Tinha gente na escola que me chamava de nerd, geek, essas
coisas. Nem ligo. Fico off disso tudo. É assim ser
diferente. Debaixo
da coberta, com uma lanterna. Eu lia escondido. Me dava a sensação de que
aquilo era secreto. Que só eu sabia o que podia me acontecer. Mas
quadrinhos, não tinha saco pra letras demais. Eu gostava porque aquilo me
tirava daqui, acabava me levando pra um lugar seguro. Tipo vacina, sabe?
Sempre parecia que ia ficar tudo bem. Mais
tarde, quando eu lia escondido, ouvi uns troços. Não entendi muito bem.
Era meio seco, sufocado. Vinha do quarto deles. "Para! Para! Para!". Me
dava medo. "Não! Não! Não!". Me virei pra baixo, coloquei o travesseiro na
cabeça, tapando os ouvidos. Mas aquilo não me levou para longe.
Liguei
os anjos na tomada. * Acordei
procurando meu instintivo leite. De olhos fechados. Fui tateando a
cozinha, mas ninguém se encontra em braile. Tanto que nem ouvi descerem a
escada. Foi só quando abri a geladeira e os olhos que vi minha mãe de
costas. Fungando. Só me viu quando se virou. Tomou
um susto. Mais que eu. Ela ia chorar de novo, só que segurou. Tentou
disfarçar com o cabelo e veio me abraçar, apertando, protegendo. É ela que
queria isso, acho. Alguém dizendo que vai ficar tudo
bem. Quis
dizer "Estou aqui pra você". Mas não tenho idade para estar aqui pra
ninguém. Eu fazia força pra não ficar encarando o olho dela. Enorme e
roxo. Inchado não de choro, de outra coisa. Sem curativo, tipo sangue
pisado, com um pouco de pus. Disse só o que eu
podia. Linda
é o que você é pra mim. * Aquilo
meio que me arranhava. Feria devagar. Porque eu queria saber, queria
entender mesmo só achando. Minha mãe repetia "Isso é assunto meu e do seu
pai". E os dias iam. Eu não. Eu ficava. Empaquei nisso, óbvio. Não dava
pra passar batido. O
roxo não foi saindo, a pele parecia curtir o hematoma. Ela e suas tintas.
Que nenhuma maquiagem cobria. O jeito foi usar óculos escuros toda vez que
saía. Pra tudo. O mundo parecia saber, mas disfarçar, fingir que tudo bem,
era a forma de minha mãe tentar. O quê? Superar? Passar por isso? Esperar
de novo? * Meu
pai voltava e largava logo a farda no sofá. Abria uma, três, sete
latinhas. O barulho do anel rasgando o alumínio, seguido do tss, já me
fazia subir um troço pela espinha. O clima, que era light, logo azedava.
Todo o sorriso, antes estalando na minha mãe, escorria pra fora do
dia. E
não falava. Preferia assim, quieta. Na dela. Muda. Eu achava melhor descer
pro play, pra qualquer lugar que não ali. Antes de ir, eu olhava e dizia,
repetia, tipo um mantra. Linda
é o que você é pra mim. * Mari
Bizonha era uma amiga lá de baixo. Todo mundo zoava com a cara dela, só
porque era feia. E era mesmo, fazer o quê? Mas ela era legal e isso que
importa. Mesmo assim, Mari sempre reclamava, vivia chorando pelos cantos
que não queria mais ter aquela cara de porta, que queria ser linda tipo as
garotas da Disney. Eu prometi que ia tentar ajudar. Ela deitou no banco e
apoiou a cabeça em mim, fazendo minhas pernas de travesseiro. Ora, se
minha mãe é tão linda do jeito que é, talvez com a Mari funcione também.
Dei 3 socos no olho esquerdo dela e abri um sorriso. Agora, ela vai ficar
mais parecida com a minha mãe, tortinha, mais bonita! Me xingou e saiu
chorando. Tadinha, não deve ter ficado parecida... * Umas
vizinhas fofoqueiras tavam deixando minha mãe mais triste. Porque diziam
negócio de eu ter puxado genes do meu pai. Eu sei lá que troço é esse de
gene! Só sei que minha mãe dizia que não e ficava pra baixo. Que era outra
coisa, ela dizia. Só me pediu pra não tentar deixar ninguém que nem ela.
