Eu conheço muitos poetas que querem criar uma proximidade entre eu lírico e pessoa amada dentro do poema mas que se limitam a mencionar um cigarro ou qualquer coisa que apresente uma urbanidade simples. Nada, porém, que consiga se igualar à maneira absolutamente mansa e incrivelmente palpitante desse poema de João Licino. As coisas nesse poema ou são pequeninas (por exemplo o chuvisco) ou são serelepes: "A vida lá fora, correndo nas / ruas, brincando nos galhos...": observe como a vida se faz presente em praticamente todo lugar, e observe como o poeta conseguiu isso sem uma metáfora batida nem nada do gênero: apenas soube usar uma vírgula e o movimento paralelístico sutil entre a vida correr nas ruas e brincar nos galhos. Isso é que é bonito nesse poema: as coisas estão acontecendo e, por mais mansas que elas sejam, você simplesmente não consegue captar aquilo tudo. Nada consegue. E não sou eu quem digo isso, nem, apenas, o eu lírico que o implica: nós todos sentimos.
Num nível de realização menor está a descrição de João Antonio Neto em "Água do monte". Observe a segunda estrofe:
E a fonte foi descendo...
Crescendo...
Dentro da mata,
Há retintins de prata,
Murmúrios
De canários nos tugúrios
Volantinas
Cristalinas...
Doces
Chilros...
E um tralalá de bilros...
Esse recorte meio ágil propiciando a rima é uma coisa que você vai encontrar pra toda banda no poema, mas nada que consiga realmente bater de frente com a concreção imagética e rítmica de "Uma noite em Pouso Alto" de Léo Lynce. Todavia, ainda assim pode ser capaz de despertar um interesse que seja, talvez graças a alguns momentos sonoros interessantes como "Murmúrios / De canários nos tugúrios". Tudo bem que depois disso você possui um negócio que beira o sem sentido como "Volantinas / Cristalinas" (ou então esse "tralalá de bilros", que eu não faço a mínima ideia do que seja: bilros não eram baquetas que você usa pra tocar timbales?), mas acredite: mesmo com esse alto e baixo é um poema que pelo menos denota um esforço, mais ou menos o mesmo esforço de Cordovil com seu "gró gró gró".
Um terceiro exemplo é o de Benedito Odilon Rocha com "Caraíba":
Ao vê-la, galhos secos, angulosa,
Perdida num recanto do cerrado,
Tronco encoberto em casca suberosa
E a folhagem de um verde descorado,
Certo o botânico, o naturalista,
Por ela não dariam quase nada.
(Talvez nem mesmo conste em sua lista
Um nome para essa árvore enfezada).
E no entretanto, mal agosto vindo,
Ei-la vestida em gala suntuosa,
Toda de ouro, solene, majestosa,
― U'a mancha amarela colorindo
A paisagem monótona dos campos.
Fala o poeta:
― Mas que arbusto lindo
Aquele ao longe transbordando em flor!
E o roceiro entendido na matéria:
― Aquele é caraíba, seu dotô...
Caraíba, pra tentar traduzir pra você que nunca viu um, é um ipê amarelo. O poeta se sai bem até mesmo quando ele pretende descrever de maneira poética a árvore, certamente armando o contraste no final. "Tronco encoberto em casca suberosa", por exemplo, é perfeito e demonstra que o poeta soube traduzir um olhar atento em palavras precisas. Até mesmo quando ele se vale de um verso como "Toda de ouro, solene, majestosa", que é um verso redundante até as tripas (sem nem contar o anterior: "Ei-la vestida em gala suntuosa"), ele consegue fechar a estrofe com a ideia da mancha amarela colorindo "A paisagem monótona dos campos." Isso é bom. Muito bom. Um poeta que tivesse uma ideia dessas e que de algum modo se demonstrasse afoito em criá-la antes que um outro filho de Deus em algum lugar do Estado também a tivesse, provavelmente teria descrito de maneira bem atrapalhada a árvore, doido pra incutir uma espécie de gravidade e solenidade pra que assim ele pudesse aproveitar o bote mais pro final. Ledo engano. Benedito Odilon mantém uma linguagem decente o tempo todo, uma linguagem clara que, ainda assim, consegue sustentar a contraposição no final, em grande medida pois ele compreendeu que não é que o sentimento do roceiro seja exatamente mais genuíno que o do botânico ou o do poeta; a beleza que todos eles sentem diante da caraíba é a mesma, e Benedito Odilon conseguiu fazer com que todos pudessem expressar de maneira igualmente sincera o espetáculo de ter uma árvore dessas diante dos olhos.
De Benedito Odilon seria também possível citar "O monjolo", um dos exemplos mais claros de como o ritmo do poema pode estar claramente te dizendo coisas. Veja a terceira estrofe:
Mãe preta sentada catando café,
Casquinhas voando da peneira ao chão,
Monjolo não para, não cansa, não dorme,
Monjolo soluça
― E… in… pangão… E… in… pangão…
Os anapestos aceleram sua leitura e a demarcam. Você lê o poema como se fosse um monjolo propriamente dito.
*
Após esses três nomes, nós nos encontramos com um peso pesado: Afonso Félix de Sousa, nosso grande expoente da Geração de 45. Afonso Félix possui, pelo menos, dois livros de alto nível de realização: Íntima parábola, um bom livro de poesia metafísica (o que por si só é algo raro) e Sonetos aos pés de Deus, um dos nossos melhores livros de poesia religiosa. Isso sem contar o número realmente grande de poemas menores que ele possui em alto nível de realização. Por exemplo os amorosos, que contam com a sequência "Sonetos do amante" (destaco em especial o I, o II, o V e o VIII, além do enjambement que alcança uma carga semântica elevada nesses sonetos todos), "Soneto do reencontro", os sonetos XI, XII e XV de Íntima parábola ou o "Soneto na estação das barcas" ("Quem canta em nossos passos? Quem nos guia? / Quem fez calar os pássaros do agouro? / Quem funde o mar de agora e o mar vindouro? / Quem faz para que nós não morra o dia?" ― fala sério: você dificilmente vai encontrar um poema de amor com toda essa gravidade metafísica realmente profunda... ― isto é, não a profundidade de você inventar um paradoxo sem pé nem cabeça no começo do poema, uma espécie de glosa do odi et amo de Catulo ou derivados).
Mas os exemplos não ficam só aí. Cito: "Embalo", "Canção do Pont Neuf", "Aqui e outrora", 'Segunda glosa elegíaca", "50 anos", "Beirute 1975", "Refrão do sobrevivente", o primeiro, o sétimo, o oitavo, o décimo, o trigésimo (antes publicado como "De pai a filho"), o trigésimo quarto e o trigésimo oitavo de À beira de teu corpo, "Escrito na areia" e "Ladainha da paz".
Sim, um número grande de poemas: creio que Afonso Félix de Sousa é o poeta cuja produção alcançou, de modo geral, o nível mais alto em nosso Estado. Não dá pra citar tudo isso. Me contentarei com dois exemplos, mas só vou dormir em paz sabendo que você vai pelo menos se esforçar em ler mais coisas do cara. O primeiro é o soneto XXXII de Íntima parábola:
Na várzea, além da serra, um domador de potros
contra seu próprio peito usava a fúria e o açoite,
já que lhe era mister domesticar a noite,
e os dias que vivera os converter em outros.
Pelos longes da várzea os garanhões corriam
atrás de antigo pasto ou de invisíveis éguas.
A lua, exausta já de andar léguas e léguas,
parou sobre vergéis que a si mesmo destruíam.
Houvesse um boi ou mar para abafar os berros
desse morto de amor a dispensar ajuda,
e que ao interromper-se, em fala tartamuda
contava como a dor queimava-o com seus ferros.
Dentro de si guardava o mundo ― flor e carga.
E cuspia a própria alma em lago de água amarga.
Estamos diante de um poeta que realmente sabe versificar, rimar, fazer sonetos, essas coisas. Observe como ele possui como que um planejamento, isto é, ele não faz um verso pra só depois encaixar o outro (e encaixar de qualquer jeito pra simplesmente rimar e completar a matemática da fôrma), mas, ao contrário, faz daqueles versos uma espécie de túnica natural do pensamento. Ele não enche linguiça. Ele não retorce seus versos. Aquela lição poundiana, velha, básica, de que a boa poesia precisa pelo menos ser tão bem escrita quanto a prosa, está presente aqui. É preciso todo um treino pra se chegar a um estágio desses, embora, é claro, chegar a um estágio assim não seja garantia de que você chegou lá: ele é o mínimo do mínimo. Heitor Quilles, por exemplo, na totalidade de seus sonetos demonstra que sabe fazê-los e com fluência, mas uma fluência que veicula um conteúdo ralo e purulento de clichês.
Mas a lição que fica não é simplesmente essa; é a lição de um poeta que conseguia converter sentimentos em metáforas reflexivas o bastante. Evidentemente nós não estamos vendo o poeta pintar uma cena para depois refletir sobre ela (às vezes já tomando a cena pronta), o que passou a constituir, em especial da segunda metade do século pra cá, a vertente mais comum de poesia reflexiva entre nós. A reflexão empreendida pelo poeta é muito mais uma reflexão que se dá de maneira concomitante à construção da imagem, uma vez que, se o motor central dos sonetos do livro é o de uma íntima parábola (uma história que metaforize uma condição interior), então esse processo parece ser o mais lógico e o mais efetivo de ser usado.
Como se trata de uma paisagem que possui uma correspondência essencialmente interior, isto é, como estamos diante de uma descrição exterior que metaforiza uma condição que pressupomos ser a do eu lírico ― e uma descrição por si só inteligente, uma vez que no início é o domador de potros que usa suas técnicas para domar a si próprio para que, assim, dome a exterioridade de sua existência, isto é, multiplicar os dias que já viveu em outros dias, o que, na imagem que o poema traz, quer dizer domar a noite ― mas, já no fim do poema, esse domador é marcado a ferro e fogo por uma paixão e parece se tornar ele próprio o animal de carga da situação, de modo que a temática da dominação, da falta de controle e da servidão, bem como das inversões implícitas na relação entre quem doma e o que é domado, adquire aqui, graças à forma como a situação é construída, uma resolução imagética intrincada e ouso dizer que por isso mesmo poeticamente muito mais efetiva ―, então a maneira como o poeta se vale de algumas imagens um pouco mais vagas, como as invisíveis éguas, faz com que a vaguidão dessas metáforas não peque por sensaboria. Pelo contrário. Há uma rigidez, eu diria mesmo uma concreção na imagem trazida, em grande parte pois a imagem consegue manter seu interesse à medida que avança (por exemplo a própria ideia dos vergéis que se autodestruíam) e também graças à sonoridade privilegiada de muitas passagens, por exemplo a forma como "potros" no primeiro verso esmerilha seus fonemas em "contra seu próprio peito" já no segundo verso ou, então, no último verso, a esplêndida cadeia paranomásica.
Este é somente um exemplo. Eles poderiam se estender, como eu disse, mas não é bem esse o meu objetivo aqui. Dê mais uma olhada na "Segunda glosa elegíaca":
Minha mãe está morta e os pássaros
ainda cantam, cantam, como que me chamando
para os seus ninhos de fofura e acordes,
como que me chamando para
os seus redutos de infância e levitados.
Mas estou surdo. Está surdo
o pouco que sobrava em mim de intimo
da infância e seus desvãos e suas várzeas.
Vou só, e minhas pernas estão frias,
frias, é o chão me foge aos pés, me foge,
e mal arrasto tanto peso do próprio ser
de súbito caído, vazio e inerme, no
coração do nada… Minha mãe está morta.
Antes, era simples partir sabendo sempre
para onde voltar. Era simples sair
pelo mundo batendo a cabeça contra
as paredes, e em algum lugar um dia
poder sobre um regaço deitar
o sono dos muitos sonhos gastos.
Mas minha mãe está morta, as duas mãos
que me levavam em meio às multas sombras
até à sombra de Deus, assim que me doíam
as mordidas da vida… E agora, vou como
uma barata tonta em meio a sombras e golpes
do imprevisto; vou como
arrastado por pernas como
amputadas do meu corpo como
amputado de mim, e, órfão de mim mesmo,
onde vá eu chego à imensidade
do pequenino espaço onde
minha mãe está morta.
Ouso dizer que é um poema que, de um modo geral, consegue uma concreção ainda maior que a do soneto anterior, em grande parte pois seus vocábulos e suas comparações não tendem a abstratizar ou até metaforizar a coisa retratada. Você perde aquela margem de espaço de tomar o domador de potros como um símbolo de alguma coisa, por exemplo, e já entra nesse poema com a informação nua e crua de que a mãe dele havia morrido. Não digo isso querendo implicar que se trate, por conseguinte, de um poema melhor; acho realmente que os dois se encontram em graus análogos de qualidade.
O que eu citaria aqui para que prestássemos atenção é em relação ao verso livre. Note como ele permite que o poeta, por exemplo, jogue com a palavra "como", que, quase que imediatamente após sua primeira ocorrência no segundo verso (ou talvez até mesmo durante essa ocorrência), perde seu poder de comparação implícito e, tão logo chegamos na sequência final ("do imprevisto, vou como / arrastado por pernas como / (...)"), sentimos o evidente desnorteio do poeta, como se ele, tentando se afastar da imagem da mãe morta, terminasse por no fim das contas estar à beira de seu corpo, é dizer, terminasse por se encontrar no fúnebre acalanto de uma tumba ― e a descrição dessa tumba como um "pequenino espaço" é tocante, em especial pois incute um clima de acalanto à coisa toda. E se você notar que no poema, de um modo geral, toda ideia de acalanto é meio que silenciada com a lembrança de que a mãe está morta ― o que acontece literalmente em "(…) e em algum lugar um dia / poder sobre um regaço deitar / o sono dos muitos sonhos gastos. / Mas minha mãe está morta (…)", ou, de modo análogo, no " Mas estou surdo" logo após a evocação dos redutos da infância ―, então esse acalanto no final é pelo menos um suspiro de alívio.
O que não muda o fato de que a mãe esteja morta.
*
Depois de Afonso Félix, francamente um grande poeta, nós poderíamos estar à roda de José Godoy Garcia, poeta que mencionei antes de passagem. O problema é que minha opinião sobre a poesia do autor não é das melhores. Acho muito ruim tudo o que ele escreveu, ruim no sentido de: chocho, insípido, de um deslumbre corriqueiro e chão. É óbvio que estamos diante de um poeta de uma poética simples e com pitadas de onirismo e sensualidade que nos lembram de pronto nem tanto o Pablo Neruda de suas Residencias experimentais (eu estaria sendo lisonjeiro demais se estabelecesse uma comparação dessas), mas sim o Pablo Neruda que já houvera se tornado um diluidor de si próprio. Isso pra não contar a maneira reles com que o poeta incute uma visão marxista old school em grande parte de seus versos, sem preocupação nenhuma de refiná-los não para que simplesmente adicione um pouco de poesia pois no fim das contas poesia não pode ser política ― na verdade, pelo contrário, acho sim que a poesia pode ser política, panfletária, o escambau ―; o que me incomoda é quando o poeta se vale do instrumental poético de maneira subserviente, e, no mínimo, perde uma chance de transformar seu poema numa arma de ataque refinada e não numa mensagem boba com algumas demãos de poesia de quinta.
O máximo que poderia ser citado de José Godoy Garcia seria aquela "Espécie de balada da moça de Goiatuba", que possui um sabor de início até interessante ― mas que vai se perdendo até o momento em que você se pergunta, do fundo do coração, o que diabos aconteceu com aquele poema que você estava lendo e até mesmo gostando ―:
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem
De Goiatuba
eu guardo
muitas recordações
Repetir o início é uma opção que eu caracterizo como graciosa, bem pensada e efetiva. A rima na estrofe seguinte consegue pegar uma rebarba em praticamente tudo isso também, e a forma como o poeta fala que guarda muitas recordações de Goiatuba é um comentário com um timing perfeito. Bastam alguns segundos pensando em que tipo de recordações são essas que você já abre um sorrisinho malicioso. É isso mesmo. Pena que a partir daí o jeito seja apertar o cinto: o poema só piora.
E, além deste, o movimento ótico nesse daqui de A última nova estrela:
Uma madeira que vaga no caminho dos anos,
não igual à manhã, não igual à manhã
e pode ser irmã da que passou
nos anos, não igual ao tédio, não igual
ao abraço que pode ter um traço
do que foi e não igual ao tédio de um tempo
onde até a fome se esconde,
não igual a tudo que tem mão
da chuva e do que tem o olho
da morte, uma madeira que vaga
numa corrida louca no tempo
para viver para o homem, uma
madeira de porta, mensageira
da vida, uma madeira de um circo
e uma dura espessura de tédio
que ficou no ataúde ou no pião
que saiu da mão do menino.
