©andré hoff | casa mário de andrade 
 
 
 
 
 
 
 
 




Introdução



No início dos anos 2000, a professora Raquel Ilescas Bueno, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), propôs um desafio: escrever sobre Mário de Andrade com o mesmo afinco ou com a mesma paixão com que me dedicava a escritores estrangeiros ou a Guimarães Rosa. Para mim, de fato se tratava de um desafio porque eu conhecia muito pouco do homem Mário de Andrade e do escritor Mário de Andrade. Eu teria de estudar muito para produzir pouco e em tempo curto. Em verdade, eu temia repetir estudos feitos por pessoas muito mais gabaritadas que eu ou ainda fazer um compêndio de coisas ditas sobre Mário de Andrade, algo que poderia ser feito por qualquer bom aluno de Letras, um aluno observador e com tempo de leitura. Ao avaliar textos sobre a obra de Mário e sobre o homem Mário, não encontrei, naquele momento, nada alentado sobre Balança, Trombeta. Nem foi muito fácil conseguir um exemplar da obra. Ao ler o texto, tive uma série de sensações, que poucos escritores brasileiros haviam provocado até então. E pensei que ali haveria algo a ser explorado, e que poderia ser expandido, para outros pesquisadores, já que eu não prosseguiria os estudos sobre o modernismo ou sobre o Mário de Andrade que tinha sido o fio condutor de uma disciplina do doutorado.

O texto não saiu como eu desejava, porque se eu tivesse tempo teria escrito uma tese inteira. Mas gostei tanto da experiência que sugeri o conteúdo para um congresso em Macau, conteúdo que foi aceito e cuja roda de estudos eu presidi.

Dia desses, fui verificar os anais do congresso e tive dificuldade em encontrar meu texto. Por esse motivo, decidi republicá-lo, com pequenas alterações obrigatórias, para que seja lido e apreciado pelos pares nesse ano de comemoração dos cem anos da Semana de 22. Logicamente, de lá para cá eu tive outras experiências, de leitura, por exemplo, e sensoriais, como visitar a casa de Guilherme de Almeida, para "sentir" um tanto do que as pessoas que percorreram os pequenos cômodos da casa paulistana deixaram por ali. De todo modo, era hora de rever esse texto e de pensar mais uma vez em Mário, no escritor, no polímata, no homem.

Trata-se de um texto curto para uma dissertação e longo para um artigo. Espero que o leitor aprecie a leitura e que ela traga alguma novidade para os estudos sobre Mário de Andrade e o modernismo brasileiro.


*


"Profanar o improfanável é tarefa política da geração que vem", segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben. Não podemos profanar aquilo que foi retirado do comum dos homens e que não pode ser trazido de volta. Como exemplo, ele cita o caso dos museus e o das cidades que viraram patrimônio histórico da humanidade. Processo similar ocorre com grandes escritores e com obras a que tem acesso um número pequeno de especialistas. Certos escritores, já tornados "clássicos" são proibidos justamente no meio em que deveriam ser discutidos, o meio acadêmico, ora porque caso fossem estudados tomariam o lugar de escritores "menores", ora porque, ao que parece, o acadêmico não teria conhecimento suficiente para estudar a obra de um "grande". Machado, Rosa, Drummond, Mário de Andrade são exemplos disso, notadamente este último, cuja obra ainda não foi totalmente investigada ou que é merecedora de novas leituras, uma vez que o acesso a documentos do homem Mário de Andrade é cada vez mais possível.

Profanar Mário de Andrade — ironia das ironias — parece um desejo que agradaria ao próprio Mário. Profaná-lo não quer dizer achincalhá-lo, jogar lama à sua obra, desmistificá-lo e, sim, trazê-lo ao comum dos homens para que, assim, houvesse outros olhares sobre o homem, o escritor, o polígrafo, o polímata.

Discutimos, então, um Autor neste texto, Mário de Andrade; então, discutimos também tudo que traz consigo, tudo o que foi dito e o que se diz, tendo em mente que há uma contradição nesse dizer, pois que não se pode dar conta desse "tudo". Tão logo se realize, este mesmo texto fará parte de uma rede maior, ele mesmo mais um a atravessar uma noção de "Mário de Andrade". Trata-se também de investigar um texto em particular do Autor, que veio a lume muito tempo depois de sua morte: Balança, Trombeta e Battleship ou o Descobrimento da alma, cujo título já seria extenso e profundo o bastante para ser pensado em outra rede de discursos, nem maior nem menor que a primeira, mais igualmente complexa. Tem-se em mente que o texto foi publicado por conta dos cem anos do nascimento do Autor, com edição crítico-genética da pesquisadora Telê Porto Ancona Lopez1 e que esta característica — ou condição — não pode passar despercebida. A escolha do texto não descortina todo o palco em que atuou Mário, mas permite uma espiadela por detrás das cortinas.

Falamos de um Autor tido como um dos mentores do modernismo brasileiro. Nesse dizer, temos aí uma ideia de que: a) houve um movimento moderno brasileiro e b) que houve um movimento num determinado momento histórico, os anos 1920-19302. Temos em mente que se trata de um polígrafo (quando não um polímata, pois pensemos na dificuldade do próprio Mário em preencher o campo "profissão" nos hotéis, segundo descrição dele mesmo). Temos o Autor do que é hoje um dos textos mais relevantes da Literatura brasileira, Macunaíma, o qual é constantemente mencionado ao lado de Grande Sertão: Veredas e de outros textos e autores basilares. Paralelamente, dentro da vasta rede discursiva que se formou sobre esse sujeito, esse escritor, cidadão, estudioso, polígrafo, encontramos textos que, por si só, encontraram status de investigações precisas sobre Mário de Andrade3. Diante desse quadro — ou dessa muralha — a impossibilidade de se dizer algo novo nos acena como uma uiara verdadeira. Não obstante, o saber caminha, como um rio que não para. As abordagens tão "verdadeiras" dos autores sempre ganham cores novas, novos jogos semânticos, novas possibilidades de interpretação, como o texto pudesse ser reinventado — e o é, de fato — de tempos em tempos. Há muitas teorias sobre leitura, sobre recepção, sobre interpretação — assim como há muita fantasia sobre as possibilidades de leitura das coisas — e não é momento de se fazer um levantamento delas. Mas vale a lembrança.

Este texto procura trazer à tona novidades sobre um texto de Mário de Andrade. Como qualquer outro texto ensaístico, percorre a penumbra. Evidentemente, não é possível ler tudo o que foi escrito sobre um Autor, seja lá quem for, e tal preocupação permeia cada raciocínio presente.

Mas o que se encontra aqui? Uma investigação sobre relações possíveis entre Balança, Trombeta e Battleship e um texto bíblico, Balança, Trombeta e Battleship e um texto de Vieira, relações possíveis entre Mário de Andrade e André Gide, e ainda considerações sobre semelhanças entre variados textos mariodeandradianos.



1 Uma presença vermelha



O título da narrativa pode sugerir uma série de relações intertextuais — e então interdiscursivas —, mas o diálogo com a Bíblia parece, a princípio, a relação mais lógica. A palavra trombeta se insere na Bíblia um grande número de vezes; já balança surge nas traduções para o português em número um pouco menor, mas Battleship — vocábulo cunhado num mundo "moderno" — não é encontrado uma única vez, obviamente, o que já traz a primeira (esta por oposição) de uma vasta rede de estranhezas a respeito deste texto de Mário de Andrade: Balança, Trombeta e Battleship ou a Descoberta da alma, doravante chamado BTB. De uma tradução a outra, de uma língua a outra, a variação numérica das aparições dessas palavras no texto bíblico é pequena; entretanto, mesmo para quem conhece pouco do texto bíblico, viriam à mente textos como os dos profetas ou um texto em especial, como não poderia deixar de ser, o do Apocalipse, por mera aproximação semântica. De fato, os vocábulos lá estão. Agora, a pergunta que se faz é: se existe a relação intertextual — por mais tênue que seja — qual seria a relação interdiscursiva, ou seja, qual seria a relação mais profunda que a da superfície do texto? Mas a questão ainda não seria resolvida de todo, pois faltariam ainda algumas eliminações. Segundo a crítica, historiadora e pesquisadora Telê Porto Ancona Lopez, deveríamos nos interessar pelas vezes em que trombeta e balança mostram-se vizinhas a Josafá4 — nome tomado de empréstimo a uma personagem "real", a partir do qual teria tomado forma toda a história do processo narrativo de BTB — ou ainda na presença do termo Juízo Final, epíteto pouco simpático dado à rainha do café na viagem empreendida por Mário de Andrade, em 19275. Disso resulta que, de todos os livros das Sagradas Escrituras, restam-nos, então, não Revelação ou os livros dos profetas — nos quais o nome das meninas nos viria à mente como algo natural, surgindo em meio a metáforas sobre o fim dos tempos, como visto —, mas sim Joel. Nesse livro do Antigo Testamento, surge pela primeira vez a questão do juízo sobre as nações: "Naqueles dias e naquele tempo, quando eu restaurar a sorte de Judá e de Jerusalém, congregarei todas as nações, e as farei descer ao vale de Josafá"6. Este rei é citado várias vezes, posteriormente, e sua história é narrada em pelo menos dois livros, 1 Reis 22: 41-54 e 2 Crônicas 17, 18, 19, 20 e 21:1. Mas nada da vida do monarca estabelece relação com o texto de Mário de Andrade7.

De qualquer forma, a descrição do lugar em que moram as meninas e onde as encontra Battleship remete mais ao paraíso do que ao Vale de Josafá8, não fosse a presença do nome Juízo Final, com o qual as meninas chamavam inocentemente Maria, a suposta mãe de uma das meninas, algo que Battleship não podia entender (pois, ora, eles viveriam a ingenuidade edênica, segundo esse caminho de análise). A presença do nome "Juízo Final" remete ao Apocalipse, certamente. Nesse livro, a palavra "trombeta" surge diversas vezes: há inúmeras9 trombetas a anunciar diferentes acontecimentos no fim dos tempos.  São as principais aparições do termo: 1:10, 4:1, 9:1 e 13:1, 11:15. Em 9:1 e 13:1, as trombetas (quinta e sexta) anunciam justamente a morte dos viventes. Diante disso, uma complicação se impõe se quisermos investigar cada elemento de uma possível relação entre o texto de Mário com esses trechos, uma vez que é Balança e não Trombeta aquela que aponta a morte da ingenuidade, e aquilo que a água levará posteriormente. Ou seja, Trombeta não seria a personagem metaforicamente (ou metonimicamente) tomada como "aquele (a) que mostra ou anuncia". No mesmo território de análise, poderíamos pensar que o termo "trombeta" tivesse sido escolhido (num momento histórico que não poderíamos precisar de modo algum) para identificar aquela que traz o cavaleiro10, mas o território dessa especulação é bastante móvel. Já o termo "balança" surge apenas uma vez no Apocalipse — e nenhuma vez nos outros trechos — na mão de um dos cavaleiros do Apocalipse, o do cavalo negro11, sendo que tal símbolo não é explicado no livro. Mas sabemos que a balança está intimamente ligada à ideia de julgamento, não apenas na iconografia e na simbologia judaica ou cristã. Lembremos que é justamente Balança quem "julga" o comportamento de Trombeta, para ela uma "senvergonha". Porém, na Bíblia, é o arcanjo Miguel (literalmente "o amado por Deus, ou em Deus") que julga, após ter ouvido a última trombeta e ter lutado com o Mal. Miguel é representado desde a Renascença com uma balança e uma espada em punho12.

Em Apocalipse 20:1, surge "o rio da água da vida", que remete ao primeiro livro da Bíblia. Não custa lembrar que, no entendimento cristão, a Bíblia "fecha-se" em si mesma, ou seja, retorna ao princípio, assim como seus ritos (a missa é um retorno ao primitivo13) e assim é como a patrística entende as próprias palavras de Cristo: ele é alfa e ômega, o princípio e o fim. A narrativa de Mário também finaliza com um rio — de chuva — que teria levado a ingenuidade dos três.

Parece haver um jogo metafórico com a palavra "revelação" e os acontecimentos da narrativa. Paralelamente, há outro recurso similar, com a ideia de descoberta (do começo, em alfa) e de fim (dos tempos, do ômega). Há ainda a descoberta do pecado (do começo) e o julgamento (do fim). A descoberta, tanto de um quanto de outro traz sofrimento, o que é de senso-comum na vasta massa discursiva do cristianismo. Depois, isso será verificado de acordo com o pensamento de Freud, ao menos de modo provisório e para abrir a discussão.

Supondo que a narrativa dialogue com o Gênesis, é caso de verificar presenças. No primeiro livro da Bíblia temos a voz divina, a criação do mundo e dos animais e a criação do homem: Deus cria o homem "à nossa imagem, conforme a nossa semelhança"14 e "macho e fêmea os criou15". Depois criou Eva, que foi extraída de Adão, de uma costela16. Em Gênesis 3 surge a serpente, que tenta a mulher a experimentar o fruto da árvore do Bem e do Mal, animal que é condenado por Deus a rastejar. Na narrativa de Mário de Andrade, há um elemento a mais, pois há três mulheres. Poderíamos supor que Battleship = Adão e que Trombeta = Eva, mas como designar Balança? E Maria? Primeiro, pensemos que Maria seja Deus ou a consciência divina, o olho que tudo vê, a onisciência e a onipresença17. Há pelo menos duas hipóteses interessantes: a) designar Balança como a serpente, o que poderia ser entendido nos trechos "sentada numa raiz" mas principalmente "enroscada num tronco áspero como ela"; b) designar Balança como Lilith. Esta segunda possibilidade é questionável porque os trechos citados do Gênesis são grande problema para o entendimento do texto sagrado, pois abrem a possibilidade de ter existido antes de Eva um ser andrógino, como ocorre em outras mitologias18. Tanto os místicos, os exegetas, os leigos, durante séculos, debateram se Adão teria sido um ser duplo (ou hermafrodita). Para a patrística e para os sábios judaicos ortodoxos, essa possibilidade sequer é discutida19. Porém, há infinitos textos apócrifos a tratar do assunto e seria caso de lembrar que na contracultura a figura de Lilith teve vasta recepção nos discursos feministas. Outro problema é que não podemos saber se o Autor terá lido textos talmúdicos ou rabínicos nem se teria pensado em utilizar os discursos orais sobre as possibilidades de se entender a figura de Lilith: a presença em Adão do feminino, um demônio sumério que rouba sêmen para que nasçam demônios, aquele(a) que "aponta o mal". Em textos de célebres mitólogos, a questão de Lilith é menor; então, preferiu-se discutir tal possibilidade num momento posterior. De qualquer forma, há pelo menos duas mulheres nesse lugar que supomos edênico na narrativa de Mário de Andrade. Embora as diferenças discursivas que possa haver entre BTB e Macunaíma em relação a seu território de ação, em Macunaíma há inúmeras metamorfoses, o que nos obrigaria a pensar que em BTB as personagens não poderiam ser identificadas com uma marca imóvel e peremptória. Por que pensar em Balança ou Trombeta como Eva? Poderíamos pensar que ambas viviam o paraíso da inocência (na narrativa, por diversas vezes, as três mulheres são mostradas como "sem consciência") e que Battleship mostrou a elas o caminho do "mal", o "caminho das sombras". Então ele seria a serpente. Esse vai e vem, esse jogo em BTB, evidentemente, ocorre de modo diverso do que em Macunaíma, pois aqui temos a metamorfose propriamente dita, ou a transformação ou ainda a falta de coerência do sonho (em oposição à vigília da psicanálise). Nenhum elemento de BTB faz dela uma narrativa surreal ou no plano narrativo do mito.

