INTRODUÇÃO À ARTE DAS MONTANHAS
Um animal passeia nas
montanhas. Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o o
fôlego mas não desiste de chegar ao ponto mais alto. De tanto
andar fazendo esforço se torna um organismo em movimento reagindo
a passadas, e só. Não sente fome nem saudade nem sede, confia
apenas nos instintos que o destino conduz. Puxado sempre para
cima, o animal é um ímã, numa escala de formiga, que as montanhas
atraem. Conhece alguma liberdade, quando chega ao
cume. Sente-se disperso entre as nuvens, acha que reconheceu
seus limites. Mas não sabe, ainda, que agora tem de aprender a
descer.
(De Argumentos
Invisíveis, 1995)
TIÊ-SANGUE
existe um passarinho vermelho tiê-sangue no mato perto da
situação casual de eu lembrar você e ele aparecer subitamente ou
passar como um raio levado na abertura azul das duas folhas que
um ventinho destrança.
existe um passarinho
tiê-sangue que é a essência da codificação deslumbrante desses
momentos que passo à busca búsqueda incompreensões largado
na liquidez completa de não contar com uma explicação para
hoje. um passarinho tiê-sangue avançando
no balanceamento aqui das rodas crepusculares do acaso que
por acaso é o nome das circunstâncias que eu dou à roda
madrugadas tiê-sangue subindo e balançando aqui no alto do morro
como um passarinho. existe uma infinita, uma fita
imensurável, a quinta pérola do alfabeto dentário do Cadmo
plantando palavras
numa brincadeira
atônita de dizer que existem o Infinito e a Água. um
tiê-sangue bem bonito suspirado parando como a atingir na
ponta-do-galho o Momento Extremo.
(Em Vertigens)
MULHER DE PÉ NO FIM DO MUNDO
Somente uns tufos secos de capim empedrado crescem na
silenciosa baixada que se perde de vista. Somente uma árvore, grande e
esgalhada mas com pouquíssimas folhas, abre-se em farrapos de sombra.
Único ser nas cercanias, a mulher é magra, ossuda, seu rosto está
lanhado de vento. Não se vê o cabelo, coberto por um pano desidratado.
Mas seus olhos, a boca, a pele — tudo é de uma aridez sufocante. Ela
está de pé. A seu lado está uma pedra. O sol explode. Deve ser um gavião
que de vez em quando gritava.
Ela estava de pé no fim do mundo. Como se andasse para aquela baixada
largando para trás suas noções de si mesma. Não tem retratos na memória.
Desapossada e despojada, não se debate em auto-acusações e remorsos.
Vive. Sua sombra somente é que
lhe faz companhia. Sua sombra, que se derrama em traços grossos na
areia, é que adoça como um gesto a claridade esquelética. A mulher
esvaziada emudece, se dessangra, se cristaliza, se mineraliza. Já é
quase de pedra como a pedra a seu lado. Mas os traços de sua sombra
caminham e, tornando-se mais longos e finos, esticam-se para os farrapos
de sombra da ossatura da árvore, com os quais se enlaçam.
(De Quatorze Quadros
Redondos, 1998)
(imagem ©mike
regnier)
Leonardo Fróes é poeta,
tradutor e ensaísta. Depois de ter morado na Europa e nos Estados
Unidos, vive recolhido em Petrópolis desde 1971. Seus livros mais
recentes, e ainda à venda, são todos publicados pela Editora Rocco:
Um outro. Varella (1990), Argumentos invisíveis
(1995), Vertigens, obra reunida, 1968-1998 (1998),
Trilogia da paixão, de Goethe (1999; tradução e
ensaio), O triunfo da vida, de Shelley (2001; tradução
e ensaio), Contos orientais (2003) e
Chinês com sono (2005).
Entre suas traduções mais recentes estão: Contos completos,
de Virginia Woolf (CosacNaify, 2005), Esquetes de Nova Orleans,
de William Faulkner (José Olympio, 2002), Panfletos satíricos,
de Jonathan Swift (Topbooks, 1999), e Middlemarch,
de George Eliot (Record, 1998). Ganhou o prêmio Jabuti de poesia,
em 1996, e o prêmio Paulo Rónai de tradução, em 1998. Mais na Revista Agulha, Editoras,
Alberto Pucheu, Entrenós, Símbolos,
Poema em Prosa e Literatura Intimista, A
Poesia e o Teatro de T. S. Eliot e no Especial:
Encontro com Leonardo Fróes.
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