Você enquanto leitor precisa ser capaz de todo um dinamismo pra ler um poema desses, e não simplesmente pra que consiga acompanhar o movimento que vai de "uma madeira de um circo" para "uma dura espessura de tédio", mas também o movimento de saber quando revisitar duas vezes seguidas a mesma expressão, como, por exemplo, o "não igual" do segundo verso. Isso contribui para que a ideia de uma madeira vagando no caminho dos anos, quem sabe como que boiando, se demonstre mais convincente uma vez que o leitor, quando entra em contato com o poema, sente a linguagem fazendo algo mais ou menos parecido com aquilo ali que ele está imaginando na sua cabecinha.
*
José Décio Filho nos deixou Poemas e Elegias, de 53. Você já deve ter percebido que meu escopo nesse texto aqui não é o de selecionar apenas os poetas que julgo consumados, ou apenas os livros que considero bons ou, até, os poemas que considero bons na íntegra. Minha tesoura permite que eu traga aqueles trechos que, por algum motivo ou outro, me pareceram felizes e inteligentes. Fosse o caso de trazer apenas aqueles poetas que chamo de consumados, e eu me limitaria provavelmente a Afonso Félix de Sousa e Heleno Godoy (mas faria alguns apontamentos sobre Cora Coralina, Gilberto Mendonça Teles e Pio Vargas). Fosse o caso de trazer apenas os bons livros, e eu me limitaria a Íntima parábola, A ordem da inscrição, Poemas e elegias, Saciologia goiana, Baco e Anas brasileiras, Anatomia do gesto e talvez Congresso espiritual de ranúnculos.
Mas o lance não é bem esse. Muito se perderia ao proceder assim. Se leio os dois primeiros versos daquele soneto do Cônego Luís Antônio da Silva e Sousa, e se de algum modo os considero como inteligentes, sem que o restante do poema, que eu reputo como ruim, os atrapalhe em excesso, então eu vou falar dele aqui. Estou totalmente consciente de que um recorte sincrônico permite uma coisa dessas.
Com José Décio Filho, de modo geral, eu não vou precisar sair à cata de exemplos que não condizem com o restante da obra: as famosas pérolas lançadas aos porcos. Poemas e elegias é um livro competente. O que admira em sua produção é a maneira como ele consegue fugir dos caminhos corriqueiros que a máquina metafórica da geração de 45 sempre ostentava, com pássaros saindo de tudo quanto é canto e uma sensualidade óbvia, além, claro, daquelas metáforas dissonantes que só te intrigam se de algum modo você for um calouro nesse tipo de poesia.
Poemas e elegias é um livro grave, pesado, plúmbeo. Um negócio realmente depressivo, permeado de uma escuridão e de uma constrição que acertam nota por nota de cada poema. Mas ao invés de transformar isso numa coisa exagerada e gratuita, o poeta demonstra uma franqueza impressionante, e o que você tem diante de seus olhos é uma poesia que funciona maravilhosamente como objeto estético. Por exemplo a primeira estrofe de "Grave elegia":
Quando me acho triste
(e isso acontece muito),
gosto de sair pelas ruas
qual um homem sem fichas,
vagamente deslembrado
de todos os compromissos.
Incutir uma ideia de vagueza e de desnorteio foi o que praticamente a geração de 45 inteira fez, a todo instante. O que torna esse começo, porém, diferente? O início. A franqueza, como eu disse. O fato do poeta ser direto com você, ao invés de ficar insistindo toda hora numa máquina metafórica que vai de cá pra lá num instante, provavelmente querendo incutir uma espécie de abandono no leitor. Não, nada disso. Isso cansa, e, acredite, esse excesso é uma coisa que uma gigantesca parcela da poesia goiana vai insistir. Com José Décio Filho as cartas estão em cima da mesa, e o desânimo do poeta começa quando ele, também, desiste de se valer dos instrumentos caracterizadamente poéticos para te dizer que ele pura e simplesmente está triste.
Momentos assim aparecem muitas vezes ao longo do livro. É verdade que existem aquelas passagens em que o poeta fracassa de maneira muito infeliz, como por exemplo no começo da última estrofe de "Poema horizontal":
Agora é preciso trocar de roupa,
passear candidamente pelas ruas
e arranjas incríveis namoradas.
Essas namoradas adjetivadas como "incríveis"… Isso é meio patético. Trocar de roupa obviamente também é; mas você consegue ler e sentir a concreção da ideia de maneira muito mais efetiva que aquela nota amorosa qualquer jogada no poema.
Um exemplo citado na íntegra: "Áspera elegia":
Não basta a solidão.
Fundas correntes de vida
vêm rebentar como um rio
nos meus olhos que ardem
e nestas mãos inúteis.
― Tenham paciência comigo!
(quero gritar às vezes).
Não me transformem de súbito
num escoadouro tormentoso
de angústia e de ternura.
Aonde levarei essa música,
essa dor e surda alegria
ou essa dura tristeza?
Sou um homem sozinho,
os corações estão secos, amargos,
estão cobertos de lodo.
Aonde irei me aportar
com essa carga crispante,
que os céus me encomendaram?
O amor é um pobre covarde,
quer dormir e sossegar.
E eu me sinto tão incômodo
qual um feixe de espinhos.
Mas vos prometo, no entanto,
que não dormirei quietos
nestas noites aflitas:
irei pelas ruas tranquilas
das vossas almas mofadas,
semeando o vento do fogo
para crestar vossas banhas
e acelerar vossos pulsos
exauridos pelo tédio.
Depois, ao me sentir exausto,
aguardarei em silêncio a madrugada,
para chorar sobre sua pureza
todo o velho desespero.
É bom ler algo assim e ver que o poeta não escapa pela tangente. É bom saber que, embora o conteúdo seja deprimente e incontrolável, ele consegue incuti-lo na exata medida para que você consiga sorver a carga do que os versos têm apresentado ao mesmo tempo em que demonstra um senso de recorte preciso. Uma secura sem pirotecnia. Por exemplo: "Sou um homem sozinho, / os corações estão secos, amargos, / estão cobertos de lodo." Três adjetivos que seguem uma mesma ideia, uma mesma nota, mas sem espichar demais.
*
Saciologia goiana, de Gilberto Mendonça Teles, publicado em 1982, é também um dos melhores livros de poesia já lançados em Goiás, e só agora você já deve ter percebido que parece que nossa literatura começou mesmo foi de 50 pra cá.
O que causa admiração aqui é a maneira segura com que o poeta maneja o verso, a fluência e a forma hábil com que ele mescla notas clássicas com um ouvido calibrado o bastante pra captar o fluxo da fala popular. Por exemplo o primeiro terceto do primeiro soneto da sequência "Linguagem":
Algumas vezes eu me alembro duma
tarde na roça: a poeira da boiada
e o berrante cortando e dando nó…
"Goiás" apresenta momentos assim quase que durante o poema inteiro, embora eu desconfie que muito mais em seu início. Cito na íntegra:
Só te vejo, Goiás, quando me afasto
e, nas pontas dos pés, meio de banda,
jogo o perfil do tempo sobre o rasto
desse quarto-minguante na varanda.
De perto, não te vejo nem sou visto.
O amor tem desses casos de cegueira:
quanto mais perto mais se torna misto,
ouro e pó de carunho na madeira.
De perto, as coisas vivem pelo ofício
do cotidiano ― existem de passagem,
são formadas de rotina, desperdício
e abstrações por fora da linguagem.
De longe, não, nem tudo está perdido.
Há contornos e sombras pelo teto.
E cada coisa encontra o seu sentido
na colcha de retalhos do alfabeto.
E, quanto mais te busco e mais me esforço,
de longe é que te vejo, em filigrana,
no clichê de algum livro ou no remorso
de uma extinta pureza drummondiana.
Só te vejo, Goiás, quando carrego
as tintas no teu mapa e, como um Jó,
um tanto encabulado e meio cego,
vou-te arrumando em verso, em nome, em GO.
Você não vai encontrar nenhum outro livro que consiga louvar o Estado de maneira tão eficiente quanto esse, e não o digo apenas tomando como base o fato de que estamos diante de poemas competentes, ou seja, poemas que se precisam fazer uma referência ou um paralelo clássico, conseguirão fazê-lo com muita felicidade ― mas também tendo em mente aqueles que conseguirão trabalhar o arcabouço do regionalismo com grande felicidade (por exemplo a primeira estrofe de "Geografia do mito": "O saci-passarinho é da pororoca: / canta sozinho, canta na maloca / e canto no oco d'alma do caboclo / da Amazônia.") e aqueles que trarão a linguagem a seus limites.