Entretanto, há mais um complicador nesse diálogo com o outro texto: Trombeta, ao sair do banho, sai "esguia, quase um silvo, um silvo sim de cobra". Seria ela nossa serpente ou nosso princípio feminino? Seria ela a que aponta ou aquela que anuncia? Todas as hipóteses se mostram possíveis, unidas duas a duas, todas juntas, apenas uma.

Para finalizar esta investigação sempre limitada sobre a questão bíblica, passemos a falar de Maria. O nome por si só traz à mente a mãe de Jesus. No "diário" de Mário em pleno Amazonas, há a referência a D. Olívia Guedes Penteado como rainha do Brasil, rainha do café e ainda como Nossa Senhora, de onde vem, talvez, a ideia de Maria. De qualquer forma, isso não tem tanta relevância porque a mulata Maria parece sentada — em seu paupérrimo trono — como o Juízo Final, como já esclarecido. Na tradição judaico-cristã, Deus não se manifesta, embora tenha uma voz, que tanto provocou discussões ao longo dos séculos sobre qual língua falaria, entre outras coisas, mas sempre sem forma manifesta. Para a cristandade, Deus, todavia, é onipresente e onipotente e esta realidade divina é um dogma para os cristãos. Podemos supor que Maria tenha essas qualidades, pois seu olhar é descrito como vigilante e censor. As meninas a temem e necessitam de sua aprovação, sendo a cena dos doces a mais representativa da questão. A comparação termina aqui, pois não é Maria que percebe algo inconveniente, pecaminoso ou estranho na cena do banho. Ao contrário, aquela que deveria proteger — ou punir — é justamente a indiferente ou a interesseira, como diria o próprio Mário, utilizando um vocábulo "tipicamente brasileiro".

À guisa de uma pequena conclusão: a relação intertextual, como sugere o nome, aponta textos mas não esclarece as relações interdiscursivas. Em nosso caso, há pelo menos dois complicadores: a) o fato de uma relação intertextual/interdiscursiva transformar um enunciado dado em enunciado novo — e, portanto, num discurso novo; b) o fato de a vasta rede de relações intertextuais/interdiscursivas de Mário eclipsar uma solução que poderíamos, num momento de fraqueza, crer verdadeira.

Também seria interessante lembrar outra Maria, a Imaculada Conceição, que pisa a cabeça da serpente. Fora das descrições do Gênesis, tal imagem surge séculos depois, e tal devoção não passaria despercebida a Mário.



2 A corça e o tigre



Se a referência de Mário era Antônio Vieira e não o Gênesis, como aponta Telê Porto Ancona Lopez, então seria caso de encontrar o sermão em que Vieira trata do Vale de Josafá e do Juízo Final. Trata-se do Sermão da Primeira Dominga do Advento, proferido na Capela Real no ano de 1650. Nesse sermão, Vieira narra os acontecimentos do Juízo20, após a terra ter se "convertido em cinzas", ter sido "abrasada". Primeiro, haveria uma separação por grupos (santos, papas, reis, pessoas comuns) e depois uma separação do bom e do mau (entre marido e mulher, entre pai e filho, entre irmãos, entre amantes). Os salvos nasceriam de novo (ou morreriam de novo) para a eternidade e os condenados morreriam mais uma vez, no inferno. Vieira questiona, ainda, dos tipos de pecado, o de omissão e o de consequência. O trecho em que trata de amantes e que parece relevante é:


... se depois de tanta Majestade e adoração nessa vida, vier um Anjo e tomar pela mão, e o tirar para sempre do número dos que se hão de salvar: Separabunt malos de medio justorum.

Por este modo se irá continuando a separação dos maus em todos os estados do mundo; e naqueles em que por razão do sangue e do amor é mais natural a união, será mais lastimoso o apartamento21.


Da mesma forma como no texto bíblico, a palavra "trombeta" é citada algumas vezes, com o mesmo sentido (ou semelhante função bíblica); já "balança" surge apenas uma vez, no plural, sem especificação relevante.

Ora, tanto na Bíblia quanto nos sermões são citados dois nascimentos, o do Gênesis e o do Apocalipse (cuja separação de almas será feita justamente no Vale de Josafá). No primeiro nascimento, o homem nasce para sofrer e no segundo, nasce para viver, podendo também morrer uma segunda vez, se condenado. No Éden paulistano, temos nascimentos e mortes, escolhas e destinos, anunciados e julgados em uma balança. Até onde se encontra a narrativa (pois nada impede que ela pudesse prosseguir), temos um encontro e uma separação, desenhada pela "primeira lágrima feminina" de Trombeta. Nesse momento, a menina está vestida de azul, como um anjo, ou melhor, "como um anjo brasileiro", amestiçado, lembrando os anjinhos das procissões do interior, ou, em nosso caso, dos anjos da tradição católica22. Mas a cor carregada pela menina (que houvera sido encontrada em vermelho, malgrado ser um vermelho esmaecido daquela que pode conhecer o amor em seu aspecto carnal, mas ainda não o terá experimentado), azul, é a cor tradicional de Nossa Senhora da Assunção, por exemplo. No Gênesis, não temos referência a Nossa Senhora, mas na iconografia cristã muitas representações de Nossa Senhora mostram-na a pisotear a cabeça da serpente, devido a esta passagem: "E inimizade porei entre ti e a mulher; e entre a tua semente e a sua semente; ela te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar23". É muito interessante pensar em Trombeta, nesse momento, como a virginal e em Balança como a pecadora. Mas o mais interessante é perceber nas meninas a intuição de Mário (presentíssima em outros textos seus) sobre a impossibilidade do maniqueísmo24, o que transformaria a relação com Vieira em mera questão textual (vocabular, principalmente, ou enunciativa, se é possível dizer assim) e não discursiva.

Não obstante a menina sair como um anjo na visão onisciente do narrador (e não de acordo com a visão de Battleship), o texto de Vieira nos conduz para uma possibilidade interessante: a de pensar Battleship como aquele que faz a separação no Vale de Josafá, ele, então, o Anjo. Vieira frisa que, após a separação entre pares, como dito, virão os anjos do Senhor, a separar os bons dos maus. Aí, Battleship é o psicopompo (aquele que conduz) mas também é o anjo que separa Balança de Trombeta, podemos imaginar, mas não aquele que separa os bons dos maus, e sim os limpos dos imundos, no sentido literal, e ainda os iguais a ele, pois que se vira (enxergara-se) numa das meninas, ao primeiro encontro de ambos25. A par com isto, pode estar o caráter daquele que ensina, que traz a luz (anjo, Prometeu, Hermes, professor), característica ambígua e comum a outras personagens de Mário, como Elza, de Amar, verbo intransitivo, e a professora de Atrás da catedral de Ruão, como se discutirá mais tarde.

Os bakhtinianos nos ensinaram que todo texto é um processo infinito de interlocução, e o texto de Mário de Andrade não poderia escapar a essa, digamos, realidade textual ou discursiva, mas, no caso de Mário de Andrade, tratamos de um polígrafo, preocupado com a fusão de discursos e com uma estética voltada para questões de avaliação e investigação da grande massa de discursos que seriam o Brasil e os brasileiros. Dada a vastidão de preocupações eruditas do Autor (música, literatura, saber popular, estética), é com certo conforto que podemos fazer tantas alusões, lembrando que são possíveis e não uma peremptória questão de verdade.

Na narrativa de Mário de Andrade, as meninas teriam criado os apelidos estranhos por conta de um sermão, ouvido aos pedaços numa igreja qualquer. Essa "igreja qualquer" com um "orador qualquer" a proferir um discurso semelhante ao de Vieira é mais uma das possibilidades de entendimento do texto de Mário, brasileiro, moderno, amante também do barroco e do popular, daquilo que se ouve na rua e do que se copia descaradamente de fora (apropriação, diga-se de passagem, nem sempre elogiada por ele).

