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Entrevista publicada na Revista Babel, nº 4, 2001
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Para esta edição, BABEL entrevista Paulo Franchetti, motivada por algumas opiniões que ele tem manifestado, desde o ano passado, sobre poesia e crítica, e que têm sido objeto de polêmica e conseqüências curiosas e inesperadas, conforme se verá.
Foi o caso de resenha sobre Elefante, livro de poemas de Chico Alvim, ou sobre A Máquina do Mundo Repensada, de Haroldo de Campos, que, de forma deplorável e desnecessária para um intelectual de sua estatura, impediu que o artigo de Franchetti sobre poesia de vanguarda e o concretismo fosse publicado numa antologia de poesia, condicionando isso à autorização para estampar poemas de seu grupo.
Contra essas atitudes típicas do nosso mundinho cultural, pela livre manifestação de pensamento, BABEL publica, além da entrevista, o artigo vetado e alguns poemas de Franchetti, entre os quais uma nênia, que o autor dedicou a seu inesperado antagonista. Não custa lembrar que na definição do Aurélio a nênia é uma canção plangente, melancólica, mas também um canto fúnebre...
BABEL – Em resenha ao livro de poemas Elefante, de Francisco Alvim (O Estado de São Paulo, 5/11/00, Caderno 2), você foi bem duro ao dizer que são poemas desinteressantes e ao sugerir aquela poesia como "objeto de salão", trivial e fruto da proclamada "inteligência incapaz e fatigada" (sugerida por Mário de Andrade), que só existe porque se apóia numa "cumplicidade de expectativas literárias", isto é, numa "comunhão de gosto e de crença de política literária". Segundo soube, sua resenha foi muito comentada e não passou muito tempo para virem em defesa de Alvim, caso de Roberto Schwarz que, em um tijolaço de 2 páginas no Jornal de Resenhas (Folha de S. Paulo, 10/2/01), parece que, mais que exaltar Alvim, como possível forma de diminuir a repercussão à sua resenha, prestou-se a repetir o jogo que você descreveu nela, segundo o qual "o melhor leitor previsto nesse tipo de montagem é o que é capaz de, desprezando a trivialidade e a repetição exaustiva do procedimento, interessar-se mais pela intenção de alegorizar o país que está presente nesses recortes frasais". Schwarz chega mesmo a dizer que "aqui a leitura adequada é francamente ativista, a mais livre, instruída e perspicaz possível, complementar da forma elíptica extrema exercitada pelo poeta" [grifos meus]. Confirmou-se, assim, uma política de leitura, uma leitura política e sobretudo uma política de grupo geracional ("um pequeno grupo" diz você).
É isso mesmo? É assim que se instituem autores na literatura brasileira? Pelas reações e diz-que-diz causados por sua resenha, terá sido uma ousadia criticar autor tão protegido?
FRANCHETTI - Começando pelo fim, não penso que tenha sido uma ousadia escrever de modo franco e objetivo o que senti quando li o livro do Alvim. É verdade que houve reações que demonstraram que a crítica ainda pode ser concebida nesses termos: ousadia, falta de respeito, agressão pessoal, etc. Alguns textos que foram publicados na seqüência tinham um ar engraçado de carta de desagravo ao poeta ofendido. O próprio artigo do Roberto Schwarz, que você citou, também tinha um certo ar de "pito", na medida que predomina em boa parte dele o tom de velho professor, que repete a lição para um aluno recalcitrante, desistindo aqui e ali da demonstração ou da enumeração com um "etc" entediado. Mas o que chama a atenção de fato no texto do Roberto é o que você já apontou: o fato de ele ser uma ótima confirmação do ponto central da minha crítica, pois ele sai em defesa simultaneamente do poeta, do livro e do grupo.
O ponto forte do livro, segundo a leitura do Roberto, é tratar "das relações brasileiras entre informalidade e norma", detectando as suas dissonâncias. Estas, na sua maioria, remeteriam à "má-formação estrutural" do país. Nisso parece residir, para ele, o maior interesse dos poemas de Alvim: eles promovem um tipo de educação do leitor, levando-o a ver, por exemplo, que o "progressismo nacional" ainda está preso "às suas origens coloniais", etc. Essa educação do leitor é também o objetivo central da crítica do Roberto, e seu desígnio último é mostrar que "tudo bem somado e subtraído, o livro em seu movimento encena a crise" de uma "naturalidade" brasileira. Estamos a um passo da encenação minimalista das "idéias fora do lugar", da teoria do favor e das várias combinações de conteúdo/forma/reação/revolução. E o que eu disse foi, justamente, que o livro do Alvim me parecia escrito para confirmar esse mesmo ponto de vista, e que isso o empobrecia, reduzia a sua novidade e o seu alcance poético.
Mas o ponto menos palatável na minha crítica talvez tenha sido o de identificar o público previsto no livro do Alvim, com um grupo geracional, cuja hegemonia, representatividade e abrangência me parece em declínio. A isso Roberto respondeu de uma forma pouco elegante (reduzindo a rumores, a murmurações anônimas, o que era uma opinião crítica assinada e pública) e pouco convincente. "Para não desconhecer os rumores recentes" — escreveu ele — "seria também possível considerar que o ‘sentimento íntimo de seu tempo e de seu país’, recomendado por Machado de Assis e intensamente cultivado neste Elefante, não passa de uma mitologia pessoal ou de grupo. Haveria aí uma certa verdade, caso a nação estivesse mesmo deixando de existir, o que não é tão evidente, nem tira valor àquele desejo político e histórico." Qual é a lógica dessa passagem? Mesmo que eu concordasse que esse livro do Alvim deve, como os anteriores, ser visto como realização do ideal machadiano, isto é, como portador de um forte instinto de nacionalidade, o que isso implica em termos de realização e qualidade estética? Já a demonstração de que os rumores estão errados porque a nação continua a existir, ou porque um determinado "desejo político e histórico" tem valor em si, é algo difícil de discutir objetivamente. Primeiro pelo caráter desabusadamente ideológico da formulação: a única maneira de provar que uma dada visão da nação é parcial seria a demonstração de que a nação já não existe... Segundo porque é pouco claro de que "desejo" se está tratando aqui, pois nessa altura do texto ele tanto pode ser atribuído a Machado, quanto a Alvim, ou mesmo a duas entidades bem conhecidas, que são parte do mesmo universo mitológico: o iluminista departamento francês no Ultramar e o autocelebrado grupo de leitura de O Capital. Mas o que importa mesmo aqui é que, na sua própria inconsistência argumentativa, ao defender de modo tão pouco eficaz a representatividade nacional do que eu identifiquei como o público eleito pelo Alvim, e ao firmar a divergência quanto ao valor estético do livro do Alvim em termos de divergência de projeto nacional, Roberto liga mesmo uma coisa com a outra e demonstra que se trata de uma poesia em circuito fechado. Assim, ambos concordamos quanto ao ponto essencial. Quanto à questão estética, creio que meu ponto de vista ficou claro naquele artigo: entendi a repetição de procedimentos e de temas, que me parece evidente no último livro do poeta, como facilitação, como busca de confirmação e satisfação simplista de expectativas de um grupo restrito de leitores.
BABEL – Na mesma resenha, você diz que a crítica que avaliou o modernismo já não é mais hegemônica, recendendo a passadismo e nostalgia, "fazendo água por todos os lados", referindo-se à Faculdade de Letras da USP, sugerindo que, "neste momento, a longa hegemonia dos pressupostos do gosto e dos critérios de avaliação do Modernismo de 1922 — tão firme vetusta e duradoura" — afundou. Por quê?
FRANCHETTI - O que me parece estar se enfraquecendo, enquanto perspectiva cultural hegemônica, é um jeito de contar a história da cultura brasileira que se firmou a partir da Universidade de São Paulo. E essa perspectiva não é apenas literária. De modo mais amplo, pode ser definida como a aposta na ilustração da burguesia paulista, na sua atualização cultural e científica, como caminho para a superação do atraso brasileiro. Ou seja, como esforço de construção de um modelo "nacional" paulista, como forma de subsumir o nacional numa solução regional, marcada por interesses muito específicos.
No que diz respeito à literatura, essa perspectiva tem gerado uma narrativa histórica acentuadamente teleológica, isto é, uma narrativa que centra o ponto de vista num momento considerado ideal, adota os valores desse momento e relê o passado tendo em vista descobrir a "contribuição" de cada época ou autor para que esse ideal fosse atingido. É um jeito de narrar que permite transformar as etapas anteriores numa série de estações de passagem (ou desvios do verdadeiro caminho) para essa destinação final. Na sua melhor versão, a narrativa teleológica torna o discurso crítico um parente próximo do romance de formação; na pior, um primo distante do romance policial.
Eleger como ponto de chegada o Modernismo (ou melhor, uma certa leitura do Modernismo) implica algumas operações históricas de grande ressonância estética. Em primeiro lugar, essa escolha tende a gerar uma apreciação esquemática dos períodos imediatamente anteriores, que, por necessidade argumentativa e pela adoção das bandeiras modernistas pelo historiador literário, acabam sendo apresentados como zonas cinzentas, sem relevo, em que apenas se destacam os anúncios do que está por vir. O fruto mais conhecido desse modo de ver é o conceito de "pré-modernismo". Em segundo lugar, a mesma idéia de chegada promove uma narrativa em que a literatura brasileira vai se formando como organismo ou sistema ao mesmo tempo em que a nação, sendo esse momento de autonomia ou completude a segunda fase modernista. Essa perspectiva promoveu, no meu entendimento, um recrudescimento da identificação romântica entre o nacional e o estético, entre a construção nacional e a construção estética, que durante os anos 1960/1970 deu origem à perversa polarização entre "esteticismo" e "participação" que marcou os debates literários e a cena cultural brasileira de modo geral.
Por que essa visada hegemônica entrou em crise? Seria longo responder a isso. Mas desde o final dos anos 60, a aposta no novo iluminismo da burguesia paulista revelou-se inconseqüente. O golpe militar veio revelar o caminho que os donos do dinheiro traçavam para o país, que foi logo descrito por um dos uspianos mais influentes: a forma específica de modernidade que nos estaria reservada na estrutura do mundo capitalista pós-moderno era a dependência periférica. Ou seja, o eterno subdesenvolvimento. O diagnóstico e a crítica do novo momento (com tudo o que ela incluía de nostalgia e de autocrítica) constituíram o segundo ponto alto na história do grupo. Mas na seqüência a crise do modelo da história narrativa e as várias desconfianças teóricas que foram minando o princípio da explicação determinista vieram contribuir para o enfraquecimento dessa hegemonia. Finalmente, as recentes ações políticas concretas de intelectuais que durante muitos anos construíram o pensamento e a mitologia uspiana (Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Gianotti, por exemplo) acentuaram ainda mais o estado atual da crise em que me parece encontrar-se o modelo crítico e teórico que, durante 50 anos, foi o mais poderoso da cultura brasileira.
BABEL – Você tem um livro publicado sobre a teoria da poesia concreta e tem domínio sobre o assunto; no entanto, Haroldo de Campos, recentemente, resolveu impedir a publicação de um artigo seu, sobre o movimento, numa antologia, condicionando isso à publicação de poemas concretistas. Ele não gosta do seu livro? Ou isso seria uma resposta à resenha que você publicou sobre A Máquina do Mundo Repensada (O Estado de São Paulo, 24/9/00), na qual o analisa como livro fraco em relação aos outros livros do autor — de resultado "patético", diz você, ao fim, depois de sugerir que "o velho não consegue dizer o novo" —?
FRANCHETTI - Trata-se de um episódio lamentável, que mostra como funciona uma parte importante do sistema literário brasileiro. Fui convidado para escrever uma apresentação das vanguardas dos anos 50/60 para um volume intitulado "100 Anos de Poesia — Um Panorama da Poesia Brasileira no Século XX", organizado por um grupo chamado O Verso, do Rio de Janeiro. Escrevi um texto breve, buscando o máximo de objetividade e isenção crítica. O texto foi aceito e foi assinado um contrato de edição. Algum tempo depois, o editor me escreveu dizendo que Haroldo de Campos vetara terminantemente a publicação de um texto assinado por mim enfocando a obra dele. Eu poderia escrever sobre as outras vanguardas, mas sobre a Poesia Concreta, não. Caso contrário, nenhum poema concreto poderia ser reproduzido na antologia. Ao mesmo tempo, Campos teria sugerido uma lista de nomes confiáveis, que estariam autorizados a escrever sobre a Poesia Concreta. O que mais impressiona é que Haroldo se teria recusado a sequer ler o meu texto. O veto a uma idéia, que é a expressão do desejo de silenciar a discordância, já é uma violência grande, mas é muito maior a violência do veto a uma pessoa, a um nome, independentemente de qualquer consideração crítica.
Sentindo-se obrigado a ceder à exigência de Haroldo, que teria recebido a solidariedade de seu irmão, o editor ainda me consultou sobre a possibilidade de recortar o meu texto. Evidentemente, não aceitei, e a apresentação das vanguardas ficou a cargo, se não me engano, de Sebastião Uchoa Leite. Não sei o que Haroldo pensa do meu livro sobre a teoria da poesia concreta. Provavelmente, não goste, pois é um trabalho isento, que descreve a articulação teórica e as mudanças de rumo da Poesia Concreta e não uma louvação. Sendo o louvor o único gênero que lhe parece adequado na referência à sua pessoa ou à sua obra, compus-lhe, logo depois, um poema de homenagem. Uma nênia verbi-voco-visual.
BABEL – O que você tem achado da poesia que se tem publicado, contemporaneamente?
FRANCHETTI - Creio que é possível identificar muito facilmente, nos poetas jovens, as suas marcas de filiação. Uma linhagem procede ostensivamente de João Cabral de Melo Neto, normalmente passando pelo filtro da Poesia Concreta; outra repete à exaustão a imagética e a dicção do último Drummond; uma terceira traz à flor da pele, na dicção uniformemente 'alta' e no gosto do vocábulo 'poético', as marcas da Geração de 45; e há ainda os herdeiros da 'poesia marginal' e da contracultura dos anos 60/70, que apostam no happening, na exploração da coloquialidade e na estilização de procedimentos da primeira poesia modernista. De tal forma que no geral me parece que existe agora, para parodiar Harold Bloom, uma espécie de "orgulho da influência".
Resenhando recentemente três livros de poesia, fui tomado pela impressão de que boa parte deles tinha sido escrita por um mesmo autor, uma espécie de supra ou protopoeta, de que os autores nominais pareciam pseudônimos. No caso, esse suprapoeta era uma mistura de Cabral, irmãos Campos e Leminski, em doses variáveis. Essa mesma combinação parece erguer-se como modelo no horizonte da composição de uma enorme parcela da poesia que se escreve hoje dentro da primeira das tendências de que falei há pouco.
Respondendo então à sua pergunta, posso dizer então que, apesar da profusão de livros e revistas de poesia, tenho encontrado pouca coisa que realmente valha a pena. Não é à toa que boa parte da poesia mais interessante até há algum tempo tenha sido a de temática ostensivamente homossexual. Pelo menos nesse caso havia algo que era novo em letra de forma, uma forma de sensibilidade que gerava alguma tensão, alguma quebra das expectativas. Agora, essa temática já não significa, não garante mais, por si só, qualquer novidade. Tornou-se mais um tipo. Freqüentemente me surpreendo indagando: o que esse sujeito tem a dizer? Do ponto de vista da novidade, espanta também que quase não haja demonstração conseqüente de vontade de ruptura com os valores das gerações que ainda dominam a cena literária. Pelo contrário, chega a ser lamentável ver como jovens poetas têm buscado com sofreguidão o selo de autenticidade e/ou continuidade fornecido por prefácios de autoridades acadêmicas ou de representantes das gerações mais velhas. A auctoritas é uma obsessão, e o resultado pior e mais generalizado dessa identificação continuísta com o passado, é a pasteurização, a submissão ao ontem e a renúncia a encontrar uma voz que crie e represente um novo desejo para o tempo presente.
BABEL – Você publicou 2 livros de poemas (Várias vozes, 1975 e Índigo Blues, 1984), mas não os menciona mais — deixaram de ter importância à luz de novas posições críticas próprias?
FRANCHETTI - São dois livros de poemas de juventude. O primeiro foi publicado pelo centro acadêmico da minha universidade. E o segundo saiu numa edição de autor. Ainda há um ou outro texto de que gosto no segundo deles.
BABEL - Você tem escrito poemas? Como são?
FRANCHETTI - Tenho escrito principalmente haicais e poemas satíricos. Alguns deles, inspirados na longa tradição portuguesa do escárnio e do maldizer, que tem em Gregório de Matos e em Bocage dois mestres imbatíveis. Vale a pena ler duas antologias memoráveis: a organizada por Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Lisboa: Antígona, 2001), e a de Fernando Ribeiro de Melo, Poesia Portuguesa Erótica e Satírica – Séculos XVIII e XIX (Lisboa: Afrodite, 1975). Além de ser um praticante desse tipo de poesia, interesso-me academicamente pela enorme produção cômica, satírica e pornográfica brasileira que ficou (e ainda está, em grande parte) esquecida e sem valorização crítica. Já me ocupei, num trabalho publicado há tempos, de Bernardo Guimarães, que é um chato quando escreve "seriamente", e um gênio quando faz pornografia ou poemas de nonsense. Além de planejar um livrinho com os meus próprios poemas, estou pensando em organizar uma antologia da poesia brasileira cômica e pornográfica.
BABEL - Você acaba de publicar um livro sobre Camilo Pessanha. Qual a importância dele para nós hoje? De que trata o livro?
FRANCHETTI - Camilo Pessanha é mal conhecido no Brasil. Em Portugal, entretanto, é tido como um dos maiores poetas do final do século XIX e começo do XX. Para ter uma idéia do lugar que ocupa naquele país, basta ler o que escreveu Eugénio de Andrade, em 1999, num comentário da sua Antologia pessoal da poesia portuguesa (Porto: Campo das Letras), que é um livro que também vale muito a pena ler para conhecer a poesia portuguesa. Eis: "Qual o mais fascinante livro de poesia escrito em português?, perguntava-me há dias um amigo. Respondi que seria um livro de sonetos de Camões escolhidos por mim; talvez uns cinqüenta, pouco mais... Como tal livro não existe, o mais fascinante é a Clepsidra, na 1.ª edição, a que se juntassem apenas mais quatro poemas: ‘Branco e vermelho’, ‘Porque o melhor, enfim...’, ‘Viola chinesa’ e ‘Ó Madalena...’".
A própria frase de Eugénio permite ver um dos problemas que me atraíram na Clepsidra: esse nome se aplica a um livro que nunca foi publicado por Pessanha. Morando na China, o poeta reescreveu, durante anos, alguns poucos poemas. Muitos se perderam, outros foram colecionados fervorosamente por admiradores, alguns ficaram dispersos em jornais de província ou almanaques de lembranças. Em 1920, uma amiga reuniu o que pôde e publicou a primeira edição da Clepsidra. Depois, outras edições foram surgindo e alguns outros poemas foram aparecendo: o último mencionado por Eugénio só integrou o livro em 1969! Esse ‘livro de água’, como já foi chamado, foi objeto da minha tese de doutorado. Consultei todos os autógrafos disponíveis de Camilo Pessanha, inclusive os que ele deixou em Macau, na China, para onde fui apenas para poder lê-los. Com base em cinco anos de pesquisas, organizei finalmente uma edição crítica de todos os versos do poeta, com anotação de todas as variantes de cada um deles, que saiu em Lisboa, em 1995. O livro que acaba de sair pela Edusp é a segunda parte desse trabalho: agora, depois de ter mapeado todo o universo textual do poeta, comento demoradamente meia dúzia de poemas, com atenção para as imagens centrais da sua poesia e, especialmente, para o ritmo dos versos.
Pessanha foi considerado, por Mário de Sá-Carneiro, "o grande ritmista". A audição dos versos de Pessanha foi assim descrita pelo autor de A confissão de Lúcio: "os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, estilizando-as em ritmos de sortilégios — cadências misteriosas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris." Creio que a importância de Pessanha para nós hoje é ser um grande poeta, da altura de um Mallarmé ou de um Verlaine, e que escreve em nossa língua. O que mais impressiona nos seus poemas é a extrema musicalidade, o ritmo encantatório e o poder quase alucinatório que eles têm, por se articularem todos em torno de algumas poucas imagens fortes. Sua leitura, na minha opinião, poderia apontar caminhos para a superação de uma certa ecolalia, de um certo ritmo de tatibitate que caracteriza boa parte da poesia contemporânea brasileira, herdeira direta da leitura concretista da poesia de João Cabral de Melo Neto.
BABEL – Achei interessante uma afirmação sua, em entrevista dada a Rodrigo de Souza Leão, de que o haikai "é mais uma atividade e uma atitude frente à linguagem, do que uma forma poética", indo contra uma noção corrente no Brasil de que haikai é poesia. Fale sobre isso.
FRANCHETTI - Nessa frase, estava me referindo a um tipo de haikai, que é o que importa, do meu ponto de vista. É certo que o haikai pode ser visto como apenas uma forma, como uma espécie de micro-soneto. Ou pode ser entendido como um tipo de epigrama lírico em 3 linhas. Nesse sentido, não me interessa nada. O que acho fascinante no haikai é o seu caráter de arte tradicional, de atividade compartilhada e praticada sob a direção de uma pessoa mais experiente.
Numa reunião ou numa oficina de haikai, o comentário dos textos não é apenas judicativo. A crítica de um haikai implica a capacidade, de quem o critica, de o refazer, de o tornar melhor. E inclui mesmo a demonstração, o trabalho coletivo sobre um texto, para o tornar mais adequado ao tema ou mais expressivo. É como numa aula de artesanato: se o professor não consegue fazer um bom entalhe, como pode corrigir um aluno? Além disso, em geral o haikai é proposto, como atividade de grupo, como resultado de um exercício de observação. Pode-se argüir o "erro" de um haikai: dizer, por exemplo, que uma árvore floresce numa época em que isso não se dá, que tal flor não tem perfume sensível à distância, etc. O haikai tradicional é também um texto em linguagem rigidamente objetiva, despida de sentimentalismo e de figuras de linguagem como a metáfora e a comparação. Por fim, é um texto em que não se trata de dizer o máximo com o mínimo de palavras, mas de dizer apenas o suficiente para que uma dada cena se esboce, com o seu conteúdo sensório e emotivo. É uma poética da modéstia. Assim, aprender a fazer haikai é aprender um jeito muito específico de usar a linguagem e de se posicionar frente a ela.
Quando digo que haikai não é poesia é com a intenção de ressaltar que não é apenas o "produto" poético que importa, nem a originalidade do criador isolado e centrado em si mesmo. Para mim, o haikai é um parente próximo da ikebana, da arte da dobradura do papel, das artes marciais ou mesmo da prática esportiva em equipe.
BABEL – Por fim, notei que você está preparando um livro de contos. O que seria isso? Quais seus próximos projetos?
FRANCHETTI - O livro de contos ficou configurado há um ano, mas tenho voltado periodicamente a ele, cortando e acrescentando coisas. Principalmente cortando, de forma que o livro está ficando cada vez menor. As histórias compõem uma seqüência, nada rígida e nada óbvia, mas o resultado é que ainda não sei bem se é mesmo um livro de contos ou se é um conjunto que tende a ser uma coisa que não sei bem como definir: uma novela fragmentária, sem arranjo cronológico e sem unidade de ação. Mas não tenho me preocupado muito com isso, e sim com a linguagem, com o ritmo das frases, e com a sucessão das imagens. De qualquer forma, não acho que vale a pena refletir muito sobre o que tem sido ou vai ser, afinal, o livro. Meu esforço é apenas fazer com que seja um texto interessante de ler.
Os projetos atuais, além de finalizar esse livro e de organizar a antologia de poesia cômica e pornográfica, de que falei há pouco, se resumem ao trabalho acadêmico de pensar criticamente as categorias pelas quais tem sido avaliada historicamente a poesia brasileira do final do século XIX e começo do XX, isto é, os efeitos da teleologia modernista, de que também falamos há pouco.
Paulo Franchetti. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a Editora da Unicamp. Mais em Germina: Encarte e Paulo Franchetti.
dezembro, 2005
Ademir Demarchi nasceu em Maringá-PR, em 07.04.1960, e reside em Santos-SP desde 1989, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado (UFSC-1991) e Doutorado (USP-1997) em Literatura Brasileira, é editor da revista BABEL, de poesia, crítica e tradução. Tem quatro livros publicados; poemas, artigos e ensaios publicados em livros, periódicos e sites como Revista Coyote, Revista Oroboro e as revistas eletrônicas Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério. Mais em Germina: Ademir Demarchi, Literatura e Resenha.