NA CAPITAL FEDERAL

 

Hoje começa a minha insônia.
A que não tem nome e nasce
de um descuido de febre ou cocaína.
Quanta pureza no silêncio de sua doença;
a noite se confunde aos olhos abertos,
e o que a visão traz o sono esquece.

Não tenho sono. Estou acordado como um cão.
Não me alcança nem mesmo a dança cardíaca
que a madrugada soletra muito devagar
no corpo de quem dorme. Eu não durmo porque
hoje eu vivi demais.

Qualquer ruído me acordará para sempre.
Olho nos ponteiros as horas mais raras
e calculo quanto tempo falta para que eu continue
a me sentir da mesma maneira. Falta pouco.
Rua vazia maior do que janela.
Temperatura das paredes e das sirenes.
Porosidade da mesa. Sob o inseto.

Quem se lembrará de quem não tem sono?
Quem se esquece, mais acordado,
das camas de hospital e dos corpos aquecidos pela dor?
Insônias são ruínas, tal como seus habitantes:

metal que não enferruja até o fim,
onda de um mar que a praia evita,
ave que se atira contra o solo,
paralisia que provoca a convulsão,
vulcão de nome antigo, mas aceso.
Quantas horas ainda passarão pelo avesso?
Eu me olharei no vidro de um relógio, não no de um espelho,
pois quem se parecia comigo já passou.
Estou acordado — e é um modo de me confessar.

Outra noite assim e saberei ao menos
o que a morte tem de susto, o que o sono tem de tudo.

 

 

 

A CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO

 

A espinha do peixe é o poema do peixe.
Quando se abre a espinha do peixe
é a longa espinha que surge,
que faz sentido,
                           que escreve a forma do corpo
e o instante do seu mergulho.

A espinha do peixe é o que o peixe é.
Vertebração na água azul que aceita o impulso.
Animal que nunca se confunde com medusas,
com anêmonas sem desenho claro ou situação.
O que move o peixe é o seu poema de dentro.

 

 

 

SCIENCE FICTION

Acredito em tudo porque existe
o campo magnético,
porque alguém pesquisa como imantar um copo d'água.
Acredito que o tumor maligno
se origine do convívio com os alfinetes
e sei que sobre Deus há duas afirmações contraditórias
e mais três sobre seus derivados.
Aprendo como nasci porque estou vivo.
Porque a saúde é uma circunstância,
e morrer, uma outra, embora mais duradoura.

 

 

 

ECCE HOMO

Coisas estranhas:
o nome de quem acorda de madrugada,
a vertigem de quem trabalha como balconista,
quebrar o jarro, e entender os estilhaços,
escapar da morte e culpar os faróis altos,
negar a existência de Deus, a perfeição do ovo,
e amar, em segredo, escritores incompatíveis
que ironizaram sobre o mesmo tema,
e só ter remorsos quando se perde dinheiro,
e dormir na mesma cama, os dois, várias vezes.
Coisas estranhas:
humanas, demasiado humanas.

 

EM-SI

L'en-soi n'a point de secret: il est massif.
J.-P. SARTRE, L'Être et le Néant

Assim são as coisas.
As coisas não têm hiatos.
Elas se conjugam à minha frente,
sem pudor e sem morte.
Cercado de coisas
tento me desviar do caos
e as coisas teimam.
Não somem nem no silêncio.
O abandono não lhes causa danos.
Não quebram, não rasgam,
resistem ao inferno, ao paraíso e ao cemitério.
Já são milhões, e daqui a alguns anos
as coisas apenas ocorrerão
e será difícil respirar o ar
sem pensar nelas, dentro da vida.

 

AMIZADE

Amigo (embora isso pouco importe),
qual de nós morrerá primeiro?
Não tenho paciência para pensar
no seu enterro.
Você tem dinheiro suficiente
para pensar no meu?
Andamos juntos por tanto tempo:
a amizade também morre
de velhice.
Como essas manhãs que nascem
de luz indecisa, cheias de pânico,
pensamos na superfície do mundo.
Até quando a habitaremos?
Por algum descuido, não conheço
a sua solidão — e ela
nunca se infiltrou na minha.
Somos amigos, mas não somos os únicos.
São poucos os dias serenos.
Além disso, não podemos ficar nus.

 

 

NATUREZA MORTA

1 prato fundo 2 maçãs 2 pêras 2 bananas
e a máquina fotográfica de Cézanne:
instantâneo da luz que abraça a superfície
do aroma das frutas, cheio de sombras.
1 quadro 1 moldura e em 2 segundos
já não se sabe mais o que morreu:
a natureza, que sempre foi pintura?
ou a pintura, a mais delicada das frutas?

 

ANATOMIA

Um poema é uma guerra: nele e nela
se desintegram a palavra e a vida
e o que resta é perda que ressuscita:

ler um poema de certo modo o mata,
pois morre o que não se pensou ao ler,
embora a leitura aos poucos esclareça

o que se pensou jamais se fosse ler.
Poema é duelo plural e infinitivo:
é, acrobática, sobre o papel a escrita

ao mesmo tempo enigma, estigma, ígnea.
Ler o poema, mas não resolvê-lo:
isso acontece há muito tempo,

e somos nós que estamos lá dentro.
O poema nos faz e desfaz, a guerra também,
e é com palavra e arma que sabemos

o quanto nos resta de sonho e de renascimento.

 

ANAGRAMA

No instante em que se desmancha
a pele, o hálito, a dança,
ouve-se o aviso enorme
de algo que invade e que envolve:
"é coisa estranha, a morte."

No entanto, mesmo cansado,
mesmo com sono ou com tédio,
convivo com o que vejo,
e, frente a ela, percebo
a coisa estranha: a vida.

 

POEMAS À DISTÂNCIA

A

Há uma distância entre as coisas:
a cor das coisas, sobre a mesa,
não revela, não aparenta.

A maldição é terrível: se as coisas
desaparecem, a distância entre elas
permanece, gigantesca.

Então destruir as distâncias.
Mas de que modo, se o sonho as alimenta,
e as coisas e as distâncias se entrelaçam

até no instante em que me ausento?

 

B

A distância entre as coisas é um problema eterno.
Tu és coisa distante de Deus
e Ele é coisa distante do entendimento:
sou coisa distante de ti, ó corpo feminino,
e mesmo quando nos servimos em festa
é com nossa distância que nos divertimos.
Sensação e sabor: pura distância.
Horizonte e arquipélago: mesma coisa.
Quanta estranheza nos abraça
e, muito pior, quantas vezes já tentamos
abraçá-la — tudo porque estamos vivos
e a morte murmura uma palavra embaçada.

 

C

À distância, não vejo as coisas.
Estão longe até de minha distância.
Estou sozinho. Minha profissão
é ser distante, porém
distante como os fios elétricos e a oculta voltagem,
como o telefonema repousando no cabo submarino.
Entre uma distância e outra
apareço e já devoro — devoro, por exemplo,
a distância entre o assassino e o morto,
pois a distância é a despedida
mais duradoura, mais imunda e destrutiva.

 

(Em Atrito)

 

CUPIDO EM AÇÃO

 

Você é o que todos esperam:

  um deus portátil

  de bar em bar.

E passional de arco e flecha,

talvez um guerreiro sensível demais.

 

Você convence. A força do amor

é destrutiva, não interessa

se estamos juntos ou apenas

com sua carta na mão.

Epifania? Lembranças? Tudo são rastros

que levam a você, farto de recolher

as almas sucumbidas e os corpos sem juízo.

Amor serve para tudo, e você, deus ordinário,

é onipresente, e gera o pânico

de uma roupa sob medida

vendida em liquidação.

Você tornou o nome das pessoas

mais violento,

e agora persiste o acaso dos encontros

atravessados por sua arma em punho.

De que maneira, perguntam todos,

podemos um dia abençoá-lo?

Você afinal é perfeito, e combina

a loucura com o modo mais esmerado

de estar bem perto dos outros

e de ser aceito.

 

(Inédito)

 

(o quadro e a letra que escreveu o
nome do poeta é de cézanne)

 

 

Felipe Fortuna, poeta, diplomata, professor-visitante do King's College, em Londres — cidade em que vive atualmente —, tem contribuído para o debate sobre poesia brasileira, como atuante crítico literário. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1963.

Logo após a publicação de Ou Vice-Versa (1986), a poesia de Felipe Fortuna foi saudada como "uma grata surpresa e uma promessa da qual se poderia dizer já estar em parte cumprida". A partir de Atrito (1992), seu segundo livro de poemas, o poeta foi escalado, conforme as palavras de um jornal, num time de onze melhores poetas brasileiros contemporâneos. Em Estante (1997), projetou para o relacionamento amoroso-erótico e para a linguagem surrealista presente em "Seres" a "poética da estranheza" que havia sido percebia por José Paulo Paes. Para o seu ambiente dá continuidade a um discurso por vezes irônico, por vezes melancólico, cuja lucidez se exprime em imagens surpreendentes. O novo livro junta-se agora aos demais livros de poemas de Felipe Fortuna, o que permite conhecer todas as etapas de um dos poetas mais importantes da sua geração. Mais em seu site e aqui.

Bibliografia

Ou Vice-Versa, poemas, Rio de Janeiro: Achiamé, 1986; A Escola da Sedução, Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1991; Atrito, Brasília: Alarme, 1992; Louise Labé: Amor e Loucura, tradução, São Paulo: Siciliano, 1995; Curvas, Ladeiras — Bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997; Estante, poemas, Rio de Janeiro: Topbooks, 1998; Visibilidade, ensaios, Rio de Janeiro: Record, 2000; A Próxima Leitura, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.