©joão castela cravo
                                                                                                 
 
 
 
 

       

Londres | Hay-on-Wye, minúscula cidade de mil e duzentos habitantes do País de Gales, tem mais sebos do que o Rio de Janeiro. Em quantidade de livros estocados em cada livraria, Hay-on-Wye ultrapassa de longe qualquer cidade do mundo: há pelo menos 400 mil livros nas prateleiras da Richard Booth, e cerca de 250 mil na Hay Cinema Bookshop. As demais 34 livrarias da cidade possuem acervo igualmente monumental, e muitas são especializadas em ornitologia, literatura infantil, apicultura, religião, música, fotografia, história vitoriana.

Passear pelas poucas ruas de Hay-on-Wye transforma o turista em "visiteur engagé", pois é preciso concentração e esforço para realizar visitas minuciosas a galpões e edifícios que nunca têm menos de três andares repletos de estantes. Na cidade, o comprador de livros assume o destino de um personagem de Borges, perdido no labirinto de bibliotecas inteiras compradas e vendidas. Cada livraria, por sua vez, reproduz a idéia do livro de areia: um dos orgulhos dos vendedores locais é a constante renovação dos estoques, o que provoca a sensação de que as livrarias são sempre novas e infinitas.

Ao contrário do que acontece com outras cidades da Grã-Bretanha, associadas secularmente a alguma atividade, Hay-on-Wye nunca teve tradição de livros. A grande transformação ocorreu em 1961, quando Richard Booth, cuja família sempre viveu na região, revoltou-se contra o esquema de turismo existente no País de Gales. Percebeu que a área de Midwales só poderia atrair visitantes e se tornar mais conhecida caso ali fosse iniciada alguma atividade em escala jamais imaginada. Teve então a idéia de abrir uma gigantesca livraria de livros usados, comprando inicialmente não apenas estoques britânicos, mas sobretudo leilões de bibliotecas públicas e universidades americanas. Sua lição para os donos de sebos é: "Compre livros de todos os lugares do mundo que seus clientes virão de todos os lugares do mundo".

A iniciativa de Richard Booth demonstrou, inicialmente, a tese de que o turismo no País de Gales só tinha a perder com os esquemas governamentais. Booth é conhecido pelo fervor com que defende as idéias trabalhistas. Acredita que as iniciativas governamentais só beneficiam cadeias de supermercados e lojas de departamento, e descaracterizam as cidades do interior. Seu slogan político é "Home Rule for Hay", ou seja, a lei feita pelos que moram no lugar. Mas desde as recentes eleições gerais, em 1 de maio, não é mais um homem da oposição. O País de Gales eliminou pelo voto todos os parlamentares conservadores e, assim como a Escócia, só abriga trabalhistas, liberais democratas ou representantes de partidos menores.

Ao escolher Hay-on-Wye, cidade bem próxima à fronteira com a Inglaterra, como o lugar que abrigaria a sua aventura política-comercial, Richard Booth também enviou uma mensagem nacionalista aos políticos que comandam o país a partir de Londres. O sucesso de seu empreendimento foi tão grande que convenceu diversos comerciantes, acostumados a uma vida rural, a se transformarem em livreiros especializados. Ele mesmo, Richard Booth, se proclamou "Rei" da cidade e, para que não houvesse dúvidas sobre sua fama e soberania, mudou-se para um pequeno castelo no centro da cidade, onde também abriu uma livraria. No dia 1 de abril de 1977, decidiu declarar a independência de Hay-on-Wye, o que foi sensatamente interpretado como mais um gesto excêntrico do personagem principal da cidade.

A 250 quilômetros de Londres, 110 de Birmingham e 80 de Cardiff, a capital do País de Gales, Hay-on-Wye impôs-se como centro de sebos numa região que só mostrava ao mundo a contínua paisagem de pastos, ovelhas e vacas. Tão isolada é a cidade que, ainda hoje, não é possível alcancá-la de trem: deve-se saltar na estação de Hereford, a 35 quilômetros, e fazer o resto do percurso por estradas ao longo do vale do rio Wye.

O morador da cidade se orgulha ao ver que o antigo cinema não foi transformado em salão de bingo ou em supermercado. No jardim da Hay Cinema Bookshop há mais atrações em cartaz: uma livraria a céu aberto, na qual cada livro custa 50 pence (ou 82 centavos), formada de caixas de metal que apenas à noite são fechadas. Ainda no jardim foi construída uma pirâmide de acrílico que abriga, obviamente, livros no seu interior, como num enigmático mostruário. Na entrada do Hay Castle, loja e moradia do "Rei" Booth, existe outra livraria a céu aberto, a Honesty Bookshop. Honestidade, sim, porque ali não há vendedores e o valor de cada livro deve ser depositado pelo comprador em pequenos cofres, à saída do castelo. Qualquer um pode também alugar uma estante nessa livraria, caso queira passar adiante os livros indesejados. Os bons preços e a variedade de assuntos são de fato muito atraentes. Quando estive lá, comprei algumas sacolas de livros carregadas de preciosidades como a tradução de Oliver Elton do poema Evgeny Onegin, de Pushkin; o estudo de Jean Prevost sobre Baudelaire; a edição britânica de 5 peças teatrais de Tennesse Williams; a clássica análise histórica de Alan Manchester, British Preeminence in Brazil; a tradução para o inglês da vida de Joaquim Nabuco por sua filha, Carolina, em que a maior curiosidade é um autógrafo do Monsenhor Joaquim Nabuco, enviado de sua casa em Santa Teresa, no Rio de Janeiro; e ainda os ensaios de José Guilherme Merquior reunidos em The Veil and the Mask. Todos esses livros me custaram apenas 56 reais.

A tendência de Hay-on-Wye é imaugurar cada vez mais livrarias especializadas, já que os grandes empórios de livros estão bem estabelecidos. Mas a cidade não é apenas reduto de eruditos: há 10 anos vem sendo realizado o popular "Hay Festival" (o próximo começa em 23 de maio e termina em 1 de junho), que é o mais importante encontro de literatura da Grã-Bretanha. Dentre as presenças confirmadas deste ano estão Harold Pinter, Edmund White, Martin Amis e Edna O'Brien. O ex-Primeiro Ministro de Israel, Shimon Peres, falará sobre seu papel como negociador da paz no Oriente Médio. Outro Prêmio Nobel, o químico Harry Kroto, falará sobre "A Arte e Arquitetura do Microcosmos". Estarão presentes correspondentes de Guerra (Martin Bell falará sobre a Bósnia), autores de best-sellers (Bill Bryson falará, pela enésima vez, sobre seu livro de viagens pela Grã-Bretanha), exploradores e poetas. Richard Booth estava certo. Longa vida ao Rei.

 

 

 

Felipe Fortuna, poeta, diplomata, professor-visitante do King's College, em Londres — cidade em que vive atualmente —, tem contribuído para o debate sobre poesia brasileira, como atuante crítico literário. Entre outros, é autor do livro A Próxima Leitura ensaios de crítica literária (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002). Mais em seu site e aqui.