©daniel nebreda

 
 
 
 
 
 
 

substâncias celestes inalteráveis

[cosmic records]



claude d'abbeville

religioso e entomólogo

numa expedição de 1612

no maranhão, está feliz

ao lado de um amigo,

yves d'évreux


longe do país de origem

o que é uma origem ou

quando é uma origem — 

juntos

observam de perto e dão

nomes, com algumas palavras

indígenas do lugar em que

estão, a inúmeros insetos


as grandes borboletas azuis

mosquitos

mutucas 







claude d'abbeville

escreve a historie de la mission

des pères capucins en l'isle

de maragnan et terres

circonvoisines, e publica em

1614, na frança


anota que o ar muda e varia

em diversos graus, é o clima do

mundo, e que no maranhão

sob um ar meridional, vivem

os delicados, engenhosos,

de bons gênios e alegre humor







o perigo é

nascer no maranhão na era das migrações

ser empurrado aos canaviais de são paulo

o corte da cana mais dura

[a sacarose da cana tratada em laboratório]

o trem-fantasma, a belém-brasília

o albergue de beira de estrada

a prostituta paranaense fodida por dez reais

e o que escorre como memória:

cachaça em copo sujo

dívida antes do trabalho

trabalho manual dos canaviais







silenciosas, calmos, em ilhas

muito diferentes: solitários,

despreocupadas, um pode

molestar o outro, assustar e

perseguir, mas ninguém

pode ajudar a nada, a alguém,

nessa troca cansativa, a menos

que se desenrole um livro 

do universo para obrigar-se à 

reverência ou devoção, aprender

o comando e o motim

o quanto antes e desmontar

tudo: em 1590, juntos, os

amigos tasso, patrizzi e 

cremonini conversam: a reflexão

especular da lua a partir da 

luz solar projeta >>>>> a terra

ainda é simultaneamente

redonda, tanto em ferrara

quanto no maranhão








por volta de 1898, quando

rilke escreve a melodia das

coisas, claude d'abbeville

perde de vista seu amigo,

yves d'évreux, e rilke respira

muito devagar: estão

mortos, bem no começo,

com mil e um sonhos

para trás e nada feito


a terra também respira

muito devagar, de 6 em 6

horas, como se fosse uma

imensa e descomunal baleia


figura infinita de livro



[Poemas de O método da exaustão. Garupa, 2020. Sobre o livro: clique aqui]



dezembro, 2020



Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Pasolini: Retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa); Avião de alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart); Maria quer o mundo (Edições SM, 2015, para crianças); A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC, 2014); Geografia aérea (7Letras, 2014); Jogo de Varetas (7Letras, 2012); As mãos (7Letras, 2003/2012); Fazer, lugar: a poesia de Ruy Belo (Lumme Editor, 2011) e Falas inacabadas (Tomo, 2000, um livro-transparência, com Elida Tessler). Coordena a coleção "móbile", de miniensaios, desde 2006 (Lumme Editor) e coordenou a edição da poesia completa de Ruy Belo no Brasil (7Letras). Escreve a coluna "trabalhos no subsolo" para a revista Revestrés.


Mais Manoel Ricardo de Lima na Germina

> Poesia

> Entrevista