Que o mundo era assim mesmo, não tinha jeito. Fiz que
sim. Mas
não tinha entendido muito direito. Então, no colégio, a aula de matemática
tava no finzinho quando a prof perguntou se alguém tinha alguma
dúvida. ‒
Tia Silvia, as mães também gostam de brincar de
luta? Ela
não curtiu minha pergunta, acho que não era muito numerosa. Ou então
pensou que eu tava de deboche, falando de lutar contra a matemática, sei
lá. Só sei que fui pra coordenação e lá quiseram saber. Eu disse. Minha
mãe nunca gostou de UFC, dizia que era violento demais. Também reclamava
dos filmes de ação e dos meus jogos de matança. Agora, vivia de olho roxo
e triste. Mas se ela não gostava, por que aquilo continuava
assim? A
coordenadora fez uma cara de ervilha. No dia seguinte, teve uma reunião
com meus pais pra falar sobre aquilo. Continuei sem entender por quê. Só
sei que a reunião não fez bem pra minha mãe. Ela voltou mais triste e meu
pai, mais puto. Ele tava com raiva não sei de quê. Devia ter acabado a
cerveja, tanto que ele saiu logo que chegou pra comprar
outras. * Era
melhor sair do de sempre. Tanto que naquela semana minha mãe me pegou pelo
braço e decidiu que íamos fugir daquilo. Cada um com sua mala e pronto.
Foi quando eu fui entendendo mais ou menos. Aquilo era eu sendo cuidado.
Porque hoje era ela, depois podia ser eu. Pegamos
o táxi e eu não sabia pra onde. Nem importava, do lado dela era meu lugar.
Minha mãe olhava pela janela como quem dá tchau. Quando acabou a nossa
rua, ela disse baixinho e eu ouvi "Ele vai ficar comigo até eu perder a
coragem". Saltamos
na rodoviária, pegamos um ônibus e foram mais umas muitas horas. Nem sei
quantas. Devia ser até outro estado quando acabou. A casa nova era lugar
de ser feliz. Pelo menos era o que toda hora ela dizia. De cara, pensei
que devia ter algum baú escondido no porão com um troço tipo um tesouro,
que fosse a felicidade. É, era casa mesmo, com 2 andares e um quintal
grandão. A gente ia ter cachorro pra ficar de guarda à noite e umas
galinhas. Deve ser engraçado ter galinha, brincar de ser da roça. Curti
essa coisa de mudança. Minha mãe estava mais animada, vivia falando de
como o ar era mais gostoso e eu logo pensei que as árvores daqui tinham
outra qualidade de vida, os jornais sempre falavam disso. O que é bom pra
gente, até porque a gente respira o pum da árvore. Minha mãe dizia que
esse era o tipo de comentário pra eu não fazer na escola, que podia dar
problema. Tudo bem, então, mãe. Porque
linda é o que você é pra mim. * A escola nova tinha um sotaque
diferente, eles não falavam o r que nem eu. Nem o s. Eu era, agora, mais
diferente ainda. Só que não tinha tanta importância. Bizarro isso. Porque
não ficava mais isolado na sala senso zoado, gente tacando borracha em
mim. Tinha amigos, ou quase, porque 2 meses é pouco. Mas tava sendo legal,
até melhorei nas notas. Minha
mãe arrumou um trabalho novo. Parecia bom, mesmo ficando cansadona. Dá pra
pagar as contas e a gente ir vivendo é o que ela dizia. Isso era bom.
Tentava sempre agradar minha mãe, catava umas florezinhas pelo caminho ou
fazia um lanche pra quando chegasse de volta em casa. Talvez fosse demais.
Só que eu meio me achava com obrigação de fazer ela
feliz. * Foi
do nada. Uma
pancadaria na porta, esmurrando, socando e chutando. Gritava você vai ser
minha, não adianta fugir! Vou atrás de você até nunca mais, vou te deixar
pras migalhas, você não pode se esconder! E
subiu, quando a porta quebrou de um lado e acabou caindo. Meu pai tinha
tanta raiva que até os pés faziam som de ódio quando subia as escadas. Nem
me viu na sala comendo ameixa. Foi direto pro quarto dela. Acertou. Depois
só ouvi barulho de coisa batendo, como quando cai uma cadeira no chão. Mas
era direto, um atrás do outro. Toda hora. E não parava e não tinha grito
nenhum. Isso me dava mais medo. Até que parou. Ele desceu correndo e
arrancou com o carro. Não me viu de novo. Na
hora pedi "Mãe?". Fui subindo e vendo pegadas. Não sabia onde ela tava.
Mãe? Nada. Procurei pelo quarto, perto da cama, mas não. Só fui ver no
banheiro minha mãe caída ali, num canto. Mãe? Fui chegando mais perto e vi
que o cheiro mudou. Tava sujo também. Sacudi, mas ela não queria levantar.
Fiquei com medo. Era só casca. Tudo jogado pelo caminho, achei os
óculos escuros e vesti. O medo passou um pouquinho. Deitei ali do lado
dela, fiquei todo mãechado, mas não ia sair dali. Abracei, apertei.
Segurei com força o caroço na mão. Eu não ia sair
dali. * * * Só depois desse tempo todo que me trazem pra cá, pra fazer umas perguntas. Eles eram normais, aí do nada começou a brigalhada. Naquela época eu não sabia o que tava acontecendo, senão tinha chamado alguém. A culpa é minha. É, agora eu moro com a minha tia. Ela não vivia aqui na época, tava em outro país. Mas pra que isso agora, seu polícia? Agora que não dá mais tempo? Tudo bem, ele é meu pai. É, é esse. E ele que fez aquilo com a minha mãe. Mas eu podia ter ajudado de um jeito, avisado alguém, protegido minha mãe. Se foi só daquela vez? Não, não era uma vez. BONEQUINHA DE VODU distinguir a
dor Wisława
Szymborska Era
linda. Sempre foi, para falar a verdade. Desde pequena, mastigava as
atenções em todas as festas de família. Tipo bonequinha, os pais mimavam e
se mantinham empregadores das suas vontades. Mas nunca deixou o poder de
mandar nos pais subir à cabeça, mesmo ela sendo dessas que vestem rosa.
Sofia
Pétala, o nome. Não entendia essa lindeza que as pessoas diziam. A menina
sempre foi para menos. Tanto que deixava seu metro e meio (ou quase isso)
abrigar o eu. Não gostava de gritos, ainda que os pais vivessem nisso.
Ritual de brigas ou indiferença traçava a rotina da casa. Onde o silêncio
põe a mesa. Então,
a garota ficou podre. Estragada. Quando
viram, já eram quinze anos. Mas olhavam como se fosse dez para as três.
Levaram ao analista em busca de uma dieta para felicidade. Eles sabiam que
ser feliz é uma espécie de fome. Só que a garota sentia um certo prazer na
tristeza. Abraçava-a como se abraça um sorriso cheio de
dentes. O
que era estranho. O analista observava com seu tom de ervilha, mas se
enchia de vontade para perguntar. Ela não dizia. Dançava pelas margens do
problema, não conseguia se expor tão rápido. Ainda mais depois de tanta
exposição. Até
que começou a contar. Era
um garoto mais velho. Sempre são. Sofia gostava de ficar na concha, mas
ele a fazia corar. Fosca, a menina começou a deixá-lo andar com ela pelo
recreio, sentar ao seu lado no ônibus na volta para casa. Ela, quatro
séries abaixo. Ele, já na boca da faculdade. Repetente. As poucas amigas
deixavam Sofia de lado, à parte do grupinho que mantinha ativo o lado
social da turma. Talvez a menina fosse a única linda que ficou de fora. No
mix de inveja e fama, as meninas talharam suas beiras. Sofia ficou sem.
Aliás, mesmo com 15 ela não tinha celulite. Nenhuma. Porque ela nunca foi
dessas que possui coisas. Quando ele a quis, foi surpresa. Sim, de graça.