Em Vieira, temos ainda o discurso sobre dois tipos de pecado, o da omissão e o da consequência, como citado, afora o fato de não haver privilégios na escolha dos homens, eruditos ou não, ricos ou não, papas ou não. Pergunta-se Vieira: "não sabei que os levantados e os condenados têm a mesma medida?", logo depois de haver afirmado: "bem pudera Deus fazer que nascessem os homens todos iguais". Esta questão da igualdade é extremamente relevante num autor como Mário, que sempre defendeu — claro que às vezes de forma ambígua — a brasilidade. Elza, por exemplo, em Amar, verbo intransitivo, despreza os brasileiros. Sua presença no Brasil dá-se, como a de outros alemães, porque a Alemanha estava "quebrada" após a Primeira Grande Guerra. Elza sabe que os latinos são seres inferiores, pois não apenas leu sobre isso (que foi discurso corrente do século XIX para o XX e base para ideologias da direita europeia), como sente isso. Certamente, Elza não pode entender seu amor por Carlos, então passa a encontrar no jovem forças, como a do físico de atleta e do pundonor diferente daquele do pai. Mas Battleship vê logo seu desprezo pela menina dissipar-se e ele não vê diferença entre as meninas, embora sua excitação surja com a segunda, que se banha. Não temos uma avaliação profunda de seus sentimentos, mas sabemos que ele "se viu" e isso nos basta, por ora. Em uma singela passagem da narrativa, Battleship ajoelha-se no chão (para ele quase um absurdo, devido à sujeira) para auxiliar uma das meninas, igualando-se a ela, colocando-se no mesmo nível.

Quanto à questão dos pecados, os dois trechos mais relevantes em Vieira são:

 

A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo: e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa; ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado26.

E:

Pecados de consequência é o segundo escrúpulo. Há pecados que acabam em si mesmos; há outros que depois de acabados ainda duram em suas consequências (...) porque os passos passam, as pegadas ficam. O que fica dos pecados é o que Deus mais particularmente examina. Não só se há de nos pedir conta dos passos, senão das pegadas. Não só se nos há de pedir conta dos pecados, senão das consequências27.


Quase irresistível questionar se Battleship, para não incorrer no pecado da omissão, teria pecado por consequência. Se a pergunta é meramente possível, sabemos que não, que não teve escolha, que se deixou levar menos pelos instintos que pela naturalidade. Se seu "pecado" tiver (ou tivesse) continuidade, jamais saberemos. Em versões mais antigas da narrativa, uma das mulheres se tornou virtuosa e outra perdeu-se.

Por fim, há a ideia de um lugar onde haverá o Juízo (onde, de acordo com Vieira, caberão todos os homens que viveram sobre a Terra, não obstante a pequenez do Vale). Em BTB, temos o lugar singelo, pequeno, quiçá, e as pessoas a serem julgadas, a serem salvas ou a serem condenadas, enfim. É um Éden-Vale de Josafá, onde é possível nascer e morrer ao mesmo tempo, o que é a fusão ousada de um diálogo com o texto sagrado, passando ou não por Vieira28.



3 O caminho velho da borda do campo



3.1 Como convém aos exilados



No começo da narrativa, temos dados curiosos. Um jovem solitário, sem pais, aos dezessete anos tendo já a experiência de duas prisões. Entretanto, o narrador nos informa de que há poucas informações sobre o rapaz, como se seu passado não nos interessasse. O primeiro contato com algo que seja brasileiro é uma festa, o que poderíamos chamar de traço conhecido do Brasil, um lugar comum que liga "Brasil" a alegria, festa, carnaval, etc29. Ocorre que a festa não tem — como poderíamos supor — aguardente brasileira e, sim, café. E uma festa regada a café é, ao menos, curiosa. A placa, em português, informa isso: "Café do Brazil", grafado com "z", grafia comum até a mudança ortográfica de 1943 e discutida por Mário em vários momentos de sua escrita. De qualquer forma, é de se perguntar se a expressão é em duas línguas, pois o Autor não escolheu um sintagma do tipo "Brazilian Party" ou "Brazilian Coffee". Até o momento, o rapaz nada conhecia (conheceria) da língua portuguesa, como se verá além. Na festa do café, o protagonista desenvolve suas habilidades, sem um "olho" que o vigie, porém vale lembrar que, se Juízo Final teria sido num momento primitivo alusão à rainha do café (como se supõe das anotações do próprio Autor), é curioso que o rapaz encontre justamente uma "festa do café" em Londres. A ponte que liga os dois pontos não é clara nem evidente, de fato, apenas nos acenando de longe. Evidentemente, outro discurso subjacente a esta circunstância é a própria situação do café brasileiro em relação aos interesses ingleses. Deixando de comprar café brasileiro para importar o chá indiano ou cingalês, a Inglaterra deixou de comprar parte do café brasileiro, e é conhecido o investimento inglês no Brasil, em vários setores da economia. É bastante curioso não apenas o fato de o rapaz não conhecer o café como é relevante o fato de tê-lo considerado mais saboroso que o uísque, bebida de alto teor alcoólico como a cachaça (que sequer é mencionada). O rapaz suspira "pela primeira vez", o que faz iniciar uma grande rede de descobertas. Paralelamente, temos mais um jogo sutil de insinuações: um rapaz pobre e marginal num país tão rico e tão poderoso quanto a Inglaterra não deixa de ser intrigante, assim como seu pretensioso apelativo, Battleship, o mais poderoso dos navios de guerra. Não é necessário recorrer a textos muito raros para saber o quanto a marinha de guerra inglesa foi poderosa (e ainda o é, bastando lembrar o episódio da defesa das Falklands, quando a Inglaterra enviou para as ilhas uma esquadra poderosíssima) e o apelido do rapaz nos remete a essa grandeza de seu tempo, mas também a uma poderosa ironia. Mais tarde, ao ver a menina pedinte, Battleship ver-se-á um pouco nela, e não pensará em glórias antigas da grande nação portuguesa, que um dia haverá mostrado ao mundo uma poderosa armada, e sim no quanto são parecidos, na pobreza, na tristeza, na solidão quiçá, mas sobretudo na falta de perspectivas ou na ilusão de um mundo cuja presença do outro massacra.

Na mesma festa, o rapaz não se interessa pelo que considera semelhante ao do Velho Mundo. Seu interesse recai sobre uma "selvagíssima paisagem verde e amarela, dum calor de esporte, índios, redes, palmeiras e ele rei sem medo", maravilhado com a seara30. Esse desejo de um inglês não seria novidade, fazendo eco a muitos outros desejos de antes, de navegantes do período das descobertas, de aventureiros interessados em descobrir o El Dorado ou a sagrada arca, de sacerdotes e missionários encarregados da conversão de infiéis, de artistas viajantes, dos viajantes que hoje poderíamos chamar cientistas, e que nos deram as bases para muitas das ciências em voga ainda hoje. Não deixa de ser relevante o fato de a festa comemorar a Proclamação da República. Em São Paulo, Battleship encontrará Balança em outra comemoração, a da Independência. Haveria um mistério nessas revelações? Primeiramente, Battleship descobre o Brasil; depois descobre algo mais no Brasil. A presença da menina em São Paulo (semelhante a Londres em vários aspectos, na fantasia ou não do discurso de Mário) é o encontro de um dos muitos espelhos que refletirão a face de Battleship.

Há um vácuo de (quase) dois anos, quando o protagonista faz um périplo pelo Mediterrâneo31. Vai ao Egito — então um protetorado inglês32 — e depois regressa doente à Inglaterra. Depois, resolve voltar ao Egito e, para tanto, consegue um trabalho de "stewart"32 num navio, mas foge em Lisboa, indo para Madri e depois Barcelona. Numa das versões do Autor, o protagonista rouba pessoas no Alhambra, mas na versão de que nos ocupamos essa aventura foi suprimida, o que não diminui o caráter satírico, como propõe Bakhtin sobre heróis desse tipo, das aventuras do jovem inglês33. Quanto ao Egito, não seria novidade a presença de um europeu no Norte da África. Tanto os relatos históricos quando os ficcionais tratam de viagens à região. Para citar somente um autor caro a Mário de Andrade, há o caso de André Gide, que não apenas conhecia a África árabe como situou uma de suas mais famosas narrativas justamente na Tunísia. A narrativa gideana é extremamente erotizada, mergulhada numa atmosfera de medo e de pecado, muito semelhante ao tom final deste relato de Mário de Andrade. Tal comparação força aqui um longo adendo.

Battleship faz ecoar um sem número de fantasias a respeito desse nome: Melville, Stevenson, Dickens talvez, e sua grandiloquência é forte o bastante para plasmar a ele a própria grandeza da Inglaterra, país mais poderoso do mundo à época da escrita da narrativa, mas talvez seja Dickens o Autor mais próximo das potencialidades de sua interpretação. Em Dickens há uma pureza ainda não maculada pela descoberta do Mal, o que não ocorre em Stevenson ou Melville, principalmente35. Mas é hora de fazer comparações, por mais ousadas que possam parecer. Comparar Mário a Gide surge como um contrassenso, mas uma aproximação entre eles pode ser possível. Vejamos. Em O imoralista — talvez a obra mais conhecida e de influência do jovem Gide — Michel casa-se sem amor com Marceline. Numa viagem ao norte da África, feita em decorrência da frágil saúde do rapaz, Michel descobre um mundo estranho, de belezas e interesses. Marceline convida para o quarto do casal jovens tunisinos que fazem trabalhos manuais. Michel encanta-se com alguns, apaixona-se ora pela beleza, ora pela saúde dos rapazes, a ponto de não se importar com um roubo cometido por um dos jovens, Bachir. Na Itália, beija um jovem siciliano que se deixa ser beijado. Seu amor por Marceline é uma contingência de sua situação social e não pode ter continuidade. Após deixá-la, vive um misto de culpa e de inconformismo. Em A sinfonia pastoral, um rapaz auxilia uma "alma piedosa, pobre e abandonada", uma moça cega. Ajuda-a e encontra cura para ela. Nesse processo, acaba por se apaixonar, mas teme que ela entenda mal seus sentimentos. Já em A porta estreita, Jêrome e Alissa se amam, mas a consumação do amor de ambos é impossível, pois Alissa é atormentada pelo passado da mãe. Sua fé religiosa não permite que possa ser feliz ao lado de Jêrome. O amor só será possível e feliz numa obra posterior de Gide, Os moedeiros falsos e de forma curiosa, entre tio e sobrinho e, ainda assim, um amor às escondidas. A atmosfera das primeiras narrativas de Gide é absolutamente arrasada por uma moral religiosa cristã. Ora o amor é impossível porque se inicia estéril, ora porque há um muro (ético) intransponível entre os amantes, ora ainda porque existe uma culpa antidiluviana que separa as almas. Não obstante a prosa de Gide (principalmente a dessas narrativas) ser arrastada e requintada, a construção de suas personagens é absolutamente moderna. Não há o que poderia se esperar das personagens românticas e nem mesmo o que se esperar de uma "coerência de sentimentos". Nesse aspecto, ecoam muitíssimo na Elza de Amar, verbo intransitivo. Por isso, as narrativas de Gide foram comparadas a obras expressionistas, como assinala Giulio Carlo Argan: "para André Gide (o equivalente literário de Matisse, apesar de incompreendido pelo pintor), a obra literária é um sistema autônomo e fechado, cuja lei estrutural não consiste de verossimilhança dos eventos narrados nem na coerência psicológica dos personagens36".Dentro do projeto estético de Mário de Andrade, interessa-nos justamente essa falta de "coerência dos personagens" e também a atmosfera de culpa-castigo existente, principalmente porque se percebe que o amor em Mário é quase uma impossibilidade. Disso resulta que procurar coerência nos gestos de Battleship é algo infrutífero37. Deixamos claro que tal aproximação é meramente informal. As citações de Gide, feitas aqui e ali, por Mário, não nos dão certeza da influência (ou da presença) de Gide na obra do autor brasileiro. Pensa-se, sim, em algo maior, na questão dos discursos que fazem parte do próprio modernismo, antes de mais nada. Aqui finaliza-se a digressão.

Em Barcelona, temos um primeiro gesto de caridade. Ele pensa em doar o casaco a uma senhora e desiste, uma vez que o casaco levado ao braço fazia dele alguém elegante. Tal característica é lembrada quer em Londres, quer na Espanha e será um desafio em São Paulo (terá de disfarçar o que chama a atenção) e ainda na convivência com as meninas sujas. Nesse país — a Espanha — resolve tomar um navio para Buenos Aires, ainda conhecida como a Paris da América. Importante frisar que as aventuras de Battleship passam por importantes cidades portuárias (exceto Madri), o que explicaria parte de sua personalidade. Portos são cidades movimentadas, por onde passam as riquezas, são lugares de todo tipo de facilidades (prostituição, gente aglomerada, diversidade, facilidades linguísticas, etc., do que se falará mais tarde).

A primeira aventura no Brasil deste personagem até então à Dickens fica por conta do amigo marinheiro. Não há nenhuma menção a algum interesse sexual do marinheiro em relação ao jovem Battleship, mas o jovem se sente incomodado. Não podemos supor até que ponto haveria algum interesse do Autor (ou do narrador) em trazer subjacente uma possível situação homoafetiva, porém relatos literários não nos faltariam se precisássemos de suporte para este questionamento, valendo lembrar pelo menos dois, o já citado Billy Budd, de Merville, e Bom Crioulo, a narrativa brasileira. Neste momento, o rapaz seria virgem, mas podemos imaginar que sua vida pregressa (com já "duas prisões") já devesse dar-lhe uma visão dos "perigos" possíveis do mundo, e saberemos disso depois, quando são mencionadas as prostitutas londrinas, com as quais não tinha nada além de toques de mão e talvez beijos. De qualquer forma, Battleship mostra-se o tempo todo inseguro com o olhar, seja ele qual for. Várias são as vezes na narrativa em que ele se queda terrivelmente descontente com o olhar alheio — ou como a presença do outro — até mesmo porque a presença do outro não cai bem com a profissão do jovem. O rapaz sente "uma estranha nostalgia de sofrer", todavia, e vê "nos transeuntes a figura fatigante do companheiro38".Tal dúvida — que parece ir ao encontro da atmosfera lúbrica dos portos, evocada nos textos citados — não é novidade em Mário de Andrade: tem nas proximidades o exemplo de Frederico Paciência, em suas angustiantes dúvidas e incertezas. De qualquer forma, o ocorrido apenas intensifica a atmosfera de pecado-amor-sedução-descoberta que fica mais intensa à medida que a narrativa cresce. Esse efeito não se manifesta apenas no âmbito da sexualidade, pois surge em outros campos, em outras descobertas, do mundo, das pessoas, de si mesmo, do paladar, das possibilidades do agir, como se a pequena narrativa fosse um romance de formação condensado. Aqui, mais uma vez as descobertas lembram o texto gideano (guardadas as devidas proporções, como o interesse de Mário por uma escrita mais popular, por exemplo; embora a limpidez dos textos de Gide, ele não se deixou levar pelas aventuras modernas de investigação da escrita, como mencionado em nota), principalmente se pensarmos no efeito do acaso na vida das pessoas, como no texto Os moedeiros falsos, produção posterior a BTB. Mas voltemos ao Battleship de Mário.