Desses, os exemplos mais flagrantes e bem realizados são "Etnologia" e "O Mato Grosso de Goiás". Cito apenas o primeiro por questão de espaço:
A i n d a
h á í n d i o s
Mas lembrando que o poema está centralizado e mais ou menos no final da página em branco, a sós.
Outros exemplos poderiam ser dados. É incrível o que o poeta consegue fazer com a simples designação de lugares, e a reflexão que ele empreende sem que se meta a fazer aquele tipo de poesia cerebrina que começa a fazer um monte de perguntas e pseudo-elucubrações sem brilho algum a respeito da ideia do nome próprio. Estou falando do poema "Localidades", do qual cito o seguinte trecho:
E os prefixos que vêm vindo dos princípios de Goiás?
E os que chegam de Goiânia nas campinas e gerais:
Goiandira, Goianésia, Goialândia, Goiatuba,
Goianira, Goianápolis, Goiaporá, Goiataba
e Goiavista, Goianorte, Goiaminas e Goiatins
nessas terras dos guaiases onde o mundo não tem fim?
Quero ler nas palavras o sutil dos estranhamentos,
nomes indígenas, nomes locais que se vão perdendo
em Saciânia, em Sacilândia (Sacilêndea) ou Saciópolis,
cidade onde passeia com seu pé de buriti
a figura ligeira e buliçosa do saci.
Belas são as designações que valem pelo que dizem
em sua estética e estrutura de palavras-valise.
Não chega a ser bem uma corrente crescente na poesia brasileira, mas a ideia de uma poesia conceitual que recorta e redispõe, muitas vezes com alterações mínimas, diversos materiais já existentes, como no caso das transcrições de uma companhia de táxi feitas por Kenneth Goldsmith, são brincadeiras de criança perto do que Gilberto Mendonça Teles consegue, em termos de beleza, sonoridade e encantamento, simplesmente aproximando nomes de cidades.
E se o poeta consegue isso no geral de seu livro, é evidente que quando ele se põe a usar uma forma popular como o cordel, ele se sai muitíssimo bem, e isso por um motivo muito simples: ele não barateia o cordel nem o trata, de antemão, como uma espécie de literatura menos séria. Observe estas estrofes de "Camongo":
Plantei o tempo num pingo,
no pingo plantei meus ais,
nos ais plantei um domingo
e num domingo lilás
acendi o meu cachimbo,
pus no cachimbo sinais
de fama, fumo e fumaça,
misturados por iguais,
e vi saindo a raça
uns sacizinhos reais
que vão espalhando graça
pelos fundões de Goiás.
Acho que já deixei claro o suficiente que o sabor regionalista de um bom poema não se resume a uma aura vocabular feita de qualquer jeito. Aquela coisa imprecisa que nós chamamos de encantamento, e que muitas vezes está contida no movimento imagético do texto e na forma como o poeta explora a sonoridade de termos inusuais, surge aqui de maneira integral e com uma carga poética ímpar. Quando falo de inteligência num âmbito poético, eu falo disso: criar um poema que surpreenda e, enquanto objeto estético, se demonstre preciso e inventivo, sem baratear as ferramentas de que dispõe para incutir os efeitos a que pretende.
*
Mas é claro que se eu saio da década de 50 direto pra década de 80 eu estou fazendo um salto e tanto. Estamos perdendo os momentos mais saborosos da poesia de Regina Lacerda, por exemplo. Aquilo que eu disse de um sabor regionalista que vá muito além da escolha vocabular segue presente na poesia da autora, em especial quando ela faz um trabalho de colagem de cantigas e frases catadas da boca do povo e os amarra num conjunto poético que possui, basicamente, a missão ― que não é nem um milímetro sequer mais fácil do que se possa imaginar ― de manter a máquina lírica ligada o tempo inteiro. "Cantilena da cidade": a citação é longa, mas vai ser na íntegra:
"A cidade é velha e tristonha:
às vezes canta, às vezes sonha".
― É de madrugada.
Pela calçada gelada
Caminha o moleque
contente:
― Que melodia gostosa:
"Bolo de arroz…
quente… bem quente…
Já passou o leiteiro,
outra cantilena
sumiu na esquina.
Esta agora é voz rouquenha.
Ouviu o que anunciou?
― Meio desafinado
mas foi assim:
― "Olha a lenha"…
Um crioulinho sabido,
chapéu de palha
e pé no chão,
calça furada
e voz esganiçada,
entoa
outra canção:
― "Comprá empada"…
Biscoito de queijo
e bolo de fubá
vêm no tabuleiro
cobertos
com toalha
de algodão
muito limpinha,
com franjas de abrolhos
e bordados
vermelhos.
― Ao café do meio-dia
reboa
na quietude das ruas
a voz do vendedor
que
no fundo corredor
de manso anuncia:
"Quitanda"…
À tardinha
(à hora do doce)
a criançada,
recebe
alvoroçada,
com palmas e gritos,
a mais bela toada:
― "Alfinin… pirulito"…
A lua
encontra essa garotada
lambusada,
no meio da rua,
no meio das gentes,
cantando cirandas,
brincando de rodas,
debaixo dos postes,
com a velha canção
que é toda um carinho:
― "Menina, toma esta uva,
Da uva se faz o vinho.
― Teus braços serão gaiola,
eu serei teu canarinho".
E os seresteiros, meu Deus,
como são sonhadores…
Vão bebendo,
vão cantando…
(Como és feliz, trovador,
Um acordo ao violão
E o coração chora:
"Tão meigas, tão claras,
tão belas, tão puras
as noites de cá"…
De um modo geral, depois de Regina Lacerda nós não teremos poemas regionalistas de realização tão admirável quanto este. Uns dois outros nomes seriam dignos de alguma nota. Um é Joaquim Machado, que, segundo José Mendonça Teles, é dono deste poeminha aqui, "Retrato antigo":
No bico
do periquito
um papel escrito
Zenaide
E o realejo tocou
um ermo de canção
― Saudade.
Conciso do jeitinho que eu havia mencionado: um objeto estético apto a incutir sensações sem rodeios ou qualquer excesso que seja. O som entrecortado dos quatro primeiros versos (ou dos dois primeiros recortados em duas metades, caso queira), com três rimas em -ito / -ico que são contrapostas ao som aberto de "-aide", dão um ritmo ágil ao poema, muito bem explorado quando o poeta, nos versos 5 e 6, não dispõe de rimas, buscando, com isso, preparar o leitor para o surgimento isolado da palavra "Saudade" ― que surge, graças à maiúscula, o travessão e o isolamento gráfico, como se fosse ou ao menos possuísse a carga individualizadora de um nome próprio e não de um mero substantivo. É uma rima inteligente, ainda mais quando consideramos que é uma rima com um nome próprio (Zenaide) e num poema que apresenta uma situação certo modo rústica e muito bem montada: nós podemos, por exemplo, pressupor a relação da distância pelo papel escrito que é transportado no bico do periquito e pelo adjetivo "ermo" da canção tocada pelo realejo.
O outro nome é José Ferreira da Silva, com o poema "O boi":
Bicorne da mansidão
passa o boi imenso
nos esteios quatro
da existência
Farinha de ossos
Filé ― queijo ― bife
da mãe
e do filho
Nos homens simplesmente
a vontade
da carne
de sol
Você lê os quatro primeiros versos e acha que está diante de uma espécie de poema que vai empreender mais uma daquelas análises e comparações metafísicas entre a figura do boi e uma espécie de vida do gado que levamos ― algo que é propiciado não só pelos "esteios quatro / da existência", mas, também e muito mais, pelo primeiro verso, esplêndido: "Bicorne da mansidão", ou seja, o boi, seria uma espécie de símbolo ou instrumento de dois chifres da mansidão. Mas nós nos surpreendemos quando esse boi é transformado em carne viva, em alimento, o que redimensiona de maneira inteligente a percepção que até então tínhamos do poema, e aquele desenvolvimento que tinha tudo pra cair na sensaboria e no corriqueiro das metáforas dá a volta por cima. Observe, por exemplo, como "a vontade / da carne / de sol" é trazida para o leitor como uma vontade simplesmente pela disposição límpida dos versos: o primeiro com quatro sílabas (estou contando todas), o segundo com três e o último com duas. Diminuindo, afunilando. A máquina do poema se demonstra tão sensível à ideia apresentada que sua própria forma se redimensiona a fim de se fazer apta a demonstrar o que acontece.