Dava presentinhos e dizia as tais coisas que toda mulher quer ouvir.
Depois de um tempo, chamou para sair. Ela foi. Era um cinema simples,
filme como pretexto para a carne. A mão foi descendo no escuro, sala
vazia. Enquanto lambia o queixo, não pedia licença. Deixava o calor suar
um pouco no pescoço, induzia para algo a mais. Ela não. Levantou e saiu
daquele clima. Não estava preparada daquele jeito. No dia seguinte, ele
não ficou chateado nem nada. Queria mais. Sofia andava meio envergonhada,
nunca tinha saído correndo de um cinema antes. Parecia coisa de criança.
Ela não era mais isso. Um tempo depois, ele a chamou para uma festa da
galera do terceiro ano. Ela foi. Os pais de um amigo tinham viajado, então
a casa ficou livre e regada. Sofia não bebia. Achava melhor não. Naquele
dia, acabou experimentando. Ele deu um copo para ela, drink colorido. Bem
docinho. Um dois três. Tropeçou na varanda, mas não caiu. Ele veio,
perguntou se estava tudo bem. As línguas já em transe brincavam de
gangorra. Áspero no áspero. Deitaram no sofá de bambu. A música ficou meio
abafada pela saliva. Ninguém os via ali, fora do eixo. Ele foi abaixando a
mão, procurando que curvas se escondiam nas carnes. Deslizava em voltas,
sem reta. No quente demais, Sofia levantou e saiu. Pediu um táxi, foi para
casa. A menina já estava com vergonha de não conseguir se entregar. Ela
não sabia se queria, não sabia se era tempo disso. A única certeza é que
não queria ter dúvidas. Ainda tinha medo. Ele, nem aí. Ria, quando ela
saía correndo. Achava coisa de criança. Mas já tinha corpo, já era
gostosa. Sofia faltou às aulas uns dias. Queria se recolocar no trilho.
Quando voltou, ele a chamou para sair àquela noite. Ela foi. Cinema sem
mãos. A menina achou que sim, ele entendeu que precisava de tempo. Um
pouco mais de tempo, pelo menos para acostumar. Em seguida, um passeio na
praia. Escura e à noite. Sem ninguém. Descalçaram e foram andar na areia
de mãos dadas. Superromântico. Sentaram na areia para o beijo não deixar
as pernas pesadas. O vento e o barulho de ondas não esfriavam a
temperatura. Deitaram. Ele foi se colocando por cima, abraçando e beijando
alguns espaços pouco beijados. Ela ria de cosquinha. Beijou os olhos de
Sofia, quando a mão direita desceu. Ela ia se levantar, mas não conseguiu.
Ficou abaixo do peso dele. Presa, disse "Peraí". Não adiantou nada. Ele,
"Shhh". Continuou beijando, mesmo contra. Empurrou os ombros contra a
areia para não se mexer. Desceu e, com um só puxão, tirou a saia e a
calcinha. Sofia quase gritou, fez um gesto brusco. Tomou um soco na
mandíbula. Frente ao choro calado, ele beijou sua espessura, apertando o
que quisesse, mesmo por debaixo do sutiã. Agora, ele quem mandava. Tinha o
tempo para degustar aquela pele lisa roçada de areia. Antes de enfiar,
Sofia ameaçou se erguer. Ele apertou o pescoço o suficiente para ela
entender. O amor não manda recados. Já se sentindo ralada, nenhum prazer
dominava seu horror. Aquela tinta era outra. Não a usual que fica no
absorvente todo mês. Aquele era o sangue de quem
perdeu. * Sofia
passou a comer menos proteína e decidiu adotar uma dieta vegetariana. A
ideia foi da mãe, claro. Queria que a filha ficasse mais leve. Achava que
a felicidade tinha algo a ver com a leveza das
coisas. Não
se achava original quando fazia regime. Para ela, é impossível confiar
numa salada de alface. Mesmo assim, Sofia deixava. Sublime, olhava de cima
sem se importar. A
menina foi se esfriando com o tempo. Passou a olhar meio além, como se a
gente falasse e ela visse de onde saem as palavras. Mas não dava sinal.
Estampava um sorriso torto para os pais não encherem o saco. Não ficarem
dizendo que ela estava doente, que precisava se
tratar. * Dois
anos depois do episódio, Sofia até parecia normal. Tinha um grupinho de
amigas, saía às sextas e bebia devagar. Continuava linda, quase anja.
Beleza que fazia qualquer um perder a lógica. Ela era o
molde. We
run and don't look back principalmente quando o tempo surge como um mantra
de não, um itinerário de cicatriz. Sem
gritos, ela deixou passar. Nunca tinha pensado muito em ser feliz. Deixava
a felicidade para quem come jiló. Ela preferia o
caroço. Foi
nesse clima que arrumou seu primeiro namorado. Do curso de inglês, agora.
Ele não fez promessas, mas cumpria antes mesmo que alguma expectativa se
criasse nela. Era o bom moço, inteligente e bonito. Para ela, só assim
mesmo. O nível tinha de se equilibrar, tanto que todas as amigas morriam
de inveja e viviam dando mole para ele. Que ignorava solenemente. Já
pensava até em casamento, o garoto. Que ridículo, Sofia pensava. Vai jogar
bola e para de doidice! Os
dois eram tipo os sweethearts norte-americanos. Os lindos, inteligentes e
tudo de bom. E daí? Sofia preferiria a beleza do anonimato e deixava tudo
para lá. Não fazia tipo, mas deixava clara sua antipatia. Nesse ponto, ela
não era fofa. Era até de veludo, como se passasse enquanto ignora sem nem
ouvir. No
primeiro Natal, a família se encantou. A dela com ele e a dele com ela. As
mães já fofocavam sobre o futuro, enquanto os pais esboçavam um ciúme
velado. Mas Sofia era triste. Sem ninguém ver. Para dentro, escondida.
Anjos abafam suas tristezas com beleza. Já
com vários meses de namoro, Sofia segurava. Ele queria muito, mas ela era
só não. Só medo e flash. Porque aqueles cortes de passado ainda eram
servidos à luz de um micro-ondas qualquer. Quando o calor começava mais
forte no roçar, ela logo via o passado piscando e sentia um troço subindo
a bloquear qualquer possibilidade de ser feliz. Ele
começou a reclamar. Não chegava a exigir, mas queria sempre estar sozinho
com ela, pegar as carnes e tal. Sofia foi perdendo o medo até enjoar. Sick
das intenções dele, ainda que justas. Até
escreveu no diário: Domingo
à tarde. Menstruei? Achei que, mas não. Alguma coisa certamente se esvaía
de mim naquele instante. Naquela tarde de maio. Pensei que fosse sangue,
mas era você. Sorry, não te guardo mais em meu
corpo. Ele
ficou mal quando Sofia terminou. Nem
deu motivos, só disse que não. Deu um beijinho e foi embora. Sofia era
dessas que dá as costas sem pena de quem fica. * A
vida continuou a mesma. A mesma sem mudanças drásticas. Nem para mais nem
para menos. O analista já não tirava mais nada. Passou no vestibular, os
pais nem fizeram festa. Isso era esperado. Mas cadê paz? Ela
tinha cara de paz. Disfarçava direitinho. A luz batia nela como se
gritasse. Como se fosse palavra subitamente grifada com marca-texto. Mas
essa luz vinha de dentro para fora. Sendo a raiz de seu medo uma fonte de
calor. Que ilumina os outros enquanto permanece à
sombra. Deixou correr. Não olhou mais. É sempre muito difícil encontrar o que se procura quando não há coisa a ser procurada. Os pais chegavam sempre e viam Sofia sentada na escada de pedra do condomínio, meio away. Chafurdava em sua beleza, esperando ninguém chegar. setembro,
2013
Ramon
Ramos (Rio de Janeiro/RJ, 1986). Formado
em Letras pela UFRJ, é escritor, professor e coordena um pré-vestibular
comunitário no Rio de Janeiro, onde vive. Publicou Tinta
(poemas, 2012) e Caroço (contos, 2013), ambos pela
Editora Patuá. Mais aqui: ramosramon.com.br.
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