Em
1949, o Museu de Arte de São Paulo "Assis Chateaubriand"
adquiriu do Palácio Barberini de Roma a estátua em mármore de uma
Diana adormecida (fig. 1
e 2),
em tamanho pouco maior que o natural, juntamente com um sarcófago
do século II d.C., decorado com uma cena da "morte de Meleagro",
sobre o qual a estátua se encontrava. Acreditava-se ser esta Diana
um trabalho do maior escultor do barroco romano, Gian Lorenzo Bernini
(Nápoles 1598 - Roma 1680). Contudo, a favor dessa autoria havia
apenas uma atribuição tradicional romana documentada desde meados
do século XVIII1.
A
compra da estátua da Diana adormecida pelo MASP só
foi possível por ocasião de sua exclusão do fideicomisso celebrado
em 1948 entre os herdeiros Barberini e o governo italiano, estabelecendo
que o conjunto da herança não poderia ser dissolvido ou separado2.
O motivo desta exclusão nunca foi objeto de nenhuma explicitação
ou justificativa particular. Não é difícil supor, porém, que isto
se tenha dado em função da forte evidência de que não se tratava
de uma obra autêntica de Gian Lorenzo Bernini. Seja como for, a
circunstância da exclusão, acrescida do preço bastante baixo pedido
pela estátua — o conjunto, compreendendo a estátua e o sarcófago,
foi comprado pelo valor, à época, de três mil cruzeiros —, foram
fundamentais para a decisão do MASP de adquiri-la. Ademais, a atribuição
tradicional não estava definitivamente descartada, e sempre havia
a possibilidade de o Museu vir a possuir um Bernini original.
Obras
compradas nestas condições constituem, de resto, a maior parte do
acervo do MASP, formado, substancialmente, nos primeiros anos de
sua existência. A escolha das obras e a decisão final de comprá-las
ficavam, de modo geral, a cargo do Prof. Pietro Maria Bardi, conhecido
pelo talento especial em descobrir obras primas dispersas pelas
galerias e antiquários da Europa e dos Estados Unidos, depois da
Segunda Guerra. O financiamento da compra, por sua vez, cabia ao
grande mecenas do Museu, Assis Chateaubriand, que, para isso, valia-se
sobretudo da influência (muitas vezes sabidamente truculenta) que
gozava junto aos meios financeiros e políticos do país.
Este
procedimento, evidentemente, oferecia certos riscos. O mais provável
era o de muitas dessas obras ficarem no limbo por algum tempo, até
que fossem aceitas como originais pela opinião especializada internacional,
o que chegou mesmo a abalar, por um curto período, as pretensões
do Museu de igualar-se em importância aos principais Museus europeus
e norte-americanos, tendo em seu acervo quase que exclusivamente
obras primas.
Os
riscos, no fim das contas, foram compensadores. A maior parte do
acervo, reunido até 1953, já seguiu, nesse mesmo ano, para uma exposição
itinerante pela Europa, que começou pela Orangerie em Paris
e só retornou ao Brasil em 19553.
Suas obras foram largamente aclamadas e a reputação do Museu, por
assim dizer, estava firmada.
A
Diana, atribuída a Bernini, não teve, contudo, a mesma
sorte de outras obras primas reconhecidas. A incerteza acerca de
sua autoria permanece sem solução até hoje. Na etiqueta que acompanha
a estátua ainda se lê simplesmente:
"Gian
Lorenzo Bernini, atribuída a".
Nenhuma
prova concreta veio confirmar tal atribuição. Não consta nas biografias
de Gian Lorenzo Bernini — tanto na escrita por Baldinucci, quanto
naquela escrita pelo filho caçula do escultor, Filippo — a informação
de que teria esculpido qualquer estátua do gênero. Os inúmeros estudos
realizados a respeito de suas obras, assentados em minuciosas pesquisas
de arquivo, não vieram tampouco confirmar esta informação. Na verdade,
parece quase inevitável pensar-se que a localização da estátua no
Palácio Barberini de Roma tenha sido o motivo fundamental do estabelecimento
de uma relação direta entre a obra e o escultor. Isto explica-se
pelo fato de Bernini ter servido quase de maneira exclusiva, ao
longo de sua vida, à família do Pontífice Urbano VIII, Barberini.
