SOBRE UM TEMA DE CONFÚCIO

Que fique pelo menos um homem
sozinho num bar deserto pensando
em nada de especial e curtindo
pessoas atarefadas que passam.

Que a ele pelo menos aquilo
tudo — a pressa das tarefas e os carros —
pareça uma paisagem vazia
e até certo ponto sem cabimento.

Que esse homem sentado, soterrado
talvez em decepções amargas, se oriente
para ouvir a canção além dos passos
e além de sua própria pessoa

que assim no delírio urbano ressoa
sem função social senão deixar
que a boca filosofe assobiando
e o ouvido obediente perceba.

(Inédito)

 

 

BROCHE VIVO

Tão leve no seu vestido estampado,
solto e com uma alça caída,
sentada embaixo de uma árvore
em cuja sombra o sol penetra
com finas riscas langorosas,
a mulher lendo, emparedada pelo livro
que tem nas mãos,
nem demonstra sentir na pele doce
a chuva ou saraivada de insetos
que a percorre, caindo em linha reta
da árvore espaçosa, e pousa
nos seus ombros nus, nos braços
e no cabelo sedoso,
para adornar-lhe o corpo pensativo
como jóias raras,
como broches vivos.

(Inédito)

 

 

MULHERES DE MILHO

Milhares de mulheres de milho
brotam do meu olho calado como espigas
fortes. No ar elas se endireitam

como folhudas criaturas carnosas
que ao vento se transmudam, de fêmeas,
em formosos penachos machos.

Acho graça na cruza; penso nisso
que é ser mulher a passo
de, sob a vertigem solar, virar confusa

hibridação. Abro-me. Brinco
de me dar. Rapto-me e opto-me
como se eu mesmo fosse me comer inteiro

enquanto as coisas simplesmente nascem.

(De Anjo Tigrado, 1975)

 

 

JUSTIFICAÇÃO DE DEUS

o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.

(De Sibilitz, 1981)

 

 

METAFÍSICA E BISCOITO

no meio dos latidos da noite
quando o silêncio atinge a qualidade
dos latidos da morte e as folhas caem
impressionavelmente sangradas;
no meio frio de um colchão inquieto
com os olhos pensativos resvalando no teto
e as mãos descendo pelo corpo
como a buscar sua realidade longínqua
quando os morcegos da melancolia
atravessam sem bater entre as árvores
e alguma coisa enraizada confusa
parece brotar de novo entre as pernas;
nesse espaço fundamental reduzido
onde as idéias se sucedem largadas
numa associação intempestiva
que é impossível deter ou compreender;
no cerco sem limite de um quarto
que roda em vários mundos e alterna
com a sensação de não haver nada disso
que dá contorno e forma à própria insônia —
— o homem dá um salto e se puxa
para fora do pântano
e devora um biscoito
e bebe um copo d'água e acende
um cigarro e mais outro.

(De Assim, 1986)

 

 

PAVIOLA

o que interessa — tão pouco — está no osso
como um ferro chiando enquanto voa
uma borboleta na sala;
     
    o que inter-essa não é nada disso
que está em cada e cala e talvez passe
como em meu corpo desanda uma avenida óssea

com suas luzes de carnifica;
    estar na terra, ou isso
que há no osso — um grão — é o quanto posso

quando longe de mim na borboleta que passa?
o que interessa — não, o que inteiriça
na dissolvência como um sonho em brasa

é pensar que me ponho, estando em terra,
num estado de brisa: e logo vejo
que mesmo isso é pura ilusão minha.

(De Assim, 1986)

 
 
INTRODUