*

 

deixo-me nas intimidades

que não são pertenças

(tatuagens)

 

conhecer-te é ver do alto

o precipício

de viver o que não disponho:

 

a beleza que não se mostra

no literato do teu corpo

 

 

[do livro Poemas do Dilúvio. Portugal: Alma Azul, 2001]

 

 

 

 

 

 

*

 

desnudar

o rosto moderno

da solidão

 

expor a dor

o vazio

 

descobrir

nas palavras

o recanto

o conforto

o bálsamo

de dias perfeitos

 

 

[do livro Poemas do Dilúvio. Portugal: Alma Azul, 2001]

 

 

 

 

 

 

 

gênesis

 

 

e no princípio

era o silêncio

 

e Deus

criou o verbo

 

e aprisionou para sempre

o silêncio dentro do homem

 

 

[do livro Páginas Despidas. Portugal: Edições Pasárgada, 2005]

 

 

 

 

 

 

há lodo no belo

 

 

o lixo

por baixo do belo

 

o lado

do lixo das coisas

 

o lado o lodo

do belo

 

 

[do livro Páginas Despidas. Portugal: Edições Pasárgada, 2005]

 

 

 

 

 

 

apocalipse

 

 

é preciso

implodir a palavra

 

desconstruir

o edifício

 

libertar

o silêncio

 

 

[do livro Páginas Despidas. Portugal: Edições Pasárgada, 2005]

 

 

 

 

 

 

o relógio avariado de deus

 

pelo sorriso que não deu

(e se o fez nem sentiu que sorria)

pelo beijo desejado todos os dias

pelo amor da menina de óculos fundo-de-garrafa

                               [do final da sala de aula

que nunca virá (e quando vier, outro será o amado)

pelo silêncio guardado no calabouço

pela mãe dividida com o irmão

pelo não

pelo verbo implodido na garganta

pelo pai sonhado e por isso inexistente

(como todos os pais sonhados e por isso inexistentes)

pelo filho que enviou sinais

e os tradutores não conheciam a sua língua

 

 

pelo parapeito

 

     (o último pódio)

 

pela vista panorâmica

 

     (do nada)

 

pelo Junho

 

     (sem santos populares

nas alturas)

 

pela terça-feira

 

     (de céu limpo)

 

pela janela

 

     (do oitavo andar)

 

pelo voo

 

     (sem pára-quedas)

 

pela consciência

 

     (ante o asfalto)

 

pelo impacto

 

     (antes do zero

da nossa impotência)

 

 

morreste-nos

 

 

[do livro O relógio avariado de Deus. Portugal: Edições Pasárgada, 2011]