@daniel kersys

 

 

 
 

Na entrevista a seguir, concedida em fevereiro de 2023, o paulistano Ruy Proença passa em revista seu percurso como poeta e tradutor. A infância entre livros, contos de fada e brincadeiras de rua; o encontro com Roberto Piva; as transformações no modo de conceber e construir o poema; o trânsito entre a perspectiva mítico-fabulosa, o viés científico-descritivo e a chegada a temas como a morte, o envelhecimento e a cidade. Ruy discorre ainda sobre seu trabalho dirigido ao público infantil, sobre autores francófonos por ele traduzidos (Boris Vian, Henri Michaux, Paul Keineg) e sobre projetos futuros escondidos na gaveta de guardados. Ao final, o leitor encontrará uma brevíssima antologia com alguns dos poemas citados ao longo da entrevista.

 

 

 




 

Ronald Polito - Sua formação é em Engenharia de Minas. No poema "Urdidura", em seu primeiro livro, Pequenos séculos, de 1985, você cita o teodolito com que topografou picos e vales. No que a engenharia contribui para sua poesia?

 

Fabio Weintraub - Você se sente como pertencendo à nobre linhagem dos poetas-engenheiros? Quais as responsabilidades e os desafios aí implicados?

 

Ruy Proença – Fiz o ensino fundamental II e o ensino médio (então ginásio e colegial) em escola pública, no Colégio Estadual Ministro Costa Manso, no bairro Itaim Bibi. A partir do ensino médio, toda a minha formação escolar foi voltada para as ciências exatas (naquela época, infelizmente, tínhamos de optar entre exatas, biológicas ou humanas). Isso é um fato, não tenho como fugir desse contexto: números, cálculos, equações ficaram entranhados em minha pessoa.

Muito do que li e aprendi na área de humanas devo ao contato com os amigos Eduardo Giannetti e Jorge Sabbaga, que estudavam no Colégio Santa Cruz. Enquanto eu lia A mão e a luva, de Machado de Assis, eles liam Dom Casmurro. Não só liam, como discutiam, debatiam, o que não acontecia no Costa Manso. Eu me esforçava para acompanhá-los e pegava carona nas polêmicas que traziam da escola. Desdobrava-me como autodidata.

 

Voltando ao tema da pergunta, eu diria que, além dessa relação de proximidade com as ciências exatas, ao cursar a faculdade de engenharia de minas e depois me especializar na área de tratamento de minérios, mais do que a engenharia em si, acho que contribuiu para minha poesia a ideia de concentração. O processo de tratamento de minérios envolve técnicas de separação e concentração de determinados minerais em detrimento de outros. Em geral, uma pequena parte é aproveitada, e o restante é disposto como rejeito. Ao final do processo deve-se obter um concentrado o mais puro possível. Creio que, em relação ao texto em si, essa ideia de desbaste, concentração, depuração, com o tempo migrou para a minha poesia, ou seja, a procura de uma certa concisão nos poemas, dizer o máximo com o mínimo de palavras. É claro que há certa relatividade nisso. Muitas vezes a poesia nos leva por outros caminhos.

 

Em tempo: hoje o velho e bom teodolito foi incorporado em equipamento eletrônico bem mais sofisticado, a "estação total".

 

Se pensarmos em João Cabral, por exemplo, como modelo do poeta-engenheiro, aquele que usa "régua, esquadro e compasso", que planeja, que projeta antes de escrever, me considero bem distante desse modo de fazer poesia. Por outro lado, quando se fala da luz, da limpeza, da clareza do enunciado, me sinto mais próximo de Cabral. O poema "Imitação da água" (Quaderna) é uma maravilha. Para mim sempre foi um desafio tentar escrever algo assim.

 

O fato é que não sou bom planejador. Quando escrevo, sou mais intuitivo. Não raras vezes começo a escrever sem saber o que virá, como se desenvolverá e onde dará o poema. Mas como somos repositórios de repertórios, de imagens, de memórias, de reflexões, de sensações, quase sempre se abre um caminho para dentro do poema.

 

Se pensarmos não no poeta-engenheiro, mas no engenheiro-poeta, ao pé da letra, o que seria mais trivial — posso pensar em Boris Vian, Joaquim Cardozo e outros —, me sinto mais próximo destes, com suas poéticas que passam pelo lirismo e pelo humor (no meu caso, em boa medida, um humor melancólico).

 

Mas é fato que certo tom científico-descritivo perpassa meus poemas. Os poemas "Os quatro elementos", "Píton", "A galinha", "A sereia" e outros, em Como um dia come o outro (São Paulo: Nankin, 1999), apresentam claramente esse viés.

 

Por trás do aspecto científico, está também meu interesse por algumas áreas de conhecimento de fronteira, como a astronomia, a genética, a robótica, a inteligência artificial por exemplo. Em que medida isso vai afetando a nossa subjetividade?

 

 

FW – Você diz que a ideia de concentração migrou do trabalho como engenheiro de minas para a sua poesia. Mas a ideia de poesia como concentração circula muito entre os poetas, sobretudo por causa do Ezra Pound do ABC da literatura (Dichten = condensare). Pergunto, então, se além do resultado comum almejado ao final ("um concentrado o mais puro possível"), algo dos métodos usados para chegar a ele encontram alguma forma de equivalente no seu trabalho com a linguagem. Por outro lado, certas vertentes da poesia contemporânea apostam, em direção contrária, no valor da impureza, dos enxertos e misturas de registros e linguagens. Como você se situa em relação a essas vertentes?

 

Proença – É claro que a ideia de concentração em poesia é praticamente um truísmo. Ainda assim é sempre bom tê-la em mente. A concisão como guia para o aspecto formal do poema. Penso sempre na deliciosa crônica "Solte seus cupins", de Humberto Werneck (O Estado de S. Paulo, 10 out. 2017). No meu caso, porém, vejo essa coincidência com o propósito do tratamento de minérios. Mas não há nenhuma correlação objetiva entre algum método específico de tratamento de minérios e o trabalho de criação poética. É apenas uma ideia de aproximação entre as duas atividades no que concerne aos fins almejados. O tratamento de minérios se forma a partir do encadeamento de uma série de operações unitárias (britagem, moagem, classificação, peneiramento, métodos de concentração — densitários, eletromagnéticos, eletrostáticos, físico-químicos, visuais etc. —, espessamento, filtragem). Nada que seja concretamente aplicável às palavras. Moer uma palavra já seria algo da ordem do poético (risos).

 

Também não tenho dúvida de que muitas vezes o que interessa em poesia não é o concentrado, mas justamente as impurezas, aquilo que foi empurrado para baixo do tapete, o não dito, o inútil, a poluição existencial. Em Drummond, lá atrás, isso virou até título de livro — As impurezas do branco. Meu livro de 2015, Caçambas, traz um pouco dessas impurezas.

 

 

RP - Em Pequenos séculos (São Paulo: Klaxon, 1985), sua obra de estreia, há diversos poemas em prosa. Qual seu interesse por esse subgênero poético ao qual você voltou em Monstruário de fomes (São Paulo: Patuá, 2019) e que também está presente em seus trabalhos de tradução?

 

FW - Em Monstruário de fomes, sobretudo na segunda seção do livro, muitos poemas não são exatamente poemas em prosa, aproximando-se mais da crônica (por exemplo, "Janelas") ou do ready-made (como os poemas intitulados "depoimentos" e o poema "Diretivas antecipadas de vontade"). Qual a sua definição de poema em prosa? E ainda: no plano temático, a maioria dos poemas orbita em torno dos motivos do desastre (acidente, catástrofe) e da reparação (cuidado, terapia, conserto). Essa concentração foi planejada?

 

Proença - O poema em prosa, assim como outras formas de espacialização das palavras no poema (Mallarmé de Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, Maiakovski de poemas como "A Sierguei Iessienin", Ezra Pound de alguns momentos dos Cantos e Apollinaire de Caligramas), sempre me intrigou. Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Jorge de Lima ("O grande desastre aéreo de ontem"), Murilo Mendes, Roberto Piva, Claudio Willer, Décio Bar — toda a eventual poesia em prosa que passava pela minha mão eu achava interessante, uma forma diferente de fazer poesia. Uma forma talvez mais livre, mais fluida, de lidar com as imagens, sem a camisa de força do verso. Enfim, um outro ritmo.

 

Curiosamente, os poemas em prosa do livro Pequenos séculos foram escritos durante um período em que fiz psicanálise. É possível que eles tenham tido uma função catártica, ou seja, abrir a caixa da imaginação e deixar sair tudo o que se agitava ali dentro. A intenção de voltar ao poema em prosa no livro mais recente, Monstruário de fomes, deveu-se a um desejo de tentar romper certo automatismo na escrita do poema em verso. Fazer um contramovimento, conforme recomendado nas artes plásticas: "quando você aprende a pintar com a mão direita, passe a pintar com a mão esquerda".

 

Mas a volta a esse subgênero poético também se deveu muito a uma conversa que tive com você, Ronald. Para escrever a orelha de Caçambas, publicado em 2015, você me pediu um exemplar do livro Pequenos séculos, que ainda não tinha, lembra? Depois você me escreveu dizendo achar curioso eu ter poemas em prosa no livro de estreia, sem nunca mais ter voltado a essa forma. Na verdade, durante esse longo período, eu havia escrito um único poema em prosa a pedido do Carlito Azevedo, para integrar o no 14 da revista Inimigo Rumor, dedicado a poemas em prosa de poetas contemporâneos. Depois do seu comentário, Ronald, achei que estava na hora de voltar ao poema em prosa como uma tentativa de desautomatizar minha escrita. Havia também a me motivar o livro Arte da pequena reflexão — poema em prosa contemporâneo (São Paulo: Iluminuras, 2014), do poeta e ensaísta Fernando Paixão.

 

Como bem notou Renan Nuernberger no posfácio do livro, percebi que poderia dividir o material em duas partes: uma com poemas mais voltados à minha própria vivência (Estetoscópio) e outra com poemas mais voltados à escuta de outras vozes — depoimentos, falas psicanalíticas, colagens, decalques de filmes, memórias e poemas alheios (Papel carbono). Obviamente, como também notou Renan, essas partes não são totalmente estanques, e alguns poemas (poucos) poderiam perfeitamente trocar de seção, o que cria vasos comunicantes entre as duas partes.

 

O resultado acabou sendo um conjunto de textos algo híbrido, incluindo o poema, a crônica, o conto e o ready-made. Creio que o poema em prosa seja suficientemente plástico para abrigar todos esses gêneros. Vejo-o como um campo de experimentação, flexível, sem limites conceituais rígidos. Algo que se aprende fazendo. Segundo Ecléa Bosi, em O tempo vivo da memória (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003), o professor Flavio Di Giorgi teria ensinado a ela que a palavra "experimentar" seria composta da partícula "ex" (fora) e da palavra "perímetro" (círculo). Portanto, experimentar seria pular para fora do círculo, para fora do campo conhecido. Ainda que essa explicação etimológica seja uma licença poética, gosto de ver o poema em prosa dessa maneira.

 

Com relação à temática do desastre e da reparação, o que posso dizer é que durante a escrita do livro eu estava passando por um processo de separação conjugal e o momento político do país era muito ameaçador, o que infelizmente veio a se confirmar posteriormente.

 

 

RP - Nota-se um erotismo cru e mesmo violento no primeiro livro. Tributo ao tempo, à atmosfera literária da época do primeiro livro?

 

FW - Pequenos séculos traz um mix de referências com um quê de contracultura: super-heróis dos quadrinhos e das histórias infantis, personagens do cinema e da cultura pop, da música e da política. Esse mix está relacionado com seus anos de formação, com o contato com Roberto Piva (que você conheceu a partir do convívio com o Eduardo Giannetti) e com o Claudio Willer, que assina a contracapa?

 

Proença – Pequenos séculos recolheu poemas escritos de 1976 a 1984. É um livro de iniciação. Com certeza, teve influência da atmosfera da época. Vivíamos na esteira da contracultura e em plena ditadura civil-militar. A rebeldia, a contestação, o questionamento e o inconformismo estavam em nossas bandeiras. Havia uma "pauta" de costumes e uma "pauta" política. Tudo isso aparece indiretamente nos poemas com o frescor da imaturidade.

 

Mas penso que a grande influência da época que se reflete em boa parte da poética do livro foi o contato com a poesia de Roberto Piva e com o próprio poeta, que até então tinha publicado Paranoia e Piazzas, no início dos anos 1960, e estava publicando Abra os olhos & diga Ah! (São Paulo: Massao Ohno, 1976). Conheci-o pelas mãos do Eduardo Giannetti, que por sua vez o conhecera na Escola de Sociologia e Política, em 1975. A poesia do Piva era imagética, bombástica, violenta, "vituperante", impiedosa. Era o império do desejo. Para nós, jovens, era algo muito chamativo. Um mundo novo se descortinava à nossa frente. Tínhamos sede desses novos horizontes. Absorvíamos esse mundo novo sem uma visão crítica muito apurada, pelo puro prazer da fruição. Piva foi uma espécie de guru. Apresentou-nos o centro da cidade de São Paulo, algo muito distante de nossos lares. Uma distância mais existencial do que geográfica, já que, quando eu era pequeno, morava na Zona Norte e minha mãe, muitas vezes, me arrastava como companhia quando ia fazer compras no centro da cidade, principalmente no Mappin. Íamos de lotação. O dentista da família tinha seu consultório na praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Municipal e ao lado da Galeria Metrópole. Além disso, a família inteira (éramos sete!) cruzava o Vale do Anhangabaú em um fusquinha para o almoço dominical na casa de meus avós paternos, que moravam no Jardim Paulista. Logo, conhecia o centro, mas o Piva mostrou-nos um centro vivo, que passamos a frequentar. Lembro dos saraus poéticos aos sábados de manhã, organizados pelo Willer na rua Barão de Itapetininga, em frente à livraria Brasiliense. Lembro também da Confeitaria Vienense, numa sobreloja da Barão de Itapetininga, com seu elevador de porta pantográfica e o trio de música erudita. Frequentemente, a Susana Salles passava para me apanhar na Faculdade de História e íamos jantar no Gigetto. Lembro ainda do Paribar, também na praça Dom José Gaspar, e do Filé do Moraes, na praça Júlio de Mesquita. E lembro de muitas vezes, em fim de noite, deixar o Piva na avenida São Luiz, onde ele ia procurar garotos de programa. Nessa época, minha família morava em Higienópolis, na rua Pará, entre a Angélica e a Bahia. Logo, esses anos de convívio com o Piva foram uma época de expansão geográfica das nossas vivências. Sem falar nos vários caminhos de leitura que ele nos ofereceu. Se me lembro bem, quando o conheci, eu já lia Jorge de Lima; mas Murilo Mendes foi ele que me apresentou. Ele adorava citar o verso de Murilo "Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante" (epígrafe do "Poema de ninar para mim e Bruegel", de Paranoia). Piva era um ser poético estrondosamente delirante.

 

Do contato com ele e com o Willer o que mais me impactou foi a visão imagética e surrealista do mundo que, de resto, já habitava meu imaginário. As referências à cultura pop ou à contracultura faziam parte do caldo de influências. Algumas vinham da infância (histórias em quadrinhos, filmes do Walt Disney), outras do ambiente universitário (grupo de estudos marxistas), outras do cinema (Mary Poppins, Pasolini, Marilyn Monroe). Na época, frequentávamos muito o Cine Bijou, na praça Roosevelt, que era um cineclube onde se podia ver muitos filmes cult da época (Fellini, Pasolini, Kurosawa, Herzog, Orson Welles e outros).

 

 

RP - Fale um pouco mais sobre a presença de histórias infantis, fabulações, mitologias, super-heróis, gibis nos seus poemas.

 

Proença – Como disse, isso fazia parte do caldo cultural da época. Esse imaginário foi criado a partir de diversas fontes de conhecimento.

 

Num primeiro momento, quando ainda era menino, por volta dos oito aos doze anos, lembro de minha mãe contando histórias infantis para eu dormir. Minha mãe era filha de alemães e, por ter estudado no Colégio Porto Seguro (à época ainda na praça Roosevelt), falava perfeitamente o idioma. Quando eu dormia na casa de meus avós maternos, num quarto enorme, na parte da frente do sobrado, no Jardim Paulista, ela se sentava à cabeceira da cama com um livro na mão, apenas o abajur aceso, e começava a contar histórias fazendo uma tradução simultânea. Eu imagino que entre os autores principais que lia estavam os irmãos Grimm, porque as histórias eram muito extraordinárias e assustadoras, mesmo violentas, com uma dose moral ao final. Uma das histórias de que me lembro era a de um corredor entre jaulas de feras por onde as pessoas deviam passar. Quando as pessoas eram boas, as feras ficavam sossegadas. Quando as pessoas eram más, as feras ficavam ouriçadas querendo devorá-las. Em outra história do mesmo gênero, as pessoas boas quando falavam soltavam moedas de ouro e flores pela boca; as más soltavam serpentes, sapos e por aí vai. Estou falando isso de memória e provavelmente estou alterando um pouco as histórias, mas essa era a atmosfera das narrativas.

 

Outra fonte de conhecimento que vinha da infância eram os gibis da Disney e dos super-heróis, assim como os filmes animados da Disney, dos quais A espada era a lei (sobre os cavaleiros da távola redonda, ciclo do rei Artur) foi um dos que mais me empolgou. Peter Pan e outros também deixaram marcas.

 

Já na época da universidade (e depois, até hoje), me interessei por mitologia grega. Lia tanto para mim quanto mais tarde para meus filhos, quando eram pequenos, na hora deles dormirem. Isso tudo acabou de alguma forma fazendo parte de meu imaginário e entrando na minha poesia.

 

Ainda com relação à minha infância: até os oito anos de idade, não só a própria casa, mas também a rua ou as casas de vizinhos foram espaços ocupados. Havia brincadeiras de roda e jogos infantis em quintais; pipas e futebol em campinhos de várzea; corridas ao redor do quarteirão; iniciação em judô; coleção de maços de cigarro jogados na sarjeta; busca de pedaços de filmes em lixo (havia um cinema ao lado de casa e às vezes encontrávamos restos de filme caídos na calçada; maliciosamente, procurávamos cenas de sexo nesses fragmentos). Meus pais, sendo médicos e trabalhando, não tinham tempo de ficar supervisionando os filhos. Éramos soltos na vida, contando com a ajuda de nossos anjos da guarda.

 

Naquele tempo, ainda não existia a pré-escola institucionalizada. Meu pai só me matriculou na escola quando completei sete anos, isto é, fui direto para o ensino fundamental (na época chamado de primário), começando pelo ano que hoje corresponderia ao segundo ano do ensino fundamental. Assim, minha alfabetização se deu entre os sete e os oito anos de idade. Portanto, nunca antes havia lido nada por conta própria. Quando estava no segundo ano escolar (oito anos), meu pai me obrigou a ler diariamente duas ou três páginas de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Eu fazia isso de muito má vontade, com preguiça. Queria me livrar logo da tarefa para ir brincar na rua. Mas tinha de fazer, porque meu pai ia me buscar na escola e me “tomava o ponto” quase que diariamente. "Filho, o que você leu de ontem para hoje?". Eu era obrigado a estar com a leitura em dia. Desse modo, acabei tomando gosto pela leitura. Ela me abria um mundo de possibilidades e me instigava a imaginação. Era todo um mundo paralelo que se abria para mim. Nunca mais parei de ler.

 

 

FW - No poema "Edifício de heróis", de A lua investirá com seus chifres (São Paulo: Giordano, 1996), você mistura Teseu, Édipo, Pelé, Jesus, o Super-homem e um chimpanzé hipocondríaco, entre outros personagens. Que ideia de heroísmo preside essa conjunção? De que maneira o humor tempera o heroísmo em seus versos?

 

Proença – Além desses, Santo Agostinho, Galileu, Tiradentes, Trotsky, Jimi Hendrix e mesmo, talvez, Roberta Close… Até agora, nunca havia racionalizado essa questão. É uma pergunta interessante, que me faz refletir um pouco. Penso que, ao escrever esse poema, os heróis, lato sensu, nossos ídolos, foram transformados em cidadãos comuns, nossos vizinhos virtuais, seres do dia a dia, desprovidos de sua aura. Cada um com sua loucura, sua mania, sua virtude, seu autoengano. E ao final, a autoderrisão, nós mesmos como potenciais candidatos a um posto de herói "decaído". Talvez tenha a ver com a máxima de Andy Warhol ("No futuro, todo mundo será famoso por 15 minutos"). Gosto de pensar o humor como uma ferramenta terapêutica, um modo de amenizar a loucura e a dor de viver. O humor como boia salva-vidas.

 

 

FW - Há mais de 15 anos você lançou Coisas daqui (São Paulo: Edições SM, 2007), seu primeiro livro de poemas para crianças. Depois dele, vieram as plaquetes Tubarão vegano (Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2018) e Um ninho na ponta do nariz (Londrina: Galileu Edições, 2021). Quais os desafios (e os limites, se é que existem) ao escrever para o público infantil? Por fim, mais recentemente você se tornou avô. O contato com os seus netos tem propiciado a você novas percepções sobre a linguagem mais apta a tocar a sensibilidade dos pequenos?

 

Proença – Vejo a criança como um ser complexo. Mesmo com seu repertório ainda relativamente pequeno, ela tem o dom da experiência, de estar provando o mundo em primeira mão. Portanto, quando escrevo para crianças, não gosto de simplificar, de escrever poemas apenas pelo encantamento da sonoridade das palavras (rimas, assonâncias, aliterações) e do ritmo. Penso mais nas imagens, nas perguntas originais que elas podem estar se fazendo, assim como eu me faço. Acho então que escrevo não para uma determinada idade, mas para crianças dos oito aos oitenta anos. Quando digo por exemplo "o chuveiro/ é uma espécie de chuva" … "como pode então a chuva/ chover-se em gotas sem chuveiro?", estou brincando com a ideia, a pergunta, de como a água da chuva se transforma em gotas quando se desprende das nuvens, uma vez que lá em cima não tem chuveiro; ao mesmo tempo, estou brincando com as palavras, mostrando que a palavra chuveiro deriva de chuva e, portanto, estou chamando a atenção para o fato de que a água que sai do chuveiro é uma pequena chuva. Acho esse jogo mais interessante do que simplesmente fazer quadras rimadas, o que eventualmente também pode ser instigante se vier acompanhado de um raciocínio mais complexo, à altura da sede de descoberta das crianças.

 

Sobre o benefício do contato direto com as crianças para encontrar a linguagem mais apta a sensibilizá-las, olha, isso aconteceu muito com meu filho Jorge, quando era pequeno, por volta dos cinco anos de idade. Ele dizia coisas muito interessantes segundo a leitura que fazia do mundo. Pelo menos cinco poemas de Coisas daqui eu devo a falas dele.

 

Em 1992 foi publicado o livro As coisas, do Arnaldo Antunes (São Paulo: Iluminuras), escrito com base em falas da Rosa, sua filha, que também é a ilustradora do livro. Eu tinha e tenho esse livro como um talismã, um caminho a ser explorado. A poesia "infantil" feita a partir do olhar revelador da criança.

 

Além disso, havia e há o admirável acervo de poesia para crianças publicado pelo poeta e crítico José Paulo Paes. Adorava ler seus poemas e o fazia para meus filhos. Sobre José Paulo, embora tenha conversado com ele uma única vez, rapidamente, na Livraria da Vila (Vila Madalena), e o visto somente uma segunda vez, no Instituto Moreira Salles (que antes de construir a sede na Paulista, ficava na rua Piauí), durante um depoimento dele como escritor, declaro que sou seu fã de carteirinha. Para mim José Paulo é tudo de bom: como pessoa e como escritor — um verdadeiro mestre.

 

Quanto a meus netos, Joaquim, Teresa e Antônio, diria que eles ainda são muito pequenos para suscitar em mim novas percepções sobre a linguagem. Se bem que Joaquim desenvolveu a fala muito precocemente e gosta quando brinco com ele fazendo frases rimadas, jogos com palavras ou quando falo uma palavra que ele ainda não conhece, como "estrepolia". Ele fica muito atento e às vezes pede: "de novo, vovô".

 

 

FW - "Quando a gente se machuca/ não sara o machucado?// Quando a luz volta/ é como um machucado que sarou" (versos de "Sem luz", poema de Coisas daqui). "nascer/ é ser novinho em folha/ e já deixar cicatriz.// […] mas nem tudo/ são cicatrizes// algumas incisões/ definitivamente/ não se fecham// por isso/ aliás/ morremos", versos de "A invisível cicatriz", poema de Visão do térreo (São Paulo: Editora 34, 2007). Aproximo esses dois poemas, de motivo semelhante, oriundos de livros publicados no mesmo ano, um para crianças, outro para adultos. Um, digamos, "otimista" (a luz volta, a gente se cura), outro nem tanto. Você acredita na existência de temas ou motivos "sensíveis", na necessidade de algum tipo de cuidado (ou mesmo de interdição) na poesia dirigida a leitores-mirins?

 

Proença – Quando esses dois livros foram lançados em 2007, praticamente ao mesmo tempo, minha mãe comentou: "Até que enfim um livro interessante!". Eu disse: "Mãe, meus livros anteriores não eram interessantes?!". Ela respondeu: "Bobo, não estou falando de Visão do térreo, que é um livro muito triste, só fala de morte; estou me referindo a Coisas daqui, seu livro para crianças".

 

Eu acredito que não me censuro quando escrevo para crianças. Há poemas sobre temas sensíveis, como morte por depressão ("Romeu e Julieta"), animais predadores ("Tubarão vegano") ou assassinatos ("Sino assassino"). Mas o que me interessa nesses poemas, o que privilegio, é o ludismo, a brincadeira com as palavras associada a situações ou ideias inusitadas.

 

O poema "Sem luz", de Coisas daqui, é um daqueles escritos a partir da fala de meu filho Jorge. Achei bastante original e poético o jeito dele organizar mentalmente um apagão elétrico.

 

 

RP - Há uma forte tendência epifânica em seus melhores poemas, como em A lua investirá com seus chifres ("Varanda", "Novembro: as árvores"). É o que mais privilegia na poesia?

 

Proença – Acho que tudo tem seu tempo. Somos seres em contínua transformação. O Ruy de hoje não é mais o Ruy dos anos 1990. Tudo muda, como diria Piva. Naquela época, a poesia para mim era uma forma de revelação e redenção. A poesia estava muito identificada com a metáfora e, além disso, com a sinestesia. Gosto desse tempo, mais lírico. A partir de meados dos anos 1990, no Cálamo1, um coletivo de poesia, trabalhamos um projeto de escrita com base em notícias de jornal, coisa que o Bandeira e outros poetas já faziam lá atrás. Isso acabou levando minha poesia para um campo mais referencial, mais ligado ao cotidiano prosaico, à vida na cidade grande. Se a metáfora não desapareceu, ela adotou um tom mais sóbrio. Caiu a ficha de que a força das palavras tem seus limites. Comecei a colocar em xeque o poder encantatório da palavra diante de tantas e tão graves disfunções sociais.

 

 

1 O Cálamo era constituído por um grupo de poetas para pesquisar, criar e divulgar poesia. Esse grupo se formou no final de 1990, em torno das oficinas de poesia oferecidas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que eram ministradas na casa que fora de Mário de Andrade, à rua Lopes Chaves, no 546. Participavam do Cálamo, entre outros, Ana Paula Pacheco, Rodolfo Dantas, Chantal Castelli, Luiz Gonzaga, Priscila Figueiredo, Fabio Weintraub, Cesar Garcia Lima, Flávio de Souza Corrêa, Rosa Mattos, Rosana Piccolo e eu.

 

 

RP - Em A lua investirá com seus chifres, você apresenta alguns metapoemas, como em "Poema" e "A dura... ". Hoje você pensa a metapoesia em outros termos?

 

Proença – Segundo José Paulo Paes, em meados dos anos 1990 havia uma saturação de metapoesia praticada desde o início dos anos 1980. Em boa medida, parece que a poesia tinha deixado de lado as referências históricas para se debruçar sobre si mesma. Uma atitude um tanto solipsista, da qual ele já estaria um pouco cansado. Eu não tinha plena consciência desse fato quando publiquei A lua investirá com seus chifres. Estava entusiasmado. Esses metapoemas — "Poema" e "A dura... " — estão em consonância com aquilo que eu esperava da poesia àquela época, ou seja, a poesia vista como uma ferramenta de transformação da realidade, como se num passe de mágica pudéssemos, por meio da criação poética, extrair algo da aspereza do cotidiano que nos enchesse os olhos de alegria e felicidade. Sim, pequenas epifanias. Como eu disse, havia uma crença no poder redentor da palavra.

 

De lá para cá, algo mudou no meu modo de pensar a metapoesia. Em primeiro lugar, acho que ela deixou de ser uma questão tão relevante em minha poesia. E certamente meu olhar para ela passou a ser menos condescendente, mais crítico. Em Caçambas (São Paulo: Editora 34, 2015), os poemas "Risco" e "Assassina" são exemplos desse outro modo de ver a metapoesia. O segundo começa assim: "a palavra/ quando nomeia/ assassina" […] "a palavra/ não tem/ o poder/ de reverter/ a ausência da coisa". Essa é uma visão apreendida em Maurice Blanchot (A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011), escritor e pensador da linguagem.

 

 

RP - Já se falou sobre o surrealismo em sua poesia. Parece que você se move pelo extraordinário, o espanto, a surpresa, o fascínio pelas metamorfoses, pelas estranhezas. De qualquer modo, você se interessou pelo surrealismo? Se sim, o que nele te interessou? Você leu Murilo Mendes e ele tem alguma coisa a ver com o que te mobiliza?

 

FW - Além do Murilo, que outros autores e leituras entraram no seu cadinho visionário?

 

Proença – No último ano do ensino médio, que fiz no período noturno — porque de manhã fazia cursinho preparatório para o vestibular—, a professora de literatura nos presenteou com um curso introdutório à história da arte moderna. O curso foi dado no anfiteatro da escola, com projeção de slides. Entre as obras apresentadas, surgiu o trabalho Cadeau, de Man Ray, que é aquele ferro de passar roupa com catorze pregos alinhados na base. Eu fiquei fascinado com essa imagem.

 

Dois anos mais tarde li um pequeno livro sobre o surrealismo e vi que muitas outras imagens igualmente me fascinavam. Aquilo era pura imaginação!

 

Desse modo, e eu já disse isso em outra ocasião, penso que meu imaginário já era surrealista antes de conhecer o surrealismo. Talvez isso tenha a ver com as histórias fantásticas que minha mãe me contava antes de dormir quando criança.

 

Logo a seguir, houve o contato com o Piva, o Willer, o Bicelli e outros escritores e poetas (lembro de Raul Fiker e Juan Sanz Hernández), enfim, o grupo paulistano de poetas beatniks, surrealistas e afins.

 

Então foram muitas leituras: a poesia do próprio Piva, do Willer, do Bicelli (esta mais oswaldiana), de Lautréamont, traduzido pelo Willer, de Rimbaud, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Oswald de Andrade (A morta), Lawrence Ferlinghetti, García Lorca, Paul Éluard e outros.

 

Mas na verdade minhas primeiras leituras interessadas e intensas em poesia, no final da adolescência e início da idade adulta, por volta dos dezesseis aos dezenove anos, foram Fernando Pessoa e Manuel Bandeira.

 

Como minha poesia também tem um pé no objetivismo, um olhar mais focado em pequenas coisas e seres naturais, mais tarde me interessei muito pela poética de Francis Ponge presente em Le parti pris des choses. De alguma forma isso se liga com o que a Ana Paula Pacheco, em uma resenha sobre o livro Como um dia come o outro, chamou de o "ordinário estranhado" e com o olhar minucioso, "científico-descritivo".

 

Como disse, a guinada para uma poesia mais realista iniciou-se com o trabalho de criação que fizemos no grupo Cálamo, com base em notícias de jornal. Naquela segunda metade da década de 1990, havia no ar uma necessidade de reconectar a poesia às referências concretas da vida que nos circundava.

 

 

FW - a) Entre os autores francófonos traduzidos por você está o poeta, romancista, músico, dramaturgo Boris Vian, ligado à patafísica que é a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções. Você se considera mais patafísico que surrealista? Aproveite para falar um pouco da sua parceria com a Letícia Coura por ocasião do lançamento da antologia de poemas do Vian (Boris Vian: poemas e canções. São Paulo: Nankin, 2001) e do espetáculo Cabaré Vian, em que suas traduções foram usadas.

 

b) Em Monstruário de fomes há uma paródia de "Je voudrais pas crever" no poema "Cartão-postal", não é? Comente um pouco esse poema. Que deslocamentos você operou sobre ele?

 

c) Depois da grande espiral, que você já recebeu, como está seu processo de diplomação junto ao Colégio Patafísico?

 

Proença – Eu não me atenho muito aos rótulos — surrealismo, patafísica etc. Gosto de pesquisar, conhecer, me interesso, me divirto, mas quando escrevo não me sinto ligado a nenhuma plataforma, a nenhuma "escola" em particular. Se me apaixonei de cara pela poesia de Boris Vian, não foi pela via do Colégio Patafísico, mas pela via do humor, entre o sarcástico, sardônico, e o melancólico, dependendo da fase de vida do artista. Existe ali um rir de si mesmo e um rir da vida, que me é muito caro. Eu sempre gostei de uma máxima do Sebastião Uchoa Leite que diz: "radicalmente sério/ só o cemitério". Esse modo de pensar parece que alivia o peso sobre nossas costas.

 

Quando estava traduzindo poemas de Boris Vian, fiquei sabendo que Letícia Coura (cantora, escritora, atriz e tradutora) também gostava muito dele e estava criando versões de suas músicas em português. Fui visitá-la para conversarmos sobre nossos projetos. Anteriormente, ela já havia traduzido peças do dramaturgo Bernard-Marie Koltès e me presenteou com um lindo livro editado pela Hucitec. Nossa ideia era levar, paralelamente, os dois projetos de Vian e, ao final, fazer a publicação do livro de poemas com um CD encartado. O desejo de juntar os dois projetos num único objeto acabou não se concretizando. No entanto, em 2001, fizemos um lançamento conjunto desses trabalhos na praça de convivência do Sesc Pompeia, que atraiu muita gente. Após o lançamento, o ator e produtor Ivam Cabral (fundador da companhia Satyros, recém-aportada em São Paulo, na praça Roosevelt) idealizou uma peça de cabaré a partir das músicas e dos poemas traduzidos. A peça ficou um bom tempo em cartaz. Foi muito divertido e emocionante participar disso tudo.

 

O poema "Cartão-postal" foi escrito a partir de uma solicitação do poeta e crítico literário Manoel Ricardo de Lima, para compor um livro-homenagem a Ana Cristina Cesar. Relendo o livro Inéditos e dispersos (São Paulo: Ática, 1999), da poeta, percebi que poderia haver algumas conexões com o poema "Je voudrais pas crever" de Vian. Ambos os poetas pareciam ter uma curiosidade bastante irrequieta, uma sede de conhecimento. Vendo em retrospectiva, parece que tinham uma pressa, uma urgência de viver experiências múltiplas. Aí fui misturando fragmentos de versos de Ana Cristina com aspectos de sua biografia, fui fazendo uma colagem, com base nessa ideia de não morrer antes de realizar muitos sonhos. Lá pelas tantas até entrei no poema como personagem ("não quero morrer sem experimentar óculos para daltônico"). Foi um jeito de sonhar junto com a poeta.

 

Apesar de já ter sido condecorado com a Grande Espiral (La Grande Gidouille), ainda precisaria fazer muitas artes para chegar ao posto de Sátrapa Fundamental. Ocorreu-me agora que o multiartista Flávio de Carvalho, com seu figurino tropical (conjunto com saia), desfilando pelo centro de São Paulo, seria um bom candidato a Sátrapa aqui no Brasil.

 

 

RP - Como você chegou a Paul Keineg, autor pouco ou nada conhecido no Brasil, e por que decidiu traduzi-lo?

 

Proença – Simultaneamente à tradução de Boris Vian, nos anos 1990, cheguei a traduzir também um livro de poemas em prosa de Edmond Jabès que, afinal, não publiquei. Por volta de 2010, eu estava procurando outro poeta de língua francesa para traduzir. O amigo, poeta, tradutor, músico e ensaísta Álvaro Faleiros chegou a me sugerir dois poetas de quem ele gostava.

 

Foi então que meu irmão e minha cunhada (Luís e Isa) me trouxeram da França uma antologia da poesia francesa do século XX (Anthologie de la poésie française du XXe siècle. Paris: Gallimard, 2000). Quando li os poemas de Paol Keineg ali apresentados, tive a forte intuição de que era o poeta que eu queria traduzir. Para confirmar a escolha, encomendei na Livraria Francesa Les trucs sont démolis (Bussy-le-Repos: Obsidiane; Mazères: Le temps qu’il fait, 2008), uma linda antologia de toda a poesia publicada por Keineg entre 1967 e 2005. E me pus a traduzir poemas principalmente dos livros Histoires vraies e Dahut. A tradução de Histoires vraies acabou sendo editada com o título de Histórias verídicas (São Paulo: Dobra Editorial, 2014). Dahut foi publicado em uma linda edição artesanal fora de comércio (Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2015). Além disso, também publiquei uma série de seis poemas chamada Chez les porcs (Entre os porcos), retirados do livro Là et pas là (Mazères: Le temps qu’il fait, 2005), igualmente em edição artesanal (São Paulo: Pãooupães Editorial, 2018). E, por último, também em edição artesanal, traduzi dez poemas do livro Mauvaises langues (Línguas más) (Bussy-le-Repos: Obsidiane, 2014), publicados pela Galileu (Londrina: Galileu Edições, 2020). Assim como no caso de Boris Vian, o que me atraiu na poesia da Paol Keineg, além de sua criatividade, foi a particularidade de um humor muito sutil, algo melancólico, associado a um inconformismo potente. Quem ler, verá.

 

 

RP – Você também traduziu Um certo Pena, de Henri Michaux. Que afinidades você vê, se é que há, entre Michaux e sua poesia?

 

Proença – Eu ainda estou descobrindo Michaux. Ele é um continente. Sua obra completa na Pléiade está reunida em três volumes! São milhares de páginas. Por enquanto não estão claros para mim os vasos comunicantes entre Michaux e minha poesia. Para traduzir, escolhi Um certo Pena (Londrina: Galileu Edições, 2022), conjunto de textos em prosa centrados em um personagem cheio de estranhezas. É um personagem que está o tempo todo vivendo pesadelos, situações de humilhação, de julgamento. A estranheza é tanta, que soa como se fosse um personagem kafkiano. Acho que Pena é um personagem típico do mundo contemporâneo, que se vê à mercê do capricho alheio. Parece não ter domínio sobre a própria vida. Por mais esquisito que ele seja, o seu desconforto diante da aspereza da vida me fala muito de perto, tem muito a ver com a minha sensibilidade. Michaux deixou pouquíssimas pistas biográficas. Pena é considerado por Jean-Michel Maulpoix (Le passager clandestin. Seyssel: Champ Vallon, 1984) uma espécie de alter ego do escritor.

 

 

RP – Seus livros estão repletos de bichos e frutas. Por quê? Você se interessa por prosopopeias?

 

Proença – Certa vez li em Stephen Hawking que tudo no mundo são diferentes formas de concentração de energia. Um objeto, um poema, carregam sempre a energia de quem nele trabalhou. Eu sou um "apóstolo" desse tipo de pensamento. Acho que a energia cósmica está espalhada, impregnada em todas as coisas e seres. Então, se escrevo sobre animais e frutas, não é pelo interesse por prosopopeias, é porque eles fazem parte de um campo simbólico associado à minha existência.

 

Por outro lado, vejo minha poesia como uma criação essencialmente imagética, visual. E minhas imagens são criadas a partir de coisas concretas. Tenho certa dificuldade com o abstrato. Talvez por isso minha poesia esteja repleta de seres tangíveis.

 

 

 

 
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