A FRONTEIRA DESGUARNECIDA

 

Pela primeira vez, uma perna quer sair por minha boca, espremida. Um braço quer sair por minha boca. E o que ainda há de genitália, e o que ainda há de intestino, e o que ainda... Quer sair por minha boca. Uma parede, uma hélice, um vidro de janela querem sair por minha boca. Um carro acelerado, um pedaço de mar, um fuzil. Sob o testemunho pânico de alguns, uma desordem no corpo e nas coisas, uma fronteira desguarnecida entre a pessoa e a cidade.

 

 

 

 

 

 

POEMA EM VÃO

(ou POEMA UNGULADO)

 

O que dele me aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. Chifres alinhados do mistério perfurando desde o couro até a lua. Saco de cimento. Lama embrutecida. Trator. Tanque de guerra. Navio encalhado em terra seca. Nunca escutei sua voz, que do silêncio anuncia estrondos.

Se vós pudésseis me escutar, ó santos, por dentro dos adornos das paredes, pediria a salvação. Não a minha. Não a do amor. Nem a da humanidade: fazei com que os rinocerontes vivam (com sua maravilhosa estranheza) ainda depois do mundo acabar.

 

 

 

 

 

 

O ALFERES

 

Se a vida o quisesse de novo, voltaria, desdobrado, com as dez vidas que não teve, mas que lhe deram ao matá-lo. Pelos dez cantos do mundo, voltaria, com destino vário: o das dez partes em que os cavalos o cortaram. Voltaria com os pedaços espalhados: as pernas conspirando na Europa, os braços maquinando pelo sul, a cabeça proliferando em todas as cidades. O desejo de voltar segredado pelas praças. Se a vida o quisesse de novo, voltaria, despedaçado.

 

 

 

 

 

 

CANUDOS

 

Lugar que esconde uma sílaba, degolada, debaixo do cangaço. Uma história de facas, o ventre da seca destripado. A vida pelo avesso na defesa do milagre. A bandeira do delírio construindo a resistência na cidade. Paredes do divino, sinos, ladainhas do combate. Do meio da raleia congregada, a lição conselheira se espalha, invadindo as capitais: a balbúrdia do silêncio alucina.

 

 

 

 

 

 

AMOR FATI

 

Três horas. Madrugada chuvosa. Agosto de 1997.

Bianca dorme sonhando com uma coroa de ouro

com olhos incrustados por toda a circunferência

a girar em velocidade infinita perdida pelo cosmos.

Passeará por todas as galáxias antes do amanhecer,

e acordará sorrindo e cantando para mais um dia.

Passos perambulam pelo andar de cima. O vizinho

insone prepara a dicção apropriada para a frase

imprevista ou a resposta pedida pelo jornal

que a publicará adulterada na semana seguinte.

No apartamento do segundo andar do número 156

da silenciosa rua David Campista, bairro Humaitá,

cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, sem nenhum

motivo aparente, sem aviso prévio, sem qualquer vínculo

com o que vinha acontecendo até então, vem-me o tranco exigente de musculaturas para suportá-lo: tudo é ridículo. Ridículo olhar nesta direção, mudo o foco, descobrindo serem este e todos ridículos; ridículo aqui neste momento, troco de lugar várias vezes e, sempre, o ridículo; tão ridículo o que me passa pela cabeça, que deixo mais resíduos chegarem e partirem, mas todos ridículos; ridículo até pensar que tudo é ridículo. No meio do desconforto de todas as possibilidades, a gargalhada eclode pelo rim, pelos hilos, pelos ligamentos, pelos pêlos, sentindo-me livre doravante para o que quer que esteja acontecendo.

 

 

 

 

 

 

CODICILO

 

Emito gritos de socorro, acaricio cabeças pendidas, festejo a entrada da primavera e pereço na calçada mais próxima.

A balbúrdia nos ouvidos da cidade,

a paisagem nas pernas dos caminhos,

o acontecimento que, à minha revelia, me incrementa,

rearranjam os meandros de meu corpo. Despenco, a cada dia, de mim mesmo, renasço do outro lado das alturas: muito mais oceano do que braços, mais trânsito do que pele, mais ruídos do que cérebro. Não tenho por lugar

turísticos belvederes, mas o emaranhado das ruas populosas

e recantos por onde encontro o esquecimento.

Sinto o cheiro espesso da gasolina escorregando por entre as veias, sinto seu gosto no copo do qual beberei, sinto o ritmo derrapante das inquietudes.

Como a leitora cobrindo com esparadrapo frases de um livro,

como um homem amontoado no meio da multidão,

sigo, arrastado pela força que leva as aves a emigrarem1.

E não desiste, a sede: como o mar, imorredoura.

 

 

P.S.  -  Alguém que não foi nada na vida me disse que tudo valeu a pena.

 

 

1Verso de Fernando Ferreira de Loanda, em Kuala Lumpur.

 

 

 

 

 

 

SEBASTIANÓPOLIS

 

Há um tanque de ferrugem afundado no esquecimento azul das marés,

um avião riscando uma linha de espuma no mar tranqüilo do céu,

uma baleia encalhando seu prédio em fumaça nas praias de ontem do centro da cidade,

o braço póstumo e amputado de S. Sebastião andando cinza em nossa língua,

enfiando sua mão sem peso no bolso veloz e moreno das manhãs,

bebendo um trago elétrico nos bares assaltados por delírios,

precipitando carros do desespero para curvas com oitis traiçoeiros,

talhando, com machado, cutelo, foice, um corpo de madeira e carne, de galhos aflorando no lugar do pensamento, de joelhos pendurados no tronco, expostos para a fome passageira,

desgrenhando a cidade,

plasmando ruas, distribuindo águas,

unindo e separando homens para guerrearem entre si por espaços, comida, dinheiro, praias, carros, por qualquer supérfluo que lhes agradar,

há paredes da perturbação, astrolábio, bucetas, crisipo, fomes de marisco,

um corpo estendido sobre o tapume,

morto,

a frase incomparável de um acusado na boca dos jornais,

há satélites que, parados, subitamente se deslocam velozes, sem barulho, cruzando o céu de ponta a ponta como aquele corpo desabando perdido pelo espaço e resgatado por entre os astros, planando nas garras metálicas de uma nave cravada na história e nos devaneios de qualquer solidão,

há buzinas expressando outras inquietudes das que conseguem as palavras,

há o capim cobrindo as sílabas dos paralelepípedos,

desvios, atalhos, parapeitos,

casais de namorados combinando todas possibilidades sexuais,

travestis, telefones, tomates, tíquetes, tamborins, tacos de sinuca espalhados pelos bairros,

há próteses involuntárias acoplando uma cabeça eqüina ao gabinete de um computador, uma esquadria de alumínio a chumaços de algodão, um caderno emperrado à grade patinada de um berço,

há a suspensão da gravidade,

um cheiro de explosão e maresia por onde quer que passo,

um gosto de asfalto quente no suor de feira livre a cada dia da semana exalado pelas guelras pálidas dos peixes,

há reticências por todos os lados

 

 

 

 

DE PRÊMIOS, ARMADILHAS

E OUTRAS COISAS

 

E não adianta pensar em mudar de vida, comprar uma casa no campo, viajar por lugares exóticos,

morar numa cidade ainda mais cosmopolita,

ter filhos ou não tê-los,

aposentar-se logo que possível... não, não adianta: a vida,

a nossa espreita em cada esquina,

ungindo os cheiros das distâncias, os planos da economia, a subida do dólar, o amparo da alegria, a visita dos amigos,

a vida tem, a nossa revelia, seus prêmios

e armadilhas para distribuir. Não,

não adianta pensar em mudar de vida (todo lugar é Rio),

mas viver a vida, vivê-la na cidade, no campo, no mijo,

no mosteiro do himalaia, em ivolândia... dar aulas na universidade, publicar um livro sem leitores, vender imóveis alheios e depauperados. Viver, viver a vida,

vivê-la a cada instante, subir seus picos, frios,

no sol ou na noite, o da pedra do sino, o da bandeira,

o kilimanjaro, e depois descê-los, aproveitar as madrugadas

de peitos e vagina, de pêlos e pênis, o amor encontrado

ou perdido, exercitando sempre, passo a passo,

o vigor possível: em longas caminhadas,

quem enxerga são as pernas.

 

 

 

 

 

 

TUDO ACONTECE AGORA

PELA PRIMEIRA VEZ,

 

mesmo o lixeiro varrendo a rua varrida ontem, antes de ontem, desde dois anos atrás,

a vizinha tirando o carro da garagem, ou a outra

ensaiando ao piano uma canção popular, tudo acontece agora

pela primeira vez,

este vento que tremula o toldo na varanda,

o tempo cinza, o toque do telefone, o gato atravessando a rua no momento possível,

a chaminé da clínica médica em constante atividade...

Escrevendo estas palavras, não tenho o nome que tenho,

tenho o nome do tempo que passa, o nome ausente, a ausência de qualquer nome. Não se pode caminhar

duas vezes pela mesma rua, ele disse, não se pode caminhar

nem uma vez pela mesma rua. Como escrever a terceira frase,

a necessária,

a que diria, enfim, quem e por onde...? A que diria, enfim,

o que não poderia dizer. A que diria, enfim, que eu

e ele somos a mesma pessoa, que somos ambos o inapreensível.

A casa em que moro. A cidade que me habita.

Nem ao menos a campainha tem soado, o carteiro não toca há alguns dias

(os carros passam, para garagens residenciais

ou públicas), o entregador da lista telefônica

acaba de bater, desmentindo a frase mencionada (passa um homem vendendo cocada

para os operários da obra ao lado. Eu,

operário da obra ao lado, compro uma cocada

para meu filho), mas não atendo ao chamado.

Para que ser importunado, para que tantos telefones,

se não ligo ao menos para os amigos?

Não lhes telefono por ter muito a fazer,

ficar sentado no sofá, olhar as sombras da rua desenhando figuras na parede da sala, ora nebulosas, ora nítidas,

tomar um copo de água para matar a sede

que nem tenho ou por outro motivo qualquer que me escapa,

não lhes telefono por ter a cabeça da mulher amada

no colo, ao som de Cartola, João Gilberto e Pixinguinha,

por ter de escutar a respiração indo e voltando

feito o porteiro do prédio da esquina ao lavar os carros de moradores de toda a rua, subindo e descendo pela calçada ininterruptamente.

As televisões ligadas na hora do jantar

medem o tempo passando, arrastando-se,

reprisam o velho acontecimento para descansar as pessoas

do fato de que tudo acontece agora

pela primeira vez, difícil suportar o fato

de que tudo acontece agora pela primeira vez, inclusive

essa reprise, o cheiro de feijão com lingüiça e toucinho

pelas janelas, o radinho de pilha do segurança da rua

narrando um jogo qualquer, os cantos diários do pavão por entre o sono, o vento e os parcos ruídos matinais... Nove de setembro,

não, quatro de abril, também não, três de dezembro,

pouco importa, talvez sejam dez mil duzentos e vinte e dois dias

desde a data em que nasci, talvez o triplo, talvez a metade,

tanto faz, há muito não sinto a secura no ar como a de hoje

(isso afeta a memória?), as plantas, antes verdes,

amarelecem,

necessário encharcar a terra do vaso duas vezes ao dia,

espargir água em suas folhas, a secura, ao menos,

é boa para os livros sempre úmidos neste apartamento colado na mata, boa para as páginas que terão o excesso enxugado,

não mais colar-se-ão umas às outras, sim, eu agradeço

a aridez por me curar da hidropisia, não precisarei

me enterrar em um monte de bosta, quem quiser poderá folhear-me, sentir a porosidade do papel em suas mãos,

ler as palavras que, seguindo o fluxo dos acontecimentos,

se desdobram em mais um entre eles, com eles, como eles,

acontecendo agora pela primeira vez, a sua frente, em torno

e dentro de você,

como continuará a cada encontro futuro.

 

 

 

 

 

 

AUTOBIOGRAFIA LITERÁRIA

 

Se das águas que correm do chamado Rio,

armazenam pedras, semáforos, blitz, informações estagnadas, coito interrompido, por outro lado,

palavras líquidas

me encharcam de marés, correntezas,

rodovias desimpedidas, gozo de frases fluindo em direção às que transbordam do submerso, com suas sirenes,

indetidas. Rio, lago, lagoa, baía... tantos nomes... tantos janeiros... na língua que falo, tudo é um só movimento de águas e trânsitos,

o primeiro tempo inundando o último segundo,

o murmúrio do mundo no discurso,

a suja rasura da dúvida e da pergunta,

na língua que falo, fala o percurso do primeiro susto, o sussurro da comunhão de tudo o que é raso com o fundo. 

Trago a nudez de nervos na língua de mil sons agenciados. E o que a língua não fala, falam os braços, pernas, buzinas, ondas, engrenagens... Não tenho leis, dizem,

nem religião ou trabalho, dizem

que, por isso, sou estranho,

sim, sou estranho, abro palavras pelas ruas, ao lado de buracos, pelas farmácias, ao lado de remédios, pelos bancos, ao lado de cofres, pela vida,

ao lado de vantagens, sim, sou estranho,

recolho do mundo uns tiros de espanto,

balas ferindo para fazer viver.

Uma certa inquietude me conforma com esta estranheza,

uma inquietude áspera, de instintos

entrelaçados ao pensamento, de começos coexistindo por todos os cantos,

de errância permissiva de gerações, de construir o que,

para ser habitado, tem de ser logo abandonado.

 

 

 

 

 

 

NO MEIO DO CAMINHO DE MINHA VIDA

 

... e como eu entrava no trem, distraído, e como seria longa a viagem, eu lia, e, como lia, eu estava distraído

de todos que sentavam ao meu redor;

estariam eles, meus vizinhos, também distraídos?,

ou, por estarem em seu país, não podiam se distrair?

Uma mulher, ao lado, disse: rodei o mundo inteiro, do japão à amazônia, da terra do fogo ao alasca,

sabe para quê?

Para fugir de mim mesma... mas agora estou parada,

não tem mesmo jeito, não adianta fugir, e, se não adianta fugir, para que viajar?, é melhor ficar parada,

agora, estou parada.

Eu escutava a conversa, distraído, e lia,

e já não sei se lia nem se estava distraído nem se escutava a conversa nem se havia trem em que eu estivesse distraído nem, pior ainda, se algum mim havia,

ou se, agora, é que, distraído,

invento essa estória de trem, mulher, passado, viagem, invento a conversa no trem com uma mulher numa viagem do passado,

e se eu invento isso, distraído, e se não tiver tido passado,

se tudo for mesmo só vertigem, descubro-me

a personagem da estória que pensara inventar (a mulher),

o antídoto contra a fuga de mim mesmo

e contra qualquer mim mesmo,

descubro-me o semblante da paisagem no tempo, a invenção do esquecido, um ato de fé,

como pôr uma bomba ou atear fogo a uma cidade, 

a um país, a uma pessoa,

descubro-me este esbarro no arroubo do imprevisto, aqui, neste quarto, neste trem de onde nunca saí — minha única viagem —, descubro-me, assim, poesia.

 

 

 

 

 

 

DE PRÊMIOS, ARMADILHAS

E OUTRAS COISAS, NO 2

 

E não adianta pensar em se entregar ainda mais à vida, largar o emprego medonho, realizar o antigo sonho

de ser o que se acredita ser,

achando resolvido todo e qualquer problema. Não,

não adianta: não somos a solução embolsada,

mas isso de que jamais escapamos

na busca do impossível horizonte. Somos a vida

estendida entre o chão e o abismo,

as variações aleatórias que ela mesma, a vida,

nos distribui em prêmios e armadilhas, a velocidade com a qual, aturdidos, nunca nos acostumamos.

Não, não adianta pensar em se entregar ainda mais à vida

supondo baixo o preço a ser pago,

mas de receber o que nos é a nossa revelia.

Desconhecemos a salvação. Acabamos

nos lançando, sim, a uma intensidade maior,

e, desprotegidos, sob o risco constante

de você só tornará as coisas piores,

sob o risco constante do malogro,

não vivemos da melhor maneira: mas da maneira possível.

 

 

 

 

 

 

POEMA DA CONSTATAÇÃO RETORNANTE

 

Uma máquina de carne caminha por entre carros.

O mar da cidade não protege essa máquina.

Ela vai por entre o trânsito de outras máquinas,

sem pensar que está sozinha,

que pode ser esmagada por um leve susto

de outra máquina. Essa máquina

não pensa em nada — não precisa pensar em nada —,

mistura-se a ferros, vidros, borrachas

e parece agüentar qualquer rojão.

Às vezes, penso que a máquina entre máquinas não precisa de proteção, desde que o motor de carne pegue pelas manhãs e funcione ao longo de todo o dia.

Se é verdade o que às vezes penso,

se é verdade que essa máquina não precisa de proteção,

se é verdade que, custe o que custar, essa máquina não pode parar, tanto faz agora ser essa

a cidade ou outra qualquer ou aquela ainda mais longe, tanto faz, se o mar não protege essa máquina,

se essa máquina vai por entre o trânsito de outras máquinas.

Essa máquina vai por entre o trânsito de outras máquinas

de qualquer cidade. Essa máquina,

que já não pode parar, que parece agüentar qualquer rojão,

que às vezes penso não precisar de proteção, essa máquina

paga um preço

sem lembrar-se que paga. Mesmo as máquinas que não querem pagá-lo, as que fogem por novas ruas abertas na fuga,

as que sabem que habitam essa cidade com seus mares (e não outra), acabam pagando, mais cedo ou mais tarde, um preço — lembram-se, entretanto, que o pagam... Inquietamente,

aceitam o adentrar de cada uma em seu quinhão.

 

 

 

 

 

 

A LUTA ANTES DA LUTA

 

Você sabe, de nada adianta rezar no canto do ringue.

Aquele que o sobe, sobe sozinho.

As bravatas lançadas na hora da pesagem

e o peso da multidão colado em sua carne,

você sabe, lá em cima, só aumentarão seu abandono.

Você sabe também o preço que terá de pagar

se deixar que qualquer vagabundo desfigure

sua fisionomia. Mas é isso que você quer?

Não é isso que você quer. Aconteça

o que acontecer, não jogarei a toalha, não é para isso

que chegamos até aqui... Você ainda é muito novo

para perder, e sua família, muito necessitada. Você sabe,

você tem de deixar seu passado para trás, eu sei que você

não quer voltar para as ruas, para o crime, para a cadeia...

Portanto, quando subir lá em cima, eu lhe digo,

não deixe que o adversário veja medo em sua face:

se, ainda antes do primeiro soar do gongo, ele

vislumbrar uma mínima expressão de temor em seu rosto,

conhecerá o caminho mais rápido

para encontrá-lo durante o combate. Mas você

não terá nenhum instante de fraqueza nesse combate,

você está preparado, eu sei que você está preparado,

e você também sabe disso. Ninguém quer acordar amanhã

num quarto de hospital... você quer acordar

num quarto de hospital balbuciando palavras desconexas?

Ein? Você quer acordar num quarto de hospital,

com sua mulher chorando preocupada ao lado da cama?

Não, você não quer isso pra você nem pra sua família,

nem eu quero isso para o meu garoto de ouro. Por isso,

treinamos duro, por isso, treinamos tanto. Então, vá lá

em cima, já estão anunciando seu nome, suba

para o quadrado, suba, já começaram a tocar a música,

vá para o ringue e, no meio do entrevero,

por entre as saraivadas de golpes,

faça seu adversário sentir o peso do esquecimento

carregando-o para longe do estádio, carregando-o

para longe de todo e qualquer lugar.

 

 

 

 

 

 

A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ

 

Tanto silêncio no ringue, no ringue

e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,

que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes

na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe

revolvendo as entranhas pelo avesso

(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,

tanto silêncio no ringue, no ringue

e na fome, tanto burburinho zoando

simultaneamente, que não posso distingui-los.

O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue

(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue

da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,

e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,

no canto do amparo — sentado, curativos imediatos,

os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca

de um ponto pacífico —, ouço a voz nítida do treinador

se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,

não a escuto como um mandamento: infiel

e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz

desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho

do meu coração, espremê-lo ao sumo,

ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar comprimindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,

me dando a certeza de que o próximo soar do gongo

será o último badalo com o qual meu adversário sonhará

antes de beijar a encardida lápide da lona.

 

 

 

 

 

 

ARRANJO PARA ESSES CAMPEÕES DA PALAVRA

 

Não posso ser poeta, não sei contar histórias... Se eu fosse um toureiro, faria o público acreditar que eu estava a poucos centímetros da morte, mas manteria minha margem de segurança. Foi o que fiz no ringue. Nós, lutadores, compreendemos as mentiras. O que é uma simulação? O que é pensar uma coisa e fazer outra? Os melhores garotos são aqueles que até podem tomar um murro na cara, mas são inteligentes o bastante para não o querer. Quando soa o gongo, somos apenas duas solidões. Não temos medo de apanhar, mas temos medo de perder. Uma derrota no ringue não se compara a nenhuma outra. Eu combatia com qualquer um. Não me interessava quem eram. Era simplesmente indiferente para mim. Eles me batiam, eu não me importava. Quando estou no ringue, luto pela minha vida. A luta pela sobrevivência é a única luta. Por cinco dólares, eles podiam me golpear no queixo com uma marreta. Quem já ficou dois dias sem comer poderá entender. E comer é um vício difícil de largar. Quando se luta, se luta por uma coisa: dinheiro. Acho que o campeão que eu sou hoje é pela dificuldade que eu passei. Nunca fui nocauteado. Já estive inconsciente, mas sempre de pé. Detesto afirmar isso, mas é verdade: quando começa a doer, é quando eu mais gosto deste negócio. Quando vejo sangue, fico como um touro. Sou um animal selvagem, inimigo declarado de toda a raça humana. Uns dizem que sou arrogante, outros, que preciso de uma boa surra, e outros, que falo muito. Mas eu garanto o que digo. Eu não quero nocautear meu adversário... quero golpeá-lo, me afastar e vê-lo ferido. Quero o seu coração. Ele pode fugir, mas não pode se esconder. Tento acertar na ponta do nariz do meu adversário porque tento lhe enfiar o osso no cérebro. Se abrirem minha careca, vão encontrar uma grande luva de boxe. É tudo o que sou. É disso que vivo. Celebridade? Eu? O pessoal lá de onde venho diz que eu sou um vagabundo sortudo que sabe dar umas porradas. Quando você não é mais o campeão, está sozinho. Alguns ficam insanos, outros começam a beber, pois o boxe é muito intenso, e muita gente se perde. Você agüenta até certo ponto, depois quebra. Tenho tudo de que preciso: o médico mora aí em frente, o farmacêutico trabalha na esquina; daqui, posso ver a câmara-ardente, e o cemitério é logo ali embaixo na rua.

 

 

 

 

(imagens ©man ray)

 

 

 

 

Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro, em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os livros Na cidade aberta (Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1993); Escritos da freqüentação (Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995); A fronteira desguarnecida (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1997); Ecometria do silêncio (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999); A vida é assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001); Escritos da indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). É o autor de Guia conciso de autores brasileiros (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002), com Caio Meira. É o organizador de Poesia (e) Filosofia, por poetas-fiósofos  em atuação no Brasil  (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1998), com a participação de Adélia Prado, Alberto Pucheu, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho. Traduziu Tagore, Rabindranath, O coração de Deus (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004), poemas místicos. Em 2007, lança A fronteira desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007) e seu livro de ensaios Pelo colorido, para além do cinzento, ambos pela Azougue Editorial. Mais em seu site.