duchamp por duchamp
 
 
 
 
 
 
 
 
 

"(...) tudo aquilo que é de uma lógica demasiado irresistível, tem oculto no seu interior um pequeno gancho que um dia nos arranhará a pele".2 Ernesto de Fiori

 

 

        Março de 2003, cerco-me da entrada do majestoso edifício da Galeria Nacional de Arte Moderna, em Roma. A expectativa é grande: finalmente ver o belo e desconcertante conjunto de esculturas em cera de Medardo Rosso, ali significativamente preservado. Deparar com a magnitude de Giovanni Fattori e Domenico Morelli com suas gigantescas cenas de batalhas e outras pinturas históricas. Estar diante de originais de Giacinto Giganti, Giuseppe Pelizza, Boldini, Mancini entre outros que aprendera a apreciar por meio de ilustrações, e que me revelaram um deslocamento do paradigmático movimento Impressionista. Revelação de que as raízes impressionistas encontravam-se além das fronteiras francesas. Finalmente o desejo de anos, de buscar evidências reais deste deslocamento se concretizava, ali, em um dos mais fascinantes museus do mundo  (ainda que pouco conhecido, inclusive pelos próprios romanos).

Dentro, afinal, o prazer inenarrável dos sentidos. Sucedem-se Modiglianis, De Chiricos, Morandis, Sironis, Manzús, De Pisis, Guttusos e Carrás. A descrição arquitetônica do interior, entretanto, não condiz com o que se vê pendurado nas paredes, mas isto tornava-se uma questão menor.

Inesperadamente uma grande, magnífica surpresa: um Klimt (As três idades, de 1905). Aguardavam-me outras. A segunda grande e inesperada surpresa igualmente reveladora, confesso, não foi tão impactante: uma coleção de obras de Marcel Duchamp, as "famosas", as "bibliográficas" peças ready-mades como o porta-garrafas, a pá para a neve, o urinol, e mais La boite-em-valise, única identificada como pertencente ao acervo da Galeria. Logo me veio a pergunta "é então aqui que elas estão preservadas?" "Um conjunto assim tão completo de peças consagradas pertenceriam a uma mesma coleção?" "E logo a de um museu importante, mas pouco conhecido?" "Na Itália?!" "Como vieram parar aqui?". As dúvidas logo levantaram suspeitas de que deveria tratar-se de cópias, ou mais precisamente, de uma seriação. A Valise em questão tratava-se da edição III/20 datada 1936-1941, que pertencera a Henri Pierre Roché. Duchamp, na minha experiência de jovem expectador, deixava de ser um relato de outrem, um fato construído a partir de relatos literários e reproduções imagéticas para tornar-se uma experiência apreendida diretamente. Legitimado pela visão de seus objetos reais. Experiência esta que, não sem um mal-estar, começava a dar os primeiros subsídios para sua "desconstrução".

Março de 2004, a mostra histórica Soñando con los ojos abiertos está em cartaz no MALBA - Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. O apêndice do título dada y surrealismo en la colección de Vera y Arturo Schwarz, Museo de Israel, Jerusalén trata de estabelecer — numa atitude museologicamente honesta — que a exposição circunscreve o papel de uma coleção em sua limitada ambição de representar um movimento artístico. Lá dentro, novamente a pá para neve, o porta-garrafas, etc... Desta vez, porém, uma explicação mais extensa contextualiza a relação mercadológica e de amizade que o marchand Arturo Schwarz estabelece com Duchamp. Por ela se explica o mecanismo — no caso, o interesse comercial de ambos — que teria levado o artista a reeditar seus objetos já por volta dos anos 50. A piada contada duas vezes apela para a compreensão lógica. Perdendo o caráter surpresa, ela também perde a "graça". Duchamp está desconstruído.

Alheio a estas duas experiências, já de volta ao Brasil, um forte sentimento de retomada de experiências relevantes e prazerosas na fruição com a arte, me impulsiona a retomar a investigação da obra de um outro artista, no caso, o escultor e pintor Ernesto de Fiori (Roma, 1884 – São Paulo, 1945).

Nascido na Itália, mas de origem italiana e alemã, aos 20 anos de idade de Fiori partiu para a Alemanha onde foi aceito na Academia de Artes Plásticas de Munique. Retornando a Roma no ano seguinte, não deixaria de manter um longo contato com artistas, amigos e professores alemães, mesmo durante sua passagem por Londres, Paris, Zurique.

Mas afinal, o que de Fiori — até certo ponto um ilustre desconhecido — teria a ver com Duchamp? O particular interesse que naquele momento me movia a investigá-lo conectava-os no fato de que de Fiori fora contemporâneo de Duchamp, sendo também um artista da vanguarda modernista européia e um dos grandes criadores do século XX; cujo conjunto da obra poderia ser descrito como figurativo porém sem deixar de ser moderno, ou até, pelo contrário, talvez mais legitimamente moderno do que haveria de ter sido aqueles consagrados artistas futuristas, dadaístas, expressionistas, e outros representantes dos movimentos apologística e hegemonicamente tratados como "modernos". Discreto, inteligente, dedicado e ao mesmo tempo crítico sagaz de seu ofício, ele participou das correntes artísticas daquele período sem ter se vinculado a nenhuma delas em específico. Ao revés, sua mordaz argüição das idéias propagadas por seus contemporâneos nos círculos da "arte nova" teve por decorrência seu isolamento intelectual.

O que se sabe hoje sobre sua obra é fruto de dois trabalhos que recentemente consolidaram seu pensamento artístico apresentados em duas exposições: uma de 1992 no George Kolbe Museum de Berlim (basicamente composto por esculturas) e a retrospectiva exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1997, resultado do trabalho da pesquisadora Mayra Laudanna, curadora da mostra, que detalha o seguinte: "durante os anos em que vive em Paris, de 1911 a 1914, de Fiori produz e participa de discussões sobre as novas artes. (...) Em Paris, freqüenta o Café du Dome, onde intelectuais e artistas, como os do chamado 'círculo alemão' de Matisse, reúnem-se para discutir a nova arte e as inovações de Cézanne. Após deixar a França, em 1914, retoma suas atividades artísticas somente no segundo semestre de 1917, pois desde 1915, está engajado na Primeira Guerra Mundial como correspondente de um jornal italiano. Abandona as trincheiras alemãs antes do término do conflito e segue para a Suíça, país neutro, onde residiam muitos artistas, críticos, historiadores avessos ao combate armado (...) a partir de 1918 encontram-se artigos escritos pelo artista, que explicitam sua luta pela nova arte.

Em 1918, em Zurique, os fundadores do Cabaré Voltaire abrem uma exposição dadá na cidade, reivindicando uma nova arte e explicando no catálogo da mostra o que é essa nova arte. Contrário aos trabalhos que os dadás apresentam, de Fiori escreve um artigo-manifesto em que também declara sua oposição aos chamados cubistas e abstracionistas, e esclarece o que é, para ele, a nova arte. Para o artista, a arte não é um 'jogo lúdico' picassiano ou um 'jogo arbitrário de sombras coloridas ou uma superfície 'ritmicamente' borrada (à la Kandinsky)', tampouco uma 'brincadeira' de 'pintar' tábuas serradas, colar cartões, cacos de espelhos. Ironizando essas artes, afirma que o artista que assim produz é 'demasiado modesto' o que também demonstra covardia, pois, de acordo com de Fiori, eles não enfrentam a 'bela luta com o mundo, consigo mesmo e com o passado'. De Fiori discorda das propostas que excluem a arte precedente, daí a crítica aos dadaístas, uma vez que ele considera a arte anterior como referência que possibilita a distinção entre o 'velho' e o 'novo'"3. Segundo de Fiori "o cubismo não é mais que um meio, uma parte de nosso método para chegar à verdadeira escultura ou à verdadeira pintura, que devem ser uma similitude de espírito do qual este universo é feito. Ele não é feito só de relações de volumes e de cores, é feito de mil qualidades espirituais, que, correlacionadas, dão-nos as sensações de alegria e dor"4.   

Ao comparar os escritos de de Fiori de 1918 com os de 1941, o professor Leon Kossovitch percebe que para o artista a tradição e a pesquisa são dois momentos de uma só reflexão: a de "que o espírito, seja como tradição seja como inteligência livre, suscita o jorro do tempo para além das inteligências das formas".5 Para Kossovitch "na polêmica de 1918, de Fiori insiste em que a entrada daqueles artistas na 'nova arte' equivale à fuga da arte, o argumento associa fuga e inépcia: dando as costas à arte, os novartistas demonstram não suportar as exigências que ela impõe. A fuga significa desistência e esta implica o desejo: os dadaístas desistem do desejo, assim, da verdade que com ela poderiam agir. Quanto a de Fiori, confiante no inconsciente, pôde enfrentar a tradição e a forma, sem ter de transigir com ela".6

Será preciso deixarmos um pouco de lado a interpretação maniqueísta, para começar a visualizar minimamente uma condição de igualdade, onde seja possível observar Duchamp e de Fiori como contemporâneos entre si. Logo, eram todos "modernos" em relação ao seu tempo. Se por um lado os "novartistas" ou "modernos" — como hoje nos acostumamos chamá-los7 — articulavam elementos como "novo" e "velho", de Fiori sendo um deles, também o fez. Contudo, onde outros articulavam "velho" e "novo" como antítese, expressando seu ataque ao velho e tomando partido pelo "novo", um grupo de artistas dentre os quais de Fiori tomavam o "novo" como continuidade transformadora/renovadora do passado. Tomemos o contexto europeu da Primeira Grande Guerra para entender o conflito pessoal daqueles artistas em meio a uma humanidade ferozmente lastimada. Havia ali um relativo consenso no que se refere a olhar o passado para tentar dar sentido ao presente.

É talvez aceitável que este tipo de postura, diante dos horrores e do impacto negativo da Primeira Guerra, justificasse a produção de alguns artistas naquele período. Porém, até aquele momento não era esperado que um manifesto niilista fosse se sustentar muito além na seqüência das transformações históricas. Por outro lado, os artistas que formavam parte do bloco genericamente chamado de "retorno à ordem" (exemplificável na escultura de Maillol ou Lehmbruck, e na pintura de de Fiori, entre outros) buscaram outras maneiras de levar adiante um mesmo sentimento de perplexidade e desencantamento.

Resulta que aqueles como os dadaístas que se apegavam à idéia de negação deste passado, propondo aniquilar, zombar ou desmistificar antigas fórmulas, entraram para a história como "modernos". Enquanto que os demais mantidos fora desta corrente, permaneceram "fora da história". Esta idéia haveria de ser reforçada quando nos anos do pós-segunda-guerra e já no contexto da guerra fria, os esquemas historicistas da arte — sobretudo aqueles disseminados por Alfred Barr, então ligado ao MOMA de Nova York — associariam apenas um dos blocos "modernos" às vanguardas abstracionistas norte-americanas.

O atual distanciamento histórico, que optou por reforçar a idéia de que apenas um dentre ambos grupos manteve-se vinculado ao passado e à tradição trata, em grande parte, de uma situação de intolerância e da perda de visão enquanto distintas formas de viver uma mesma modernidade, ou no caso, a partir de distintas maneiras de criar arte nova. Desta intolerância emana a determinação por considerar um grupo como vitorioso, e por conseqüência, relegar o outro à berlinda de perdedor. Equívoco também evidente na atitude de nivelar os demais artistas em termos generalistas como "não modernos", "acadêmicos", "antiquados", "vinculados ao passado", "não importantes", etc.

Sobre este assunto evoco de Fiori que dizia: "Sem história, não há arte: para lá das contingências das formas, a arte é eterna. A um tempo múltipla e una, forma e espírito, a história, entendida como tradição, é chumbo e asas para o artista"8. Para ele, a presença do passado em sua arte não é algo negligenciado ou combatido — como fora nos demais modernistas/vaguardistas/ruptores — porém, ela também não se limita em ser gratuita, ser aceita de "mão beijada". Antes, ela é resultado de uma reflexão, ou melhor dizendo, é resultado de um embate, um enfrentamento, uma luta, uma ação corajosa. Por este raciocínio, a crítica expressa por de Fiori aos dadaístas e outros da "nova arte" justifica a acusação de uma postura covarde, de que quem abandonou o campo de batalha. Pois distanciando-se dele, ou negando-lhe, estariam distanciando-se da arte.

        Podemos valorizar em Duchamp o brilhantismo retórico e a lucidez ao revelar novos aspectos esclarecedores da relação com a arte. Não devemos, porém, esquecer que este valor traz consigo a aceitação de premissas até então vistas como fora do campo artístico, no campo periférico de suas relações (comerciais, museísticas, políticas). Tal atitude permite compará-lo a outro contemporâneo: Salvador Dali. Dali com seus truques, deslocamentos e provocações ocupava parte de seu tempo a provocar um mal-estar nos meios/mecanismos/circuitos artísticos. Inegável reconhecer-lhe a qualidade de exímio pintor, perfeito do ponto de vista técnico (com sua paleta, seu desenho preciso, sua destreza e profícua capacidade imaginativa). Mas também suficientemente esperto para saber que apesar disto sustentar sua popularidade, sobretudo diante de seletos compradores, não impedia que sua habilidade extravasasse o universo sintáxico da arte para, por meio dela, mobilizar o universo simbólico das relações comerciais, dos papéis sociais, da relação com agentes de outros campos como críticos, historiadores, galeristas, etc.

        Dali é o exemplo máximo do artista que logrou ser igualmente habilidoso dentro de uma tradição técnica e ao mesmo tempo assumir o papel de exímio estrategista nas searas circundantes do fazer artístico. Conquistando assim, por meio da subversão, a alcunha de "bufão". Vale lembrar que o caráter propício para esta alcunha reside no fato de promover meios de subversão não da arte, pois nunca permitiu-se ser um "moderno" no sentido de "abstrato", mas das relações que dela se apropriam. Neste sentido, e sujeitando-me aos limites aos quais as simplificações tendem a incorrer, existe um Dali artista, que bem poderíamos tomar por "acadêmico", coexistindo com um Dalí "bufão" e moderno, que articulava deslocamentos da arte, com sua postura extravagante, brincalhona, desconcertante, ou até mesmo perversa e de mau gosto. Talvez seja este o Duchamp que tenha nos restado depois dos anos de trabalho de pintura donde sobressaem o Nu descendo as escadas, ou dos primeiros ready-mades e da participação no Armory show de Nova York. Não à toa Duchamp e Dalí compartiram as idéias dadaístas e surrealistas sem nunca terem permanecido vinculados a qualquer dos dois movimentos. Talvez por terem eles próprios compreendido — cada qual em seu particular entendimento — o caráter aniquilador de suas atitudes, ou quem sabe, ver que suas experiências estéticas não iriam muito além dos limites da "piada" contada repetidas vezes. Restando-lhes então perpetuar o jogo em suas programáticas variações com finalidades comerciais que a história, mais do que a maturidade artística, haveria de valorizar.  

Ainda no âmbito do genocídio promovido pela Primeira Grande Guerra, e de suas implicações existenciais, o outro grupo de artistas modernos batalhava soluções ainda dentro da tradição artística, e por assim dizer, circunscritos ao campo da arte, imbuindo-se da seriedade advinda do "acúmulo de memória" e do "peso" da tradição, sem, contudo, aceitar as regras ou fórmulas artísticas preexistentes. Sobre este assunto manifestava-se de Fiori, segundo afirmação de Leon Kossovitch: "a arte singulariza-se e eleva-se porque é a única reflexão que, partindo do visível para apreender o invisível, zomba das regras que a predeterminam; por isso, também, de Fiori recusa-se a prescrever ou a opinar com base em regras"9. Ainda segundo Kossovitch "a arte imbrica-se na ética, não na metafísica e, menos ainda, na psicologia: nada está mais distante de de Fiori que a relação psicológica ao modelo, que supunha neste uma alma diretamente apreensível. Como a beleza se define com a virtude, a arte de de Fiori singulariza-se por não apagar o ético em benefício de uma pureza formal modernista; mantém-se nele, como essencialmente artístico, o que em alguns modernistas é invasivo; estes substituem a ética pela moral e pela política"10. Dito pelas próprias palavras de de Fiori "a arte sem fórmulas é, evidentemente, uma arte de pesquisa que exige mais um 'laboratório' do que um ateliê, é fruto de muitas experiências, de muitos erros e de infinitas dúvidas. Não é verdade que se possa criar facilmente. Se olharmos à nossa volta, veremos que os artistas que não se contentaram com o maneirismo fácil transformaram-se em incansáveis pesquisadores. (...) Sempre foi e é minha convicção que abusar da liberdade de pesquisa artística é tanto sinal de falta de talento quanto não ter coragem ou não sentir a necessidade dessa pesquisa".11 Vemos aqui que a estratégia adotada pelo outro grupo, sintomaticamente expresso nas palavras de de Fiori, assume uma postura inversa de Duchamp ou Dali, qual seja, fortalecer a arte em seu aspecto transcendente, sua disciplina de caráter, sua seriedade e sua preocupação ética, mais do que moral ou política.

Um fato relevante da percepção de de Fiori a respeito da falta de proposição ética na arte, ou de sua equivocada subordinação às questões de ordem moral e política encontram-se em alguns dos textos que escreveu já durante a Segunda Grande Guerra. Esta aguçada percepção, em meio ao crescente movimento nacional-socialista alemão e à ascensão de Adolf Hitler, haveria de imputar-lhe a decisão, ainda em 1936, de afastar-se da Europa. Desde então, como é sabido, de Fiori estabeleceu-se em São Paulo, onde desenvolveu uma série de pinturas com o tema São Jorge e o dragão, nela simbolizando a luta do bem contra o mal, chegando mesmo a figurar, em uma das representações do dragão, a caricatura de Hitler. Além disso, tal distanciamento permitiu-lhe a publicação de textos críticos sobre os fatos que se sucediam na Europa, talvez impossíveis de serem publicados senão à distância. Um dos textos mais contundentes, publicado em 10 de junho de 1942 no O Estado de São Paulo abordava o tema do parademarsch12.

 

PARADEMARSCH13

 

"O Passo de Parada (parademarsch) dos alemães foi, se não me engano, inventado pelo pai de Frederico o Grande, que não era muito versado em arte grega. Desde então, esse modo de marchar tem se mantido na Alemanha, apesar de todas as tentativas feitas por muitos alemães para suprimi-lo. Esse passo é como uma fé, como uma reza executada com as articulações inferiores. E o nacional-socialismo apropriou-se dela cuidando-a, aperfeiçoando-a, desenvolvendo-a até torná-la um rito ameaçador e macabro, uma espécie de procissão de obcecados...

(...)

... Pois onde se renunciou à liberdade e à dignidade das próprias pernas, virá o dia em que se renunciará à liberdade e à dignidade da própria alma, aceitando-se sem demora e repugnância uma doutrina que hoje nos parece anti-humana e anti-cristã...

(...) Estamos a procura de uma ilha no Pacífico. Quando todos os povos tiverem se acostumado a levantar as pernas rijas nos dias de festa, e os braços a cada dois minutos, para lá nos retiraremos a ensinar a dignidade da arte grega aos selvagens e também aos animais... Não será tempo perdido..."

 

A esta altura é não menos perturbador que o tema da piada contada repetidas vezes estivesse a mercê de ser "reeditado". Refiro-me ao aspecto tautológico que se acentuou à medida que o campo da manifestação artística e a instância da vida cotidiana — novamente no contexto da guerra — pareciam irreconciliáveis. Entretanto há que se considerar que os referidos aspectos tautológicos, por estes tempos, já são desdobramentos da busca por novos mecanismos de expressão. Deve-se supor a igualdade de valor nas diferentes tentativas que visavam soluções para uma questão difícil — as perseguições, as guerras e a desumanidade em geral — sem, contudo, negligenciar que em seus desdobramentos houveram erros e acertos. Seria no mínimo incauto condenar as atitudes drásticas tomando-as genericamente como "animais que perseguem a própria cauda". Ou que, por outro lado, uma única e possível solução estivesse no declarado engajamento figurativo em função desta ou daquela causa. Trata-se apenas de considerar que a discussão sobre a tautologia na arte e seu círculo vicioso é aqui colocada como algo percebido por alguns artistas, que como de Fiori, tendo-a percebido e compreendido, não se sujeitaram a ela. Assim como muitos dos que optaram pela ruptura contribuíram para alargar o campo da arte em um mundo transformado. O equívoco, porém, está em afirmar que estas mesmas transformações tenham esgotado antigos preceitos, ou que delas haja emanado um único e renovador modelo.  Seria razoável concluir que ao longo destes anos todos, e mais ainda, depois de outras sucessivas transformações,  as já antigas propostas "modernistas"  tenham se repetido em nome de uma consagração hoje já fora de contexto. Cabe uma vez mais o renovado exercício de (re)contextualização do fazer artístico como meio de diagnosticar a pertinência de cada trabalho, de cada obra. Infere-se neste exercício o direito à liberdade de expressão, bem como sua conseqüente crítica.

Sim, é certo que Duchamp continua na berlinda, promovendo seguidores anárquicos, bufões, farsantes, especialistas em criar destroços, todos eles exímios "desconstrutores" da arte. Do mesmo modo, artistas como de Fiori, ainda que nem tão diretamente, houveram também de causar "más influências".  Com o que então ocuparmo-nos? Com os cacos de uma arte estilhaçada? Ou com o apego a uma tradição retrógrada? Não sejamos maniqueístas... Herdeiros de tudo aquilo que chamamos modernismo, visto entre outras coisas, no exemplo da coleção de obras da Galeria Nacional de Arte Moderna de Roma, resta-nos vislumbrar horizontes mais amplos. Pleno de modelos de excelência como de contradições e sutilezas; dos quais Duchamp e seus seguidores, computado seu irrefutável valor, não é mais que uma pequena parcela. De maior projeção talvez, mas que de maneira alguma melhor ou pior se comparado aos demais. Talvez seja nossa tarefa concentrar esforços para arrefecer a obscuridade relegada a toda uma safra de magníficos artistas desde àquela geração.

Isto tudo significa renegar a proposta de desconstruir Duchamp no sentido de sua aniquilação, ou da negação de sua importância. Antes, é aceitar a revisão e o correto enquadramento do valor de outros tantos. Revisão no sentido da tolerância, da ação conjunta, esta, a melhor solução contra o mal da vingança e da intolerância. Isto implicaria a mobilização não só dos jovens artistas, mas das instituições e suas coleções.

Para finalizar vale ressaltar que não significa uma ação homogênea, autoritária, e hegemônica. Mas uma ação livre no sentido da diversidade e da multiplicidade de experiências que inevitavelmente assistimos. Esta busca pelo entendimento da arte se assemelhará à ação de um antídoto. O resultado deste empreendimento nos dirá, seguramente, que  "não 'foi' tempo perdido".

 

 

 

(Matéria cedida gentilmente por Israel Kislansky, escultor e editor do Jornal Kislansky  — Atelier de Escultura. Publicação semestral. Agosto 2004, Número 3, Ano 2.)

 

 

 

Notas

 

 

 

Gilberto Habib de Oliveira é pesquisador da Pinacoteca do Estado de São Paulo, bacharel em Artes Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina e especialista em Museologia pela MAE/USP.