MANUSCRITO


A mão que escreve é o corpo querendo viver.
Cada palavra pulsa como um desejo ardente.
Sou um homem não uma máquina de ações
Estou à margem do sonho, nas entrelinhas
do que deixo constelado nos papéis da mesa.

Sou eu a onda luminosa que se espalha na sala
e se assenta no assombro das cadeiras.
Vivo o que movo e o que toco. Sou um mar e devolvo
à solidão um rosto.

Na mesa estão os materiais do prodígio:
Os lápis aparados, os cadernos abertos.
A caligrafia de um relâmpago risca a terra
Os meus ossos escrevem e todo o meu sangue flui
na harmonia sinuosa dos gestos e das palavras.

 

 

 

 

 

 

ÉGIDE

 

 

Escrever-me é esquecer-me.

É saber-me

reflexo solar num espelho de sombras.

 

É guerrear numa terra covarde

de apelos sem voz e sem alarde.

 

Escrever-me

em sílabas de cal e de silêncio

é escavar a pele dos acontecimentos

quando não acontece nada.

 

É esculpir o pássaro estrangulado da voz

num empenho nítido de pedra lapidada.

 

 

 

 

 

 

MALHA

 

 

As palavras tecem a vida em que existo e em que hei de deixar de existir

Como rede ao redor do peixe.

E já não estou mais aqui.

Estou combatendo os fogos e os touros noturnos do silêncio

Com minhas canetas insistentes

E uma sólida solidão que esmurra muros brancos de papel.

 

Adágios ou adagas, as palavras cortam

A noite profunda

E cavam com a língua e os dentes as novas trincheiras do cântico.

 

 

 

 

 

 

PRELÚDIO

 

 

Eu bebo o silêncio como o mel mais puro

E há em mim uma reserva de pausas que nada significam.

As palavras suspensas deixam de zumbir e de zombar,

E todas as oferendas do céu e da terra permanecem anônimas,

Frutificando surdamente na fulgurante serenidade de uma tarde vazia.

 

Como é adorável a ausência de sons e de significados

Que as pedras ostentam nos seus lábios inexistentes.

Leio uma página de abstrações vazias

Na imobilidade de uns lagartos estacionados ao sol.

Tudo deveria permanecer assim sem batismos ou definições.

Nada deveria perturbar o sono profundo das línguas mortas.

 

Estou calado como um homem que ama e dorme.

Meus gestos nada gestam. Tudo é mudez

E cautela. Como num céu limpo. Meus pensamentos são folhas e bolhas

Nas águas da vigília, limbo secreto de rumores inéditos.

 

Todo clamor está por nascer,

Ainda arde febril em sua corola opaca e anônima

De voz submersa plena de signos latentes.

 

 

 

 

 

 

BABEL

 

 

Não reconheço a cidade nem seus ecos.

As línguas dos nativos estão bifurcadas.

Nasceram-me aqui, em uma noite remota,

Mas não consigo explicar o coração das coisas.

Os animais dialogam. Os homens matam.

Nada faz sentido e estes versos também não.

Se subo ou desço às margens do sol

O tempo imprime a tarde e suas ramas inquietas em meus olhos.

Eu sou toda linguagem e todo estranhamento.

Não conheço nada não ouço conselhos não estou habituado

Ao verão assassino nem às outras estações.

Dou as mãos ao vazio.

O silêncio é minha terra e nossas vidas são o chão

Em que as palavras erguem suas torres mais aflitas.

 

 

 

 

 

 

ANTES

 

 

Antes que eu me perca no tirocínio das ruas

E me saiba mais uma vez como sempre só,

Permitam-me a voragem desta indecifrável melodia

De timbres e de papéis em azul monótono

Na qual se pode deitar nu como na orla de uma praia;

Ou enveredar por uma paisagem sem horizontes

Que se avoluma no pensamento e logo se desfaz

Num limiar de fogo e de puro silêncio.

 

 

 

 

 

 

FÊNIX

 

 

I

 

Quando as portas da alma abrem-se

e música alta foge pelas janelas

e pelos olhos vegetam objetos,

coisas mortas deslembradas de ser,

enquanto cresce negra a grande noite

e em sombras se divisa um pálido

fulgor, rápido e fugaz, não um astro

no estro noturno, nem o brilho da íris

aberta contra a escuridão e o vazio,

mas uma flama que não se aplaca

na ventania que açula teus cabelos,

não é menos chama do que flor

o pássaro que se atira e atiça a luz

ardente, e pulveriza-se, expirante

em espirais de fumo e destruição,

e desses fins emerge como milagre

como sim e não, talvez cinzenta ave

ferida nas asas, mas renovada na

música não final, em secos ecos,

violência e pausas, cio e sexo, ovo

posto ao limiar do som e do silêncio.

Alcanço também o meu limite

nestes horizontes surdos, calados

e sem vôo, entre cinzas e palavras.

 

 

II

 

A Luz, o fogo: o pássaro consumado

A flor, o fogo: o pássaro consumido

 

Esperança que não renasce, ave

extinta na sarça ardente, Fênix.

 

Eis a cinza de que fomos feitos.

Esperei ver, em vão, o ressurrecto

 

pássaro de sangue revoar ao vento,

o dia reabriu e desfechou, isento

 

de milagre ou maravilha, e desfez-se

à noite, pelos horizontes estreitos.

 

Dentro do peito, porém, uma legenda

gravou seu signo, legou o grito, engen-

 

drou um canto, um encanto, um mito.

 

 

 

 

 

 

FACA

 

 

Escrevo na carne

as verdades incisivas.

 

Reparto o pão e o crime.

Arranco uma palavra vermelha

da indiferença dos peixes.

 

Só estremeço em mãos covardes.

 

A minha fala é cortante.

Meu sorriso fere.

Um gesto

e dilacero a pele das árvores.

 

Venço a nudez ácida

de um fruto ardente,

declamo sementes

e me calo, aço sonolento.

 

O vozerio das pedras

afia o gume do meu silêncio.

 

 

 

 

 

 

GARRAFA


Guardo no sigilo do sangue
Uma senha de sonho e espuma

Trago comigo uma tempestade
No fundo da calmaria escura

Acumulo segredos pouco nítidos
Sob a transparência do vidro

As mãos que violam meu silêncio
Vertem um canto entorpecido

Distribuo as palavras livres
Derramo as verdades vedadas

Proponho o delírio num brinde
E abafo o rumor das mágoas.

 

 

 

 

 

 

RASCUNHOS

 

 

I

 

Espera-me. Quando eu me levantar serei alto.

Qual um farol.

Mais:

Minha luz será nesga. E anoitecerei

Esta cidade com brilhos falsos, negativos.

Oferecerei grãos de areia às paixões dissipadas.

Serei mestre das mentiras roubos e mortes.

Fulminarei vossa ciência

Semeando — o caos — como quem colhe

tempestades

da voz.

 

E meu amor, à luz, é. Uma mentira febril

Que queima lenha lenta nos mil sonhos.

Desta vez — Será exato. Diferente:

Uma sombra deslumbrante.

Amanhã. Quando despertarmos. Entre répteis. Sol.

Num desespero de lençóis

E vidas de corola pobre. Sem intensos donativos, além

Dum oceano de brancas brasas escritas. Cifras.

 

Com estas achas iluminarei. Vosso perfil de penumbra.

Recolhido — à flama — como quem planta

Silêncios.

Nos dias e nos azuis. Que são

A quietude do Diabo (deitado em decúbito).

 

A minha casa é esta coluna.

A noite

Por onde me espalho quando escrevo luminoso.

 

 

II

 

Espera

Que eu me levante.

Quando serei alto. Igual. A um farol

Mais. Minha luz será negra.

Anoiteceremos.

Numa cidade falsa, negativa.

Os olhos vermelhos nos vidros violentos

Em oferendas. Em grãos de areia. De uma paixão dissipada.

Pois. Mestre das mentiras eu

Roubo e mato. As horas. De tédio vosso.

Semeando caos nas tempestades e na voz.

 

O amor. A Luz. É.

Mentira febril, firme, quente.

Quando. E me deito — no mar.

Soa exato — diferente. Uma sombra ou. À penumbra.

De répteis ao sol. Em lençóis e desesperos.

Em vidas de cores e orlas pobres.

Onde nada se dá — Senão. Um oceano

De brandas cítaras.  Um recital de cinzas.

 

Com estes incêndios de brilho fosco alarmarei

O vosso tédio.

Como quem cimenta

Silêncios

Entre dias, azuis. Ah a quietude. O diabo nas camas,

O ódio cioso, no centro da coluna.

Em que vivo morto em meio à noite

E só acordo em meus pesadelos

Escritos pela luz.

 

 

 

III

 

Quando, e se, eu me levanto.

Espera por mim.

Alto igual. A um farol. Quando.

Anoitecerão as cidades.

E os contágios serão brilhos

Falsos e negativos, apodrecimentos:

De uns olhos vidrados, violeta. Quando?

Não esperes impaciente pelos dias vermelhos

Para ofertar em grãos

De areia a paixão dissipada.

 

Eu mataria para roubar as horas do tédio.

Através do caos das tempestuosas vozes.

 

O amor é luz, menina febril.

É um filme. Onde me deito e o mar exato

Difere. Uma sombra alumbra.

E cegos répteis reinam ao sol. Onde?

 

A vida, esta cicuta. Um oceano turbulento.

Revolvendo tédios

Como quem arregimenta silêncios.

E entre os dias e seus azuis

Toda quietude é o diabo.

 

Hoje

Legarei um refrão à noite

no regime estrito dos meus pesadelos luminosos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens©eileen agar]

 

 

 

 

Sandro Fortes (São Luís/MA, 1970). É professor e artista plástico, formado em Letras e em Jornalismo pela UFMA. Em 2006, venceu um prêmio literário e publicou Um passeio mítico pela obra de Clarice Lispector, ensaio em que analisa várias obras da romancista e contista. Inédito como poeta, guarda na gaveta o seu primeiro livro de poemas, Nós somos as palavras.
 
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