Cartomante sem querer

 

 

A velha sabe

7 de paus na sequência

terminada em valete

é sinal de mau agouro.

 

Já passou da meia-noite.

 

Uma trinca de ases

vira canastra com

coringa, já era!,

a morte vira a esquina.

 

Comprei o morto, segue.

 

Sua pelas rugas empoçadas

e olha a outra velha

que ameaça sua vida

com cartas de jogo.

 

Tá tudo bem?

Acabou de jogar fora

sua canastra real...

 

Três minutos antes

de pular da janela do quinto andar

do lar de idosos da Usina, ouviu:

 

Bati!

 

 

 

 

 

 

O vento

 

 

empurra

porque não sabe

abraçar

 

 

 

[grafite de YZ | foto de stéphane bisseuil | projeto le bains | paris]

 

 

 

Suores da tinta

 

 

Ante o banho de sol

a tinta no corpo da lata

exala seus calores

sonhando o dorso do muro

 

enquanto outro tom de amarelo

observa pela transparência do plástico

o cabelo cacheado onde vai se agarrar

 

são esses os suores da tinta

a ser cravada na pele

à prévia do beijo da agulha

ainda em posse do tatuador.

 

Pela lâmina da língua afiada

a tinta escorre maliciosa

até o lume do seu corte.

 

 

 

 

 

 

Menina blue

 

 

desliza a unha azul pelas costas

num transe de jogo de azar a dois

em que teu zoom fisga com olhos de mangá

e silêncio o suor do meu tom de acaso

 

enquanto seu quê de over the rainbow

vaza pela blusa também azul e

pela expressão sem medo e sem batom

de quem obedece os pais

não vai com qualquer um

mas está a dez minutos de se deixar levar.

 

Tua luz não estava nas cartas, menina blue,

então vem, dois astronautas

beijando com Halls na boca

sem gravidade ou esperança de que

o céu salve e a solidão dê de comer.

 

 

 

 

 

 

no, no, no

 

O corte da tua linguagem corporal

escreve com pernas tortas

 

com boca e luz carnuda

cheia de soul e porraloquice

sangra e tinta no cio do teu som

 

onde há esse poder de não domar

a coisa viva mas cutucá-la

com vara curta, onde o cerne

dá ritmo a teus riscos

dá corpo às tatuagens

dá coice nas santinhas.

 

Com negação onipresente

de quem go back to black

se ajeita (até cabe) mas

não alonga o vestido ou a vida

a esse pocket show

you just say no, no, no.

 

 

 

 

 

 

Menino urbano

 

 

de bermuda e barba por fazer

pega a Bic e picha a noite

com versos no ônibus

que não levam a lugar algum

 

exceto à sua condição insular

ao pé do apartamento onde

a solidão se exila na sintaxe

 

é, ele tem um jeito estranho de gostar

 

e o lagarto tatuado no braço

sorri enquanto Something

se despe no Ipod e poderia ele

pisar como quem tinge

à luz do asfalto

tudo o que fica para trás?

 

I don't know, I don't know

se esses versos dão zoom na saudade

 

talvez por isso não sustente mais

sombras e preencha com palavras

as ruas do seu abandono.

 

 

 

 

 

Ramon Ramos (Rio de Janeiro/RJ, 1986). Formado em Letras pela UFRJ, é escritor, professor e coordena um pré-vestibular comunitário no Rio de Janeiro, onde vive. Publicou Tinta (poemas, 2012) e Caroço (contos, 2013), ambos pela Editora Patuá. Mais aqui: ramosramon.com.br.
 
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