Lucana está a ler História Natural — Um tratado
de medicina legal da lógica e da linguagem. Nesse verdadeiro
drammma giocoso,
escrito por aquele anônimo da filosofia escolástica, o mais
in(significante) descerra a porta tenebrosa e maciça. A obra que
Lucana folheia é escrita sem idéias e sem estilo e, mesmo nas
linhas mais inspiradas, não possue nunca — aquela História Natural — a marca
sutil da linha-d'água. Numa das páginas do mencionado livro, há o
comentário do filósofo Hervum a respeito de uma leitura que ele
teria feito dos Sutras de Caranjali. Eis a nota explicativa: "Os
sutras que acabo de ler conversam sobre grandes coisas, mas sempre
que essa grande coisa acontece, são contrários a
ela".
É um Chaplin ou um
quartzo ou um laranjal quem vai iniciar esse capítulo? Fomos
dilacerados desde o nascimento. Origo et fons. Somos
apenas sopros no curtume a descansar à sombra do vendaval. Tal o
Vishnu enverdecido, a epifania de plânctons revivesce dourada na
nudez do pensamento, que não se turva nem com a aparição de
pequenos cavalos-marinhos agrestes que vivem em suspensão nas
águas salobras e que também são conhecidos como haloplânctons. A estrela
da manhã foge do liso céu e se equilibra no cílio de Lucana. Um
esgarçar de ribombo recende grosso do entrechoque de barcaças. Se
os esgarços de ribombo fossem vozes, que recenderiam ou
revelariam? Rinocerontes-do-mar ou o alabastrino óleo de Caab? O
sono esquece na varanda da Casa de Água um espelho: astúcia da
vigília, para que o invisível, afastado de ossos, nuvem, nervos,
ilusão, pizicato, tractatus — fisgue-se a si mesmo no Vazio;
capture, no espelho, a sensível fonte. Neste refletir, o
invisível, por sua vez, transmuta-se em sopro de viração — potencia oscura —,
sumindo-se num oboé e, na neblina da madrugada, é apenas neblina,
nada mais.
Para não morrer
durante esse poço de marasmo que me acontece sempre que vou
estender lençóis no varal, eu, K., desvendo o véu de Ísis e, por
trás do véu, o que vislumbro são umas letras — racimos de pérola —
que devem ser ouvidas como palavras que sabem o que fazem. Fizeram
concha, ar, Órion?. Ou foi o Cristalino quem as ventilou?
Shakespeare: "Se a palavra é sopro e sopro é vida". Quando querem,
as palavras deixam-se aprisionar pelo sopro e fingem que são
concha, ar, Órion. As palavras: sombras que nada conhecem, a não
ser que indiquemos — a elas — a fenda no beco por onde espiam que
— sendo palavras — são sereias visíveis. Para não morrer, escuto
Erik Satie: Trois
gymnopédies. Para não sucumbir aos acontecimentos ínfimos e às
felicidades cáusticas, eu preciso entoar mantras, vocábulos, e
mergulhar na piscina, na arbor vitae, na consolação
da noite.
Ao amanhecer está
Lucana adormecida na cama larga, entre copos de bebida emborcados,
cesto de frutas — kiwi, mamão — e restos de sonhos, enquanto o
Cristalino, frente à janela escancarada, fuma erva-cidreira e
escuta no gramofone a voz de Caruso. A árvore fora de mim: é por
ela que subo até às vidraças azuladas da Casa de Água, onde o
vento acorda de cabeça para baixo: soprar o vento para as
bananeiras e para as constelações. Aqui na varanda espio o
Cristalino fumando e um fervor de agáricos nos troncos da amarga
oliveira. Observo as finas cordas da chuva que serenam d'água os
telhados de Villa da Concha. Calmo, podia inventar o paraíso,
silêncio a silêncio, sombra por sombra. Seria um silêncio criador
— fonte aberta ao acaso — busca incessante do gume ileso do
vocábulo: silvo de fogo na geleira e nunca a lentidão líqüida de
algas apodrecidas.
Lucana me convida
para eu encharcar de viço os duros ossos e, agora, imerso em água
de Ofurô, folheio a virgem ode desse líqüido morno, folheio a
voragem de sumir que esse líqüido ondula e acaricio a pele de
Lucana. Água de Ofurô, de crescer envelheceu, quer derramar-se
molhada, beirando não sei o quê: quando chora, é o ressentimento
que essa água lava, água de gosto amargo, encontrada na casca da
quássia. Costura Lucana uma tempestade no fino pano da sombrinha.
Lucana quer verter-se molhada — recolhida à sombra — no jardim
suspenso que é um silêncio atirado ao ar de um céu, um silêncio de
peixe que desliza no limo da gruta; peixe que cospe leite de ouro
no púbis da mulher chuvosa que, deusa-dos-pomares, se
transparenta.
No capítulo 7 do Horto de Leviathan, de autoria
daquele mesmo anônimo da filosofia escolástica, uma nota aclara o
único argumento convincente a favor da ressurreição do corpo. Eis
a nota: "Quem construir uma pia baptismal no mantra, coloca
plantas vivas na água, desprende-se da concretude e retorna ao
princípio, ou àquilo 'anterior ao princípio', quando 'antes que a
primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa'". Cansada da
fraqueza extrema, que sempre a enlanguesce nas primeiras horas da
manhã, Lucana decide urinar no antifonário, após ter lido pela
quinquagésima vez o insosso fólio do Glossarium latinatis. Que
ela urine na própria saia de organza ou nas pedras do deserto, mas
nunca no antifonário, porque nele está escrito, com letras de
missal, que o cinismo é casca frágil e só nos salva da extinção a
pureza das linhas de um Modigliani ou essas estruturas coruscantes
de reflexões sardônicas. Lucana, no ensombrado quarto de dormir,
ao cerrar os olhos profundos, observa miniaturas de afrescos
gregos que parecem se guardar de um contágio indigno. Para não
acordar Lucana, saio pisando musgo. Esqueci de regar as plantas no
casarão. Antes de ir, ainda espio mais uma vez, à sombra do jarro
de rosas, um breve orvalho na nudez daquela que dorme — de acordo
com a descrição de Lezama Lima —, feito uma "pequena caixa de
cristal, cheia de alfinetes e agulhas, e que, mesmo situada na
última peça da casa, ainda sente quando o bonde
passa".
Chego ao casarão e
uma chuva noturna, com a lira destemperada, lava tudo, desde a
carniça do sovaco da cárie que trago na alma até às plantas
ressequidas a chuva repentina lava. Ia entrar, mas prefiro fechar
os olhos e relembrar aquela história que me contou um velho marujo
no bar Gallo del Viento. Dizia-me ele que, em sua casa à beira do
ancoradouro, havia uma ave-do-paraíso morta em cima da geladeira
Cônsul. Ave-do-paraíso que morreu, depois que provou carne de
cavalo estragada. Cavalo que morreu de tanto carregar baldes de
água para apagar o fogo que se alastrava pela casa. Fogo causado
pela queda dos longos círios nas cortinas de linho branco. Círios
postados ali para o velório, enquanto as labaredas iam e vinham
lambendo os móveis, os tapetes. Velório? É, velório de sua mulher,
que estava na sala de jantar, quando ele entrou desesperado em
casa e a matou, pensando que ela fosse um gatuno, com certeiro
pontaço de faca na altura do coração. Claro que não ri da história
do marujo. Me benzi com peixe e talos de arruda, parti águas de
oceano para deslocar abismos, caí em cisternas e escutei
Rimski-Korsakoff num disco de vinil usado e se eu cerrasse os
olhos agora e escutasse com atenção o séptuor que a senhora do gelo desfia na
varanda? O séptuor que diz assim
HOSOMI
Piscar do
espírito:
o paraíso
no sonho
te esquece entre águas e
conchas
e, súdito,
ao acordar
te
respira