NATUREZA
MORTA
1
prato fundo 2 maçãs 2 pêras 2 bananas
e a máquina fotográfica de
Cézanne:
instantâneo da luz que abraça a superfície
do aroma das
frutas, cheio de sombras.
1 quadro 1 moldura e em 2 segundos
já
não se sabe mais o que morreu:
a natureza, que sempre foi
pintura?
ou a pintura, a mais delicada das
frutas?
ANATOMIA
Um
poema é uma guerra: nele e nela
se desintegram a palavra e a
vida
e o que resta é perda que ressuscita:
ler um poema de
certo modo o mata,
pois morre o que não se pensou ao ler,
embora a
leitura aos poucos esclareça
o que se pensou jamais se fosse
ler.
Poema é duelo plural e infinitivo:
é, acrobática, sobre o
papel a escrita
ao mesmo tempo enigma, estigma, ígnea.
Ler o
poema, mas não resolvê-lo:
isso acontece há muito tempo,
e
somos nós que estamos lá dentro.
O poema nos faz e desfaz, a guerra
também,
e é com palavra e arma que sabemos
o quanto nos resta
de sonho e de renascimento.
ANAGRAMA
No
instante em que se desmancha
a pele, o hálito, a dança,
ouve-se o
aviso enorme
de algo que invade e que envolve:
"é coisa estranha,
a morte."
No entanto, mesmo cansado,
mesmo com sono ou com
tédio,
convivo com o que vejo,
e, frente a ela, percebo
a coisa
estranha: a vida.
POEMAS
À DISTÂNCIA
A
Há
uma distância entre as coisas:
a cor das coisas, sobre a mesa,
não
revela, não aparenta.
A maldição é terrível: se as
coisas
desaparecem, a distância entre elas
permanece,
gigantesca.
Então destruir as distâncias.
Mas de que modo, se
o sonho as alimenta,
e as coisas e as distâncias se
entrelaçam
até no instante em que me ausento?
B
A
distância entre as coisas é um problema eterno.
Tu és coisa distante
de Deus
e Ele é coisa distante do entendimento:
sou coisa distante
de ti, ó corpo feminino,
e mesmo quando nos servimos em festa
é
com nossa distância que nos divertimos.
Sensação e sabor: pura
distância.
Horizonte e arquipélago: mesma coisa.
Quanta estranheza
nos abraça
e, muito pior, quantas vezes já tentamos
abraçá-la — tudo porque estamos vivos
e a morte murmura uma
palavra embaçada.
C
À
distância, não vejo as coisas.
Estão longe até de minha
distância.
Estou sozinho. Minha profissão
é ser distante, porém
distante como os fios elétricos e a oculta voltagem,
como o
telefonema repousando no cabo submarino.
Entre uma distância e
outra
apareço e já devoro — devoro, por exemplo,
a distância
entre o assassino e o morto,
pois a distância é a despedida
mais
duradoura, mais imunda e destrutiva.
(Em Atrito)
CUPIDO EM AÇÃO
Você é o que todos esperam:
um deus
portátil
de bar em
bar.
E
passional de arco e flecha,
talvez um guerreiro sensível demais.
Você
convence. A força do amor
é
destrutiva, não interessa
se
estamos juntos ou apenas
com
sua carta na mão.
Epifania?
Lembranças? Tudo são rastros
que
levam a você, farto de recolher
as
almas sucumbidas e os corpos sem juízo.
Amor
serve para tudo, e você, deus ordinário,
é
onipresente, e gera o pânico
de
uma roupa sob medida
vendida
em liquidação.
Você
tornou o nome das pessoas
mais
violento,
e
agora persiste o acaso dos encontros
atravessados
por sua arma em punho.
De
que maneira,
perguntam todos,
podemos
um dia abençoá-lo?
Você
afinal é perfeito, e combina
a
loucura com o modo mais esmerado
de
estar bem perto dos outros
e
de ser aceito.
(Inédito)
(o quadro e a letra que escreveu o
nome do poeta é de
cézanne)
Felipe Fortuna, poeta,
diplomata, professor-visitante do King's College, em Londres —
cidade em que vive atualmente —, tem contribuído para o debate
sobre poesia brasileira, como atuante crítico literário.
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1963.
Logo após a publicação de Ou Vice-Versa (1986),
a poesia de Felipe Fortuna foi saudada como "uma grata surpresa e
uma promessa da qual se poderia dizer já estar em parte cumprida".
A partir de Atrito (1992), seu segundo livro de poemas,
o poeta foi escalado, conforme as palavras de um jornal, num time
de onze melhores poetas brasileiros contemporâneos. Em Estante
(1997), projetou para o relacionamento amoroso-erótico e para a linguagem
surrealista presente em "Seres" a "poética da estranheza" que havia
sido percebia por José Paulo Paes. Para o seu ambiente dá continuidade
a um discurso por vezes irônico, por vezes melancólico, cuja lucidez
se exprime em imagens surpreendentes. O novo livro junta-se agora
aos demais livros de poemas de Felipe Fortuna, o que permite conhecer
todas as etapas de um dos poetas mais importantes da sua geração.
Mais em seu site e aqui.
Bibliografia
Ou Vice-Versa, poemas, Rio de Janeiro: Achiamé,
1986; A Escola da Sedução, Porto Alegre: Artes &
Ofícios, 1991; Atrito, Brasília: Alarme, 1992; Louise
Labé: Amor e Loucura, tradução, São Paulo: Siciliano, 1995;
Curvas, Ladeiras — Bairro de Santa Teresa,
Rio de Janeiro: Topbooks, 1997; Estante, poemas,
Rio de Janeiro: Topbooks, 1998; Visibilidade, ensaios,
Rio de Janeiro: Record, 2000; A Próxima Leitura,
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.