Acrescenta-se a isso, obviamente, a qualidade da obra e uma certa
semelhança formal, genérica embora, que apresenta em relação ao
estilo de Bernini.
* * *
Os
textos mais antigos que discutem a atribuição da estátua da Diana
adormecida, embora ressaltem nela ressonâncias do estilo
de Bernini, jamais confirmam a sua autoria. A atribuição permanece,
ainda, assentada em dados relativos quase exclusivamente à ordem
da aproximação estilística.
Ao
que tudo indica, o primeiro a debruçar-se sobre a questão, foi Stanislaw
Fraschetti, em 1900, dentro de sua conhecida biografia do artista.
Tendo como parâmetro a atribuição de tradição local, Fraschetti
procura reconhecer na obra que descreve minuciosamente alguns traços
particulares que, segundo pensa, recordam o estilo de juventude
do escultor. Por exemplo, os cabelos enrolados em festões, à maneira
da Dafne do grupo de Apolo e Dafne que
Bernini esculpira entre 1622 e 1625 para os jardins do cardeal Scipione
Borghese (fig. 3)4.
Todavia, a expressão estilizada que a estátua apresenta5
parecia-lhe indicativa de que a obra fôra executada por um escultor
que tinha completo domínio técnico da arte escultória, mas ao qual,
para considerar-se como sendo verdadeiramente Bernini, parecia faltar
certa capacidade de interpretação mais profunda.
A
despeito de excluir explicitamente a autoria berniniana da Diana,
sua análise me parece muito esclarecedora. Ele sequer a cogita em
relação ao conjunto das obras de Gian Lorenzo, mas apenas àquelas
de sua juventude. Quando fala do trabalho do cabelo, traço típico
do escultor, exemplifica-o com a Dafne e não, por
exemplo, com o tardio Busto de Luis XIV6.
Do mesmo modo, para o autor, a Diana apresenta uma
leveza e uma graciosidade que só seria possível identificar-se nas
primeiras realizações de Bernini7.
A
situação da Diana adormecida, tal como ela se deixa
examinar por Fraschetti, ou seja, tendo como referência a primeiríssima
produção berniniana, não é de todo estranha por várias razões. A
mais forte delas é que o escultor realizou obras de temas mitológicos
inspiradas nos modelos clássicos — encomenda escultória típica do
colecionismo privado romano do período —, como parece ser o caso
da Diana, somente durante os anos iniciais de sua
atividade, vale dizer, até cerca de 1625. Posteriormente, é verdade,
os temas da mitologia reaparecerão nas fontes que projeta para as
várias praças de Roma. Mas neste caso, trata-se de encomenda pública,
e o tamanho das figuras, em geral, ultrapassa muito o da Diana.
Em
1916, novo autor vai tratar do caso. Em um artigo intitulado La
scultura barocca e l'antico, Antonio Muñoz lembra certa passagem
da correspondência de viagem do Presidente da Borgonha, Charles
De Brosses (1709-1777), que toca no assunto8.
A propósito de sua visita a Roma, De Brosses comenta a existência
de um grupo escultório de Latona, Apolo e Diana, localizado
no Palácio Barberini de Roma, cuja autoria seria de Bernini9.
Na opinião de Muñoz, todavia, De Brosses confundiu-se ao citar esse
grupo, pretendendo, em realidade, referir-se à Diana adormecida
que se encontrava, já à época, neste Palácio10.
Muñoz,
contudo, compartilha da opinião de Fraschetti acerca da atribuição
da Diana adormecida, cuja feitura também interpreta
como sendo uma fabricação à antiga, e que, por isso mesmo,
parece-lhe ser obra do último quarto do século XVII. Seu juízo,
entretanto, a respeito da qualidade da obra, ao contrário do de
Fraschetti, não é nada concessivo. Os adjetivos que usa para caracterizá-la
são esclarecedores — "gorducha" e "insignificante"11.
Em
1952, o Prof. Pietro Maria Bardi, diretor do MASP e responsável
pela compra da Diana três anos antes, publica um artigo
endossando a sua atribuição a Bernini. Dos textos críticos — sabidamente,
os textos de Fraschetti e Muñoz —, considera apenas a notícia da
tradicional atribuição ao escultor e refere-os pejorativamente com
o termo "crônicas"12.
Em
termos gerais, o texto se propõe a fazer um estudo filológico da
estátua, que se aplica tanto à identificação dos textos literários
que poderiam ter determinado a escolha da inusitada iconografia
de uma Diana adormecida de que não se conhece muitos precedentes,
quanto ao reconhecimento das esculturas antigas que teriam servido
de modelo para a Diana. Partindo da idéia de que uma
"Diana adormecida" apenas poderia ser pensada a partir
de um esvaziamento formal do mito clássico, o Prof. Bardi vai conciliar
a estátua particular do MASP com um extenso rol de exemplos literários
e escultórios da antiguidade13.
Um rol que julga representativo de um "classicismo dionisiaco-romantico"14,
responsável pela veia helenística que se manifesta na linguagem
formal barroca, e de modo especial, na produção berniniana15.
Confrontando
a Diana com algumas das obras de Bernini — estátua
de Santa Bibiana, da Beata Albertoni,
e da jovem pensativa que representa a Justiça, no
monumento de Urbano VIII, que acredita erroneamente estar adormecida
—, o Prof. Bardi considera que a sua feitura, mais clássica, torna
menos evidente os fortes contrastes luminosos típicos do estilo
berniniano16.
A
série de modalizações a que é obrigado a recorrer quando passa da
caracterização geral das obras de Bernini para a leitura particular
da estátua, deixa clara a distância entre a contenção "clássica"
da Diana e a eloquência do estilo berniniano. É obrigado,
assim, a admiti-la como uma exceção dentro do conjunto da produção
do escultor, e, a partir daí, a ressaltar a liberdade das "poéticas"
frente a "enérgica severidade do desenvolvimento da linguagem
figurativa"17.
Apenas enquanto exemplar do exercício desse tipo de liberdade poética,
que reúne em cada obra específica elementos formais diversos em
um arranjo único, a Diana adormecida poderá figurar
entre as obras de Bernini18.
Ao
final, todo o esforço argumentativo do Prof. Bardi para contemplar
a especificidade da Diana e, ao mesmo tempo, inseri-la
na produção escultória de Bernini termina por dar características
cada vez mais genéricas ou elásticas ao conjunto de sua obra. Resulta
desse procedimento, afinal, uma outra evidência: a de que a sua
análise da Diana encaixa-a com enorme dificuldade
ao estilo do escultor.
*
* *
A
indicação de um novo escultor para a Diana adormecida
surge no interior da correspondência do Prof. Bardi referente à
estátua, bastante confusa em seu conjunto, arquivada pelo Museu.
Quase dez anos depois da compra da estátua, o Prof. Bardi, não muito
certo da atribuição que endossara em 1952, começou a fazer contato
com diversos especialistas, na tentativa de obter dados que confirmassem
a autoria berniniana da obra.
Cronologicamente,
a primeira carta conservada pelo arquivo do MASP, expedida em 14
de janeiro de 1960, é uma resposta à consulta do Prof. Bardi, enviada
pela Dra. Ursula Schlegel, especialista em escultura do século XVII,
e, à época, diretora do Museu Berlin-Dahlen. Ela o informa de que
há na literatura especializada — sem especificar qual seja — referência
a um mármore, em Roma, com o tema da Diana, que acreditava ser o
mesmo adquirido pelo MASP, e cujo autor era Giuseppe Mazzuoli (Siena
1644 - Roma 1575). A missivista solicita ainda ao Prof. Bardi uma
foto da estátua, que lhe foi prontamente enviada no dia 22 do mesmo
mês.
A
correspondência então cessa, ou, se não é esse o caso, deixa-se
de arquivá-la, pois não há qualquer registro de novas cartas a propósito
da Diana durante os próximos dez anos. Apenas passado esse
tempo, e, partindo agora da nova indicação dada pela Dra. Schlegel,
o Prof. Bardi escreve desta vez para o Prof. David Leonard Bershad,
da Universidade do Arizona (U.S.A.), pedindo-lhe o seu parecer a
respeito da atribuição da estátua ao desconhecido escultor. Em sua
resposta, datada de 16 de fevereiro de 1971, o Prof. Bershad não
se mostra convicto da autoria proposta por Schlegel e refere-se
a um outro escultor como sendo o seu provável autor. O nome deste,
entretanto, afirma preferir omitir até obter informações mais seguras
a respeito durante a viagem a Roma que programara para o próximo
verão.
A
carta que vem a seguir, datada de 12 de junho do mesmo ano, não
é proveniente de Roma, como se esperaria, mas de Londres. O Prof.
Bershad informa então que, na Heim Gallery daquela cidade,
encontrara uma versão de pequenas dimensões da mesma estátua.
Na
carta imediatamente seguinte, o Prof. Bershad envia uma foto da
estatueta, atrás da qual está anotado o nome de Bernardino Ludovisi
(1713-1749), um escultor menor, proveniente de Carrara19,
que o americano devia acreditar ser o autor da Diana,
quando de sua primeira carta. Esta peça, no entanto, dada a sua
evidente má qualidade, revelou ao Prof. Bershad tratar-se, não de
uma versão menor autógrafa da Diana adormecida do
Masp, mas apenas de uma cópia precária dela (fig. 4).
Na verdade, curiosamente, a partir desse momento, o Prof. Bershad
sequer dá mostras de que pretenderia continuar a investigação. Ao
menos, é isto o que dá a entender a resposta que lhe remete então
o Prof. Bardi, com data de 27 de outubro. Esta, longe de concentrar-se
na questão cada vez mais intrincada da autoria da Diana,
parece admitir que se dilua entre outras referências ou que fique
adiada para um futuro vago e não particularmente promissor.
Daí
em diante a correspondência entre os dois parece interromper-se,
ao menos, no que toca à documentação da estátua existente no MASP.
Aquilo que se anunciava como uma troca de informações muito positiva,
e que inclusive criava a expectativa de um desfecho breve para a
questão — tão breve que nem mesmo dava margem a uma especulação
em torno de nomes, já que parecia tratar-se apenas de confirmar
in loco a solução já antevista — acaba terminando de uma
maneira vaga, formal quase, e, de qualquer modo, muito decepcionante,
sem qualquer insistência na solução do problema inicial por parte
de nenhum dos missivistas.
Uma
carta endereçada ao Museu de Varsóvia, em 27 de janeiro de 1977,
parece ter sido a derradeira tentativa por parte do MASP de encontrar
pistas que aproximassem a estátua da obra de Bernini. O Prof. Bardi
anexa à carta uma foto da estátua atribuída a Bernini, pois acredita
que ela deva interessar ao autor de um artigo sobre a Níobe
berniniana20.
Este autor, por sua vez, talvez nunca tenha tomado conhecimento
da carta do Prof. Bardi, ou, se o fez, talvez não tenha encontrado
motivos para estabelecer qualquer aproximação entre as obras de
Bernini e a estátua da Diana: o certo é que jamais se manifestou
à respeito.
Contudo,
se nada mais há registrado a respeito na documentação preservada
pelo MASP, algo mais poderia ser aí acrescentado a partir de minha
própria experiência pessoal na investigação do caso. Em visita ao
Instituto Alemão de Florença, em dezembro de 1991, na companhia
do Prof. Jorge Coli, orientador de minha dissertação de mestrado
a propósito do tema, tive oportunidade de conversar a propósito
do estado de coisas no tocante à Diana com a Dra. Monica
Butzek, estudiosa da obra de Giuseppe Mazzuoli, o escultor indicado
pela Dr. Ursula Schlegel como sendo o seu verdadeiro autor. Ela
contou-nos que, em certa ocasião, chegara a receber uma carta do
Prof. Bardi solicitando-lhe informações a respeito da estátua. De
maneira semelhante à Dra. Schlegel, respondeu-lhe sugerindo que,
a julgar pelas indicações, devia realmente tratar-se de uma obra
de Giuseppe Mazzuoli. Segundo seu relato, solicitou ainda ao Prof.
Bardi uma fotografia da estátua, que hoje, de fato, encontra-se
arquivada no mesmo instituto.
Lione
Pascoli no início do relato da vida de Giuseppe Mazzuoli, publicada
em sua Vite (1730-1732), avisa ao leitor que noticiará apenas
as obras mais célebres do escultor. Isto não por negligência ou
falta de informação, mas porque eram tantas que mesmo seus seguidores
e parentes não puderam lembrar-se de todas elas21.
Entre
estas obras mais conhecidas, Pascoli recorda duas estátuas adquiridas
contemporaneamente pelo cardeal Barberini. Uma Diana, encomendada
pelo próprio cardeal, e o Adônis recém terminado22.
Segundo
o biógrafo, Mazzuoli iniciou para si, com a finalidade de estudo
e divertimento, este Adônis (fig. 5),
que hoje encontra-se no Museu Ermitage, em Leningrado, à mesma época
que esculpia os dois Anjos porta-candelabros, entre
1677-1679 (fig. 6
e 7)23,
para o altar-mór da Igreja de S. Agostinho, em Siena. O escultor
devia ter por esta estátua uma afeição especial, pois passou vários
anos, quase três décadas, dedicado à sua execução24.
Ao
terminá-la, Giuseppe assinou-a e inscreveu a data de 170925.
Esta é também a data de finalização que Fiorella Pansecchi estabelece
para a Diana, baseada no que diz Pascoli acerca das
duas obras26.
Mas um inventário das peças antigas do palácio Barberini redigido
em 1700 — setenta anos antes, portanto, da publicação de Pascoli
—, noticia a existência de um sarcófago colocado sob a figura de
Diana que o cardeal Francesco Barberini "prese dal Sig.r
Giuseppe Mazzuoli"27.
Portanto, ao contrário do que diz Pansecchi, a encomenda e a execução
devem ser adiantadas em ao menos dez anos, o que as coloca na última
década do século XVII. O cardeal referido não se trata, obviamente,
do cardeal-sobrinho de Urbano VIII (1597-1679), vice-chanceler da
Igrela e fundador da Biblioteca Barberini, mas do último varão dos
Barberini que viveu entre 1662 e 173828.
A
Diana é introduzida na recente literatura crítica
a propósito de Giuseppe Mazzuoli em 1928 por Valentino Suboff. Nesse
texto o autor discute a informação de Pascoli — que é afinal a sua
fonte básica — de que o artista esculpira uma Diana adormecida para
o cardeal Barberini. Alega que a obra está desaparecida, e que não
há provas de que Giuseppe tenha chegado a realizá-la29.
Contudo,
em 1930, no Thieme-Becker, Suboff já elenca entre os trabalhos de
Mazzuoli, uma "Diana, für d. Kard. Barberini",
cujo paradeiro ainda acredita desconhecido. Esta informação, no
entanto, parece despropositada: é certo que, durante a primeira
metade do nosso século, a Diana não foi retirada do
palácio romano. Já se viu que Fraschetti, em 1900, Muñoz, em 1919,
e Golzio, provavelmente na década de 40, localizam-na no Palácio
Barberini.
Também
Riccoboni, ao discutir a atribuição da estátua a Giuseppe Mazzuoli,
em 1942, vai julgar inexplicável o fato de Suboff dá-la por perdida.
Uma hipótese que talvez explique o engano cometido por ele, seria
que, não conhecendo pessoalmente o palácio, imaginasse que a Diana
tivesse tido uma destinação semelhante à do Adônis30.
Ao identificá-la com a estátua do Palácio Barberini, Riccoboni encontra
a prova que faltava a Suboff para introduzir a Diana adormecida,
definitivamente, dentro do corpus de obras de Giuseppe Mazzuoli,
e assim, afastar, de uma vez por todas, qualquer tentativa de atribuição
a Bernini. Havia agora uma base concreta com a qual Riccoboni podia
confirmar a opinião, já expressa por Muñoz, de que a Diana
era obra de um escultor posterior a Bernini31.
*
* *
Para
uma consideração mais precisa das propriedades estilísticas da estátua
Diana adormecida, penso ser fundamental retornar ao
Adônis. Esta obra, como já foi dito, iniciou-se ainda
no primeiro período de atividade do escultor, "per suo studio
e divertimento", e foi terminada apenas 30 anos depois,
apresentando no todo uma execução bastante próxima da Diana.
Ursula
Schlegel publica, em 1972, o bozzetto em terracota do Adônis
(fig. 8),
localizado numa coleção privada em Leningrado. O bozzetto,
antes atribuído a Bernini por Kauffmann32,
revela que Giuseppe seguia estudando os modelos berninianos, mesmo
após ter deixado o ateliê de Ercole Ferrata (Pellio Inferiore, Como
1610 - Roma 1686) e se estabelecera por conta própria na Via
Ripetta33.
De modo geral, é possível dizer que a resolução compositiva desta
terracota é ainda muito escolar. O escultor procura emular Bernini,
sem muito sucesso, tanto nos detalhes anatômicos, quanto no tipo
de movimentação a ser impresso na obra. Esta é, ao menos, a opinião
de Schlegel, que data o modelo de 167234.
A
despeito das limitações criativas da terracota, próprias do período
juvenil do artista, sua qualidade de execução mostra-se, para a
especialista, superior àquela que apresenta em mármore. Na sua opinião,
o modelado delicado e fluido da terracota decai, na obra final,
para algo que parece muito mais duro e pomposo35.
A
Diana, esculpida pouco antes que Giuseppe finalizasse
o Adônis, revela o mesmo tipo de feitura um pouco
enrijecida, que não tem o mesmo grau de delicadeza e elegância de
obras superiores, como por exemplo o relevo sienense de Visão
de S. Ambrosio Sansedoni (fig. 9).
Na minha opinião, entretanto, ela parece ser melhor resolvida em
seu conjunto, graças em grande parte à abolição do movimento. Os
gestos que teatralizam o desespero do pastor, que joga o corpo para
trás enquanto tenta caminhar para frente, tornam a composição do
Adônis não só deselegante como pouco convincente em
relação a este estado de ânimo.
De
fato, a inabilidade do escultor na representação do movimento é
um traço corrente em sua vasta produção. Esta é, aliás, uma das
evidências em que Schlegel se baseia para comprovar a autoria de
Giuseppe Mazzuoli em duas estatuetas de Caridades. A primeira, em
bronze, propriedade dos Museus de Berlim, (fig.
10), e uma segunda, em terracota, no Victoria
and Albert Museum, em Londres, (fig. 11).
Ambas encontram-se, é curioso notar, numa posição indeterminada,
que não deixa saber se estão em pé, sentadas, ou ajoelhadas36.
Schlegel
vai mostrar que Giuseppe terá sempre como modelo primeiro para estas
estatuetas as Caridades criadas por Bernini: as dos
monumentos de Urbano VIII e de Alessandro VII, Fabio Chigi, esta
executada por Mazzuoli entre 1673 e 1675 (fig.
12). O modelo para esta última (fig. 13),
que fazia parte dos objetos reunidos no studio romano do
escultor, não é de sua autoria como pensou Schlegel, mas sim de
Bernini, como se especifica no número 75 do inventário de Giuseppe
Maria Mazzuoli37.
Nos
dois monumentos, as Caridades pensadas por Bernini
movem-se em direção à figura do papa a fim de que este possa abençoar
as crianças desprotegidas que trazem consigo. Portanto, neste caso
particular, o movimento está perfeitamente justificado. O curioso
é que Giuseppe continuará a repetir essa mesma forma composicional
em situações em que o movimento não tem qualquer finalidade aparente,
e cujo resultado tenderá a parecer pouco satisfatório. Este é o
caso, por exemplo, das estatuetas localizadas em Berlim e Londres.
Quanto
à Diana adormecida, livre desde o início deste eventual
prejuízo do movimento, creio ser possível assinalar como seus precedentes
imedatos a estátua quinhentista de Diana adormecida
(fig.
14) na fonte parietal no ângulo do palácio
Barberini, no Quadrivio delle Quattro Fontane38
e a figura alegórica berniniana da Justiça, no monumento
de Urbano VIII (fig. 15).
A Justiça, recostada no sarcófago papal, apóia a cabeça
nas costas da mão direita, e seu braço esquerdo está disposto à
frente do corpo, da mesma maneira que ambas as Dianas.
Da
primeira Mazzuoli, retira a idéia de uma Diana adormecida e repete
tanto a composição geral, invertendo-a, quanto detalhes como a crescente
e os cabelos repartidos ao meio, presos em coque. É improvável que
Giuseppe ignorasse as representações de ninfas adormecidas, em especial
as de Ariadne, nas decorações dos sarcófagos antigos, espalhados
por Roma, ou mesmo estátuas análogas, como é o caso da Ariadne
do Vaticano. Antes de mais nada, é a própria inexistência de modelos
figurativos antigos da deusa nessa situação particular que o obriga
a voltar-se para uma solução moderna do tema, no caso, a Diana
quinhentista. Trata-se do único exemplo que conheço, em escultura,
relativo ao tema da deusa caçadora adormecida, anterior àquele realizado
pelo próprio Mazzuoli. Todavia, no que respeita às soluções formais,
Mazzuoli continua a seguir de perto o exemplo de Bernini, pois,
embora hábil, não chegou a ser um escultor particularmente engenhoso:
pouco dado a invenções, restringia-se, com frequência, a reelaborar,
com algumas modificações de êxito variável, as composições de seus
mestres, Bernini e Melchior Caffà (Malta 1638 - Roma 1667). Procedimento
que vai dar margens ao julgamento negativo de Cellini, que afirma
que Caffà foi incumbido por Ercole Ferrata de treinar "da
solo l'arido ingegno del Mazzuoli"39.
Na
Diana, assim, da mesma maneira que no Adônis,
reconhecem-se, sem dificuldades, certos detalhes de execução tomados
de Bernini. Riccoboni notara já uma certa semelhança da veste da
deusa com o panejamento da Caridade Chigi, que Bernini
faz enrolar-se ao redor da perna40.
Esta
maneira de desenvolver o panejamento, aprendida então por Mazzuoli,
torna-se típica em sua obra. O panejamento na Diana,
mais delicado e que deixa ver uma das pernas da deusa, difere ligeiramente
do tipo berniniano presente na Caridade Chigi. Aqui,
Giuseppe parece ter se voltado para uma reelaboração anterior de
outro modelo berniniano, do final dos anos 90. Para que isto fique
claro, será necessário referir, em particular, o seu bozzetto
em terracota do anjo porta-candelabro41,
da coleção Chigi-Saracini (fig. 16)42.
Aí, o modo de Mazzuoli conceber o panejamento repete a solução que
Bernini deu para os anjos da ponte de Sant'Angelo, e, em
especial para o Anjo com a coroa de espinhos (1667-1669),
levado para o altar-mór da igreja romana de Sant'Andrea delle
Fratte (fig. 17),
modelo já utilizado pelo artista para os anjos de S. Agostinho em
Siena.
Bernini
é ainda o exemplo fundamental que Mazzuoli segue para a execução
das mãos e pés de suas figuras, os quais já copiara com atenção
no ateliê de Ferrata. O artista deve ter mesmo conservado alguns
destes estudos, a julgar pelo que está relacionado no inventário
de 1767. De acordo com ele, o ateliê sienense dos Mazzuoli possuia
20 peças do gênero43.
Mazzuoli
estabelece, sempre de acordo com o modelo genérico berniniano, uma
verdadeira tipologia para estas partes. Tomando-se, por exemplo,
o grupo de Plutão e Proserpina (fig. 18),
é fácil ver que Gian Lorenzo dá um tratamento diferenciado para
mãos masculinas e femininas, que Mazzuoli vai adotar para si. Todavia,
as mãos executadas pelo discípulo caracterizam-se, invariavelmente,
pela falta de uma estrutura óssea convincente, em um gênero ou outro.
As mãos masculinas são largas, com as juntas vincadas por finas
pregas de carne, e os dedos, angulosos, terminam bastante retos.
É o que se pode observar, entre outras figuras, na de S. José, que
faz parte do relevo oval que representa a Educação da Virgem
(fig. 19,
20),
esculpido por volta de 1700, hoje no Museu de Cleveland44.
As mãos femininas, ao contrário, são gordinhas e planas, constituindo-se
quase em uma espécie de prolongamento do braço; os dedos têm forma
cilíndrica e parecem estar apenas encaixados na mão. Esta descrição,
que segue em linhas gerais aquela já feita por Schlegel a propósito
da mão do modelo em terracota, de 1713, para a estátua da Caridade
no monumento Pallavicini45,
na Pinacoteca de Siena, serve perfeitamente para a mão da Diana
adormecida (fig.
21).
A
dificuldade do escultor em dotar suas figuras de uma estrutura óssea
convincente, manifesta-se também nas demais partes do corpo, e não
apenas nas mãos e pés: as articulações arredondadas, em especial
os ombros, além dos pescoços e peitos dos pés inchados, são características
inconfundíveis do estilo maduro de Giuseppe Mazzuoli. Desse ponto
de vista, na Diana, tudo corresponde às escolhas usuais
do escultor, menos, como é curioso notar, o pé, cuja forma é plana
(fig.
22), muito semelhante àquela que recobre os
pés do Adônis, nos quais Pansecchi julga ver o "il
suo modo meno differenziato e meno ricco di tensione di concepire
la forme"46.
No Adônis, contudo, Giuseppe seguia um modelo que
realizara há quase 30 anos.
A
hipótese que suponho mais provável para Mazzuoli ter retornado a
uma solução de juventude, como a do Adônis, leva em
conta sobretudo o fato de a estátua estar calçada. Este detalhe
não é comum na obra de Mazzuoli. Afora a Diana, ele
ocorre apenas em uma de suas estátuas, maior que o natural, de Cosimo
III (1681-1687), encomendada pelo Cardeal Chigi e que encontra-se,
hoje, nos jardins dos Orti Leonini, em San Quirico, próximo
de Siena47.
Giuseppe deve ter utilizado, para esses dois casos, uma de suas
cópias juvenís, em gesso, de pé calçado por sandálias. Poder-se-ia
pensar mesmo em alguma das cópias produzidas a partir dos delgados
pés do Apolo de Bernini (fig. 23).
No que diz respeito à cabeça, parte mais nobre da hierarquia anatômica
adotada, Riccoboni ser na Diana a única parte mal
resolvida48.
Na
minha opinião, entretanto, embora a expressão da Diana
seja acentuadamente estilizada, a graciosidade, comum aos rostos
femininos esculpidos por Mazzuoli, está mantida. Ela é estranha
certamente tanto às expressões adocicadas de suas Virgens quanto
às das tardias Virtudes — a Prudência, a Caridade,
a Fortaleza e a Justiça (figs.
24 a 27)49
— com seus rostos adolescentes e seus narizes levemente arrebitados,
nos monumentos fúnebres Pallavicini-Rospigliosi, mas não à Diana
adormecida do MASP. Esta possui uma economia fisionômica
que se deve, segundo creio, ao esforço notório de Giuseppe para
dar à estátua um tom de imitação do antigo, como era mister no caso
das encomendas colecionistas.
Semelhante
economia fisionômica é repetida pelo escultor no rosto da estátua
da Cleópatra (fig. 28
e 29),
que é amparada por sua serva no momento da morte. Este grupo escultório
datado de 1723, foi iniciado dez anos antes, assim como o Adônis,
"per suo divertimento", e deve ter sido terminado
com a ajuda do sobrinho Bartolomeo. Ao menos é isto o que Butzek
conclui a partir da indicação da obra como trabalho incompleto no
testamento do artista, realizado em julho de 171450.
Segundo o que anotou o pintor Pier Leone Ghezzi nas margens de um
desenho datado de 18 de dezembro de 1723, este grupo foi oferecido
a nobres ingleses pelo preço de mil escudos. Sua compra, contudo,
não foi efetuada, e a obra permaneceu no ateliê sienense após a
morte de Giuseppe em 172551.
Ao redor de 1736, Pascoli informa que teria sido finalmente vendida
a um agente da coroa portuguesa pelo valor de três mil e trezentos
escudos52,
e encontra-se desde 1737 no jardim do Hospital do Ultramar em Lisboa53.
Seu estado de conservação é atualmente lastimável: da serva, faltam
a cabeça e a mão direita, e da Cleópatra, a ponta do nariz, parte
do pé direito e a mão direita.
Ao
contrário do que julgava Riccoboni, o rosto "antigo" da
Diana adormecida foi considerado por seu ateliê uma
solução bem sucedida. Prova disso é a terracota de uma cabeça feminina
(fig.
30), da segunda metade do século XVIII, atribuída
a Giuseppe Maria Mazzuoli (Siena 1727-1781), aluno e sobrinho de
Bartolomeo, conservada no Palácio Chigi-Saracini em Siena. A figura
está igualmente adormecida, e repete a posição inclinada da cabeça
da deusa, com o longo pescoço estirado. É esta ao menos a opinião
expressa no catálogo da coleção sienense, que a relaciona com a
cabeça da Cleópatra e da Diana adormecida54.
Por
tudo isso, a esta altura do estudo da documentação, já não creio
haver dúvida razoável para negar-se a Mazzuoli a autoria da estátua
do Masp.
Por
fim, devo agradecer ao prof. Luiz Marquez, que em 1995, no papel
de curador do Masp, considerou suficientes as evidências apresentadas
por mim, e mudou a autoria da obra nos documentos oficiais
do Museu.
outubro, 2005
cristianemarian@yahoo.com.br