substâncias celestes inalteráveis
[cosmic records]
claude d'abbeville
religioso e entomólogo
numa expedição de 1612
no maranhão, está feliz
ao lado de um amigo,
yves d'évreux
longe do país de origem
— o que é uma origem ou
quando é uma origem —
juntos
observam de perto e dão
nomes, com algumas palavras
indígenas do lugar em que
estão, a inúmeros insetos
as grandes borboletas azuis
mosquitos
mutucas
claude d'abbeville
escreve a historie de la mission
des pères capucins en l'isle
de maragnan et terres
circonvoisines, e publica em
1614, na frança
anota que o ar muda e varia
em diversos graus, é o clima do
mundo, e que no maranhão
sob um ar meridional, vivem
os delicados, engenhosos,
de bons gênios e alegre humor
o perigo é
nascer no maranhão na era das migrações
ser empurrado aos canaviais de são paulo
o corte da cana mais dura
[a sacarose da cana tratada em laboratório]
o trem-fantasma, a belém-brasília
o albergue de beira de estrada
a prostituta paranaense fodida por dez reais
e o que escorre como memória:
cachaça em copo sujo
dívida antes do trabalho
trabalho manual dos canaviais
silenciosas, calmos, em ilhas
muito diferentes: solitários,
despreocupadas, um pode
molestar o outro, assustar e
perseguir, mas ninguém
pode ajudar a nada, a alguém,
nessa troca cansativa, a menos
que se desenrole um livro
do universo para obrigar-se à
reverência ou devoção, aprender
o comando e o motim
o quanto antes e desmontar
tudo: em 1590, juntos, os
amigos tasso, patrizzi e
cremonini conversam: a reflexão
especular da lua a partir da
luz solar projeta >>>>> a terra
ainda é simultaneamente
redonda, tanto em ferrara
quanto no maranhão
por volta de 1898, quando
rilke escreve a melodia das
coisas, claude d'abbeville
perde de vista seu amigo,
yves d'évreux, e rilke respira
muito devagar: estão
mortos, bem no começo,
com mil e um sonhos
para trás e nada feito
a terra também respira
muito devagar, de 6 em 6
horas, como se fosse uma
imensa e descomunal baleia
figura infinita de livro
[Poemas de O método da exaustão. Garupa, 2020. Sobre o livro: clique aqui]
dezembro, 2020
Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Pasolini: Retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa); Avião de alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart); Maria quer o mundo (Edições SM, 2015, para crianças); A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC, 2014); Geografia aérea (7Letras, 2014); Jogo de Varetas (7Letras, 2012); As mãos (7Letras, 2003/2012); Fazer, lugar: a poesia de Ruy Belo (Lumme Editor, 2011) e Falas inacabadas (Tomo, 2000, um livro-transparência, com Elida Tessler). Coordena a coleção "móbile", de miniensaios, desde 2006 (Lumme Editor) e coordenou a edição da poesia completa de Ruy Belo no Brasil (7Letras). Escreve a coluna "trabalhos no subsolo" para a revista Revestrés.
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