O Brasil é um país de "abraços", de proximidades que permitem ao profissional uma vida de êxitos. Este discurso sobre a felicidade e a proximidade dos brasileiros frequenta muitos textos de Mário (a ideia de um "povo cordial" virou lugar-comum em muitos discursos, aliás), e já se transformou também em lugar-comum sobre o Autor. Mas Battleship se pergunta pela primeira vez pela língua dos brasileiros. Reparemos que esta preocupação não o assaltara no Egito ou na Espanha e não o preocupara quando de sua tentativa de ir a Buenos Aires. Mas aqui a ironia continua marca do texto, e os brasileiros, além de cordiais, "advinham todas as línguas do mundo", talvez sendo bastante passivos em relação ao estrangeiro — e poderíamos nos perguntar se mais em relação aos estrangeiros europeus. Nessa época as crianças que podiam estudar aprendiam francês nas escolas, talvez latim, e só muito depois o inglês viria a ser língua obrigatória nos bancos escolares brasileiros. É lugar-comum também afirmar que o brasileiro se esforça para entender os estrangeiros, mesmo no próprio território brasileiro, e que os estrangeiros não se esforçam para entender o português. Ainda na linha dos lugares-comuns sobre os brasileiros, eles apresentam "uma tal sensibilidade nos corpos" que fica difícil a ação do batedor de carteiras. Então, resta-lhe roubar estrangeiros, que não apresentam uma ginga, uma malemolência típica, ao menos, do fluminense, ou daquele que mora no Rio de Janeiro.

Se Minas Gerais não é terra para boas searas — afinal o ciclo do ouro havia acabado havia tempos — São Paulo seria seu El Dorado. Os paulistas não apresentariam a esperteza dos cariocas e ainda seriam mais generosos quanto aos espaços ociosos da carteira. São Paulo é uma terra de arranha-céus, e é cosmopolita, como Londres, com policiais "circulando com poses fotográficas". Neste texto, talvez como em nenhum outro de Mário, há uma preocupação muito grande com representações que são típicas do universo fotográfico. Curioso notar que a cidade de São Paulo desde a década de 1880 tivera inúmeros registros fotográficos e que houve o que hoje se convencionou chamar de "febre fotográfica"39 nas grandes cidades brasileiras do século XIX. Algumas passagens, como esta dos policiais, parecem descrições de fotografias, como se pode constatar pelas fotos "fabricadas" de situações típicas da cidade. Embora haja uma preocupação quase doentia do fotógrafo em registrar ruas nuas — o que seria mais belo ou mais verdadeiro após a primeira preocupação, a técnica — centenas de fotografias mostram justamente o movimento de pessoas e ainda personagens típicas das cidades, como vendedores diversos, policiais, pobres, etc. É do conhecimento de todos a paixão de Mário pela fotografia, ele mesmo um fotógrafo extremamente interessado na fotografia como registro pessoal, etnográfico, de memória, enfim. A ligação dos textos de Mário com a fotografia ou com o cinema já foi algures mencionada, mas não há até agora um estudo profundo sobre tais possibilidades de interdiscurso. Fica aqui, então, apenas um registro para, talvez, trabalhos posteriores.

De volta ao personagem Battleship, percebemos que ele guarda semelhanças com outra extraordinária invenção literária de Mário, Elza. Ambos são estrangeiros, ambos têm uma profissão estranha, incomum ou antiética aos olhares burgueses40 (e não apenas aos olhares burgueses de sua época), têm respeitável diferença de idade em relação ao objeto de seu amor (amor?), guardam relativa distância desse objeto amoroso, ora o rejeitando, ora se aproximando dele, mas sempre sem entendê-lo; se Elza muitas vezes é a figura materna, Battleship é a paterna, mas seus amores são anticonvencionais (mas não confundamos o amor de Battleship ou o de Elza — aqui abertamente nomeados como tal — com pedofilia) e, talvez por isso mesmo, não compreendidos, embora sejam em essência diferentes entre si, se tomarmos a distinção freudiana entre amor de posse e amor de identificação; ambos têm facilidade de adaptação, tanto linguística quanto em outros níveis (o que no discurso sobre Elza parece ironia em relação à supremacia europeia, o que fica atenuado em Battleship, talvez pelos interesses discursivos entre os dois textos). A profissão de Elza "se resume a ensinar os primeiros passos, a abrir os olhos"; ela sabe que o "nobre destino do homem é conservar-se sadio"41. Na produção escrita de Mário encontram-se contradições muito interessantes: por um lado temos o moderno que não refuta os caminhos possíveis da modernidade europeia; ao mesmo tempo encontramos um discurso pela procura do que seria brasileiro, verdadeiramente brasileiro, o que poderia ser encontrado na cultura popular. Curiosamente, no discurso de Mário temos a oposição entre o popular e o erudito, o que seria colocado em xeque pela crítica muito posterior a Mário, mesmo se deixarmos de lado as discussões bakhtinianas sobre cultura de massa e ainda a influência dos alemães, apenas absorvidas décadas mais tarde. Se Mário foi xenófobo ou deslumbrado com as possibilidades estrangeiras de discurso artístico, se viveu intensamente esta dúvida ou essa ambiguidade, se mudou de pensamento ao longo da vida, se viveu um vai e vem, etc., não podemos afirmar nem cabe aqui discutir, mas tanto Elza quanto Battleship bem poderiam ser entendidos como uma personificação dessas guerras discursivas, desses confrontos, desencontros. São personagens em conflito e excelentes representações de um encontro maior do que eles, hoje criticado duramente pelos historiadores, pelos sociólogos, pelos críticos literários das novas escolas de análise discursivas — e com fortes razões, vale lembrar —, mas que teve sentido durante décadas, senão séculos: o encontro de dois mundos, o que em plenos anos 20 do século passado deveria fazer um grande e inequívoco sentido. Mas mesmo que Mário estivesse enganado em relação a essa bipolaridade, a esse confronto imaginário de duas potências fechadas e monológicas (sem contar com a diversidade delas), o resultado estético é fenomenal. Tanto Elza quanto Battleship (e certamente mais ela do que o ele) sofrem com o encontro, absolutamente incapazes de compreendê-lo em sua totalidade. Hoje, lemos pelos olhos da filosofia (ou da antropologia de Roy Wagner, dos estudos literário-políticos de Edward Said), principalmente, que tal totalidade seria, de fato, impossível. Não custa lembrar, também, que outros realismos literários brasileiros já haviam discutido as possibilidades de encontros entre mundos. Um famoso texto sobre tais encontros, Canaã, não deveria ser de todo desprezível para os modernos, embora sua escrita fosse considerada ultrapassada.

O rapaz, aos vinte anos, é um "efebo, cara esmaltada" com "vinte anos imberbes". Numa época em que a expectativa de vida do brasileiro era tão baixa que um jovem de vinte anos era considerado já um senhor, a idade do rapaz afigura-se como uma necessidade forçada mais pela lógica da narrativa a que não temos acesso do que por uma realidade sociocultural dos anos 1920. Poderia ser simplesmente a fidelidade a uma situação da vida de Mário, quando da viagem ao Amazonas. O inglesinho poderia ser ainda mais jovem, pois a história registra centenas de nomes de jovens que teriam deixado a Europa sem problemas para embarcar. De qualquer forma, o rapaz não é apenas obcecado pela aparência: ele é maníaco por higiene. Exatamente como sua descrição etária, a questão da limpeza parece ser mais outra imposição da lógica da narrativa (que se oporá à sujeira das meninas) do que uma lógica, digamos, histórica. Um batedor de carteiras do submundo londrino deveria ser sujo, mas Battleship, nesse ponto, lembra mais os sofisticados dândis wildeanos, os de Evelyn Waugh, os de Forster. Ao mesmo tempo em que veio do submundo, rejeita as características dessas personagens, fazendo-nos, então, duvidar de uma ligação com Dickens ou Stevenson ou Gide, como proposto. De qualquer forma, temos diante de nós um texto de fusões, como já dito, e pensar numa mescla de Alfred Douglas (Mário cita De profundis não apenas uma vez), Billy Budd e os jovens livres de Walt Whitman (também citado pelo Autor) não parece sandice.

O encontro com a primeira menina é crucial para uma descoberta. Aqui também existe uma atmosfera de "primeira vez" que percorre a narrativa: como num jogo de espelhos, Battleship vê uma menina de seios tímidos, ainda não "mulher", o que lhe provoca raiva, algo inexplicável, assim como sua insegurança em relação ao marujo. Ao mesmo tempo, Battleship quer se vingar da menina apressadamente porque ela "estava porca"42. Há duas possibilidades básicas de se compreender sua angústia. Primeiramente, para um homem obcecado por higiene, seria inadmissível uma pessoa jovem como ele (embora a diferença fosse, segundo seus cálculos, de seis anos) estar suja. Depois, pelo fato de uma pessoa, então tida como ladra, estar tão mal apresentável. Lembramos que Battleship cuidava de sua aparência para "ir trabalhar", como um contínuo, um meirinho, um contador, etc. No princípio, a menina usa um vestido "que nem tinha mais cor de vermelho sobre o corpo repelente". Nota-se que ela é indesejável por ser suja, não por ser nova ou por ser desastradamente ingênua aos olhos de um profissional. Depois, cobrir-se-á de azul, mesmo após a "revelação", ou seja, quando deveria usar vermelho, cor ligada popularmente ao erotismo. Desde o início, também, há a necessidade de um expurgo, de libertar-se da menina "para voltar ao prazer de si mesmo". Há necessidade de purificação, de descartar aquilo que não é permitido, que não é bom. Este trecho, tomado isoladamente, não evocaria jamais o texto bíblico ou os discursos orais sobre o pecado (ainda dentro de um contexto religioso), mas, iluminado pelo trecho "edênico" que vem depois, ganha um sentido novo. Haverá o expurgo pelo banho, pelo batismo, ablução, libação, etc.

Uma segunda imagem de si (o que poderia vir mais uma vez sob a chancela do "pela primeira vez") ocorre quando, ao ver os olhos da menina, teve a visão de "que era um desgraçado também". A cena é um jogo de espelhos muito interessante e brilhantemente construído. Temos um gigante ao lado de uma criatura frágil, mas eles se espelham, o que não ocorre com Elza em relação a Carlos. Mas um espelho diante do outro mostra não apenas semelhanças como também diferenças, que caminham num infinito possível de repetições43. Nesse momento, ambos são levados como que a outro mundo (um mundo de descobertas) para depois voltarem a seus corpos, a seus postos, a suas condições. De uma forma ou de outra, eram ambos desgraçados. Não importava o asseio de Battleship, pois ele tal qual a menina teatralizava, preocupava-se em não ser visto (diferente dela, que necessitava ser vista, daí outro jogo de contrários) e fazia isso, exatamente como ela, de forma pensada. Há, também, nessa cena, o encontro de dois mundos, distantes e não dessemelhantes44 como discutido antes. Isso poderia ser uma surpresa para o rapaz. Quanto aos aspectos estilísticos, o narrador frisa o cenário fake: há soldados que "valsam de focas de music-hall" enquanto é necessário o retorno a um mundo real, que se opõe também à festa da Independência, que acaba quando os pasteleiros se vão, algo que ecoa (ou, no caso, antevê?) o Primeiro de Maio de Contos Novos. Há um universo deslocado de um "eu". Tal engajamento que se dá em duas frentes — a do escritor e artista e a do personagem em Primeiro de Maio evocam mais uma vez o dizer de Argan sobre o expressionismo. Se é adequado dizer que Mário é um exemplo do expressionismo, este seria o melhor ponto para encontrar características desse movimento. Em BTB, esse ponto é de suma importância. O retorno leva Battleship e posteriormente a menina a um outro universo, o posterior ao ritual de passagem que será o banho.

A partir desse instante de descoberta (a primeira teria sido a descoberta do café), há uma guinada na narrativa, portanto. Alice necessita correr atrás do Coelho e descobre um mundo novo, surpreendente. Poderíamos pensar numa pequena "queda", pois Battleship descobre algo aí, um dedo a apontar numa nova direção: é por ali. Nesse momento, ele não tem apenas a consciência da possibilidade, ele tem a coragem de empreender a viagem, de acordo com o sentido se encontra nos textos sobre mitos e religião.



NOTAS



1A edição em questão é ANDRADE, Mário de. Balança, Trombeta e Battleship ou O descobrimento da alma. Ensaio de Telê Ancona Lopez e apresentação de Antonio Fernando de Franceschi. São Paulo: Instituto Moreira Salles: Instituto de Estudos Brasileiros, 1994.


2Talvez o pensamento mais difundido nesse sentido seja o de Alfredo Bosi. Cf.: BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: ANDRADE, Mário de. Macunaíma — o herói sem nenhum caráter. Edição Crítica. Coordenação de Telê Porto Ancona Lopez. Paris: Association Archives de la Littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XXe siècle; Brasília: CNPq, 1998.


3Os mais relevantes seriam justamente os de Alfredo Bosi e de Telê Porto Ancona Lopez e ainda abordagens interessantes de Haroldo de Campos, Mário Chamie, Manuel Cavalcanti Proença, Affonso Ávila e outros. Para que não sejam cometidas injustiças, em "outros" cabem muitos nomes que esse trabalho não pôde contemplar.


4Ou "Jeosafá", conforme a tradução e o livro em que se encontra a história desse monarca de Judá. Nos escritos de Mário, encontra-se "Josafá".


5O texto em questão é "O turista aprendiz" e os comentários deste texto dizem respeito às anotações da pesquisadora nesta edição: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.


6Joel, 3:1-2.  A edição da Bíblia em questão é da Alfalit, Brasil, de 1996; a edição da Torá é a da Sêfer, de 2001.


7O monarca foi um rei exemplar de acordo com os preceitos judaicos, exceto no fim da vida, quando se aliou a outro monarca que não professava a mesma fé.


8Ou ao Vale da sombra da morte, do famoso salmo 23:4.


9No número sagrado para o Judaísmo,7, assim como serão em número de 7 as pragas finais, assim como são sete os braços da menorah, etc., tradição que se manteve em parte na cristandade católica, haja vista o número de velas acesas na missa papal.


10Um dos cavaleiros do Apocalipse, aqui na vizinhança sonora e semântica com o "cavalheiro" Battleship.


11Posteriormente, a iconografia cristã registrará Miguel — o arcanjo — como o portador da balança — e do julgamento. Por esse motivo, muitas vezes a balança surge ligada a uma espada. A balança não é elemento estranho em outras mitologias, sendo comum na egípcia e na chinesa, por exemplo. Também há uma ideia de "paralelismo" ligada à balança, o que pode ser um caminho interessante para análise. Vulgarmente, "espada" é um das centenas de termos para "pênis", principalmente quando ereto. Na narrativa, há uma cena em que Battleship percebe sua ereção. Essa possibilidade não é discutida no texto, mas em se tratando das ironias mariodeandradeanas, seria de interesse.


12V. FERGUSON, George. Signs and symbols in Christian Art. 2. ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 1972. Na Bíblia: I Coríntios 15:52 e Daniel 5:27. A espada, embora símbolo fálico e da morte, é um elemento que em outras mitologias representa a ordem, a lei e a fidelidade, tanto que uma espada separa amantes proibidos no ciclo de Arthur, a despeito da conotação sexual já expressada em nota anterior.


13Sobre a questão, cf. ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Tradução de José Antônio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.


14Gênesis, 1:26.


15Gênesis, 1:27.


16Gênesis, 2:22  Na Bíblia: "Então, da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou a mulher, e a trouxe ao homem". Na Torá: "E fez o Eterno Deus (da) costela que tinha tomado do homem, uma mulher, e a trouxe ao homem".


17Como Mário não se cansa em mostrar a presença de Olívia Guedes Penteado na viagem à Amazônia.


18Sobre a questão, vale ainda o texto clássico de Mircea Eliade. V. ELIADE, Mircea. Mefistófoles e o andrógino ou o mistério da totalidade. In: ___. Mefistófoles e o Andrógino — comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 


19Não se descarta a possibilidade, não obstante, de se discutir isso do ponto de vista heterodoxo. Estamos às voltas com um Autor católico, mas sempre preocupado com o profano e os diversos discursos religiosos e culturais.


20Alcir Pécora comenta que o sermão "admoesta as autoridades temporais e espirituais portuguesas, imaginadas como 'réus' no dia do Juízo". Embora o caráter erudito da avaliação, fica aqui por curiosidade e para que a investigação do texto de Mário não pareça leviana.


21VIEIRA, Antônio. Sermão da Primeira Dominga do Advento. In: ___. Sermões. Tomo I. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001.


22Vale lembrar que há muitos anjos mulatos desde o barroco brasileiro, como é o caso dos anjos de mestre Valentin. Seria caso de investigar se Mário utilizou-se desse dado como respaldo, ironia ou simplesmente resgate de uma rede de imagens e de textos possíveis. Essa cor azul não é apenas comum nas representações da Virgem; por vias diretas ou tortas, é uma cor relevante nas representações sobre a brasilidade, seja em Tarsila, seja em Guignard.


23Torá, Gênesis, 3:15. Na Bíblia: "E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e o seu descendente; este te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar". A variação de uma tradução a outra é bastante relevante, pois a mesma passagem é tomada como referência a Maria e também a Jesus, para os católicos.


24Embora isso possa ser lido de outra forma: o avesso de uma vida feliz é a prostituição (ou uma vida "perdida"). Acreditamos que a preocupação em BTB seja mais complexa e profunda. Exemplos de perdição: Piá sofre? Sofre, O besouro e a rosa, Foi sonho, etc.


25Há um verso muito curioso de Mário de Andrade sobre a questão do jogo dos espelhos entre o amante e o ser amado: "Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa". In: "Girassol da Madrugada", poema de 1931.


26P. 379; op. cit.


27P. 380; op. cit.


28Sobre obras e ainda sobre certas curiosidades de leitura do jovem Mário, observar a lista feita por Marcos Augusto Gonçalves em: Mario de Maria. In GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922 — a semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. O autor mostra que o jovem Mário escreveu ao Arcebispado de São Paulo pedindo permissão para ler obras proibidas pelo Santo Ofício.


29Sabe-se que houve festas brasileiras relevantes na Europa dos anos 20 e 30 (e depois, com Chateaubriand) do século XX. Evidentemente, não eram festas para pessoas como Battleship; lembramos, também, que Mário nunca foi a uma dessas festas. Paulo Prado, por exemplo, participou, em 1925, de uma dessas festas, com Blaise Cendrars. Quanto à questão do café, parece ter perseguido o homem Mário de Andrade: ele foi amigo não apenas de Olívia Guedes Penteado como também de Paulo Prado. Viveu numa época em que o café era a grande riqueza do país e em outra em que o café foi sinônimo de bancarrota, incluindo a de amigos seus, como Tarsila do Amaral. Quando da compra do manuscrito de Padre Anchieta (que seria um atestado de "nascença" de São Paulo), Paulo Prado sugeriu o preço do documento por sacas de café, justamente. O café surge ainda como preocupação estética, em obra inacabada chamada "Café" e em múltiplas e variadas situações de escrita na obra de Mário de Andrade. Sobre a atmosfera das festas paulistanas que Mário frequentava, cf.: CAMARGOS, Marcia. Villa Kyrial — crônica da belle époque paulistana. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2000.


30Dados da Embratur mostram-nos que ainda hoje o grande interesse dos estrangeiros pelo Brasil diz respeito à Natureza selvagem. Há interesse, ainda, pelo Carnaval e, tristemente, pelo comércio, por vezes ilegal, do sexo.


31Se no mundo imaginado por Mário, havia preocupações com dados históricos, Londres passava por situações dramáticas. Uma enchente provocou pânico em 1928, na cidade, trazendo mortes e doenças. Também não havia trabalho para todos, nem comida.


32Na verdade, isso não é relevante e é incerto no texto. A primeira delegação enviada à Inglaterra para negociar a independência do Egito viajou a Londres no ano de 1919. Mas vale lembrar que os ingleses permaneceram fortemente instalados no Egito, com empresas de toda sorte. Em 1924, Lord Carnavon ainda teria problemas com a oscilação do relacionamento diplomático entre os dois países. Relevante é, sim, lembrar que a presença inglesa foi bastante forte em toda a região até a Segunda Guerra Mundial.


33Na edição genética em questão, a grafia é como está no texto, com "t". Possivelmente, um erro da revisão ou uma confusão do autor. A grafia para o ajudante de serviços gerais num navio, encarregado de servir as pessoas, é com "d".


34Cf. MIKHAIL, Bakhtin. Apuléio e Petrônio. In: ___. Questões de estética e de literatura — a Teoria do romance. São Paulo: Unesp, 2003.


35Pode-se pensar em dois momentos de Melville, interessantes: o Melville de Moby Dick, certamente, com sua atmosfera religiosa, e no Melville de Billy Budd. Embora Billy Budd seja um Tammuz moderno, há muitos pontos em que sua descrição lembra a de Battleship, principalmente no que se refere à misteriosa ingenuidade de ambos. Os dois também são fruto de uma sociedade rica, mas cercada por um universo terrível de pobreza e de violência social.


36ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna — do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 232.


37Faz sentido, também, pensar em expressionismo na estética de Mário como arte engajada em oposição à arte de fuga, que seria característica do impressionismo no entender de Argan.


38O que nos remeteria, mas uma vez, ao Michel de Gide. Telê Porto Ancona Lopez também compara esta atmosfera expressionista à de Walt Whitman. Cf. posfácio a Macunaíma in: Andrade, Mário. Macunaíma — o herói sem nenhum caráter São Paulo: Círculo do Livro, 1984. Duas ou mais décadas seriam necessárias até que autores como Evelyn Waugh e Jean Genet dessem outros contornos a essa atmosfera. Já autores como Christopher Isherwood foram muito mais diretos já na década de 1920, mas algumas obras só foram publicadas décadas mais tarde, como o caso famoso de O Templo, de Stephen Spender, que levou mais de meio século para ser publicada.


39Sobre estas questões, foram lançadas nos últimos tempos inúmeras obras, mas citam-se aqui, duas: GRANJEIRO, Cândido Domingues. As artes de um negócio: a febre photographica — São Paulo: 1862 – 1886. São Paulo; Mercado de Letras, 2000. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris. O olhar europeu — o negro na iconografia brasileira do século XX. São Paulo: Edusp, 2002. Ambos os textos tratam da fotografia no século XIX, mas trazem números interessantes do fenômeno da fotografia no Brasil e ainda intuições formidáveis sobre a força discursiva dessa forma de representação no Brasil. Não foram localizados trabalhos de crítica de Mário de Andrade sobre fotografia, mas há inúmeros registros fotográficos produzidos pelo próprio Mário.


40"(...) tão nobre quanto as outras [profissões]", segundo a consciência de Elza. p. 77. Op. cit.


41P. 63. Op. cit.


42Ocorreria aqui uma ironia a Os miseráveis? Jean Valjean não se apaixona pela menina de quem promete cuidar. É sabido, porém, que Mário se identificava com os ingleses — e não com os franceses de Victor Hugo — isso nos leva a crer na possibilidade de haver características de Mário em Battleship. Essa habilidade ou liberdade criativa não são incomuns em textos seus.


43E se repetirá mais tarde no sentido contrário.


44E é muito interessante pensar nesse encontro entre dois mundos, pois não é um discurso novo. O discurso da oposição entre Europa e Mundo Novo é antigo, forte e ainda presente.

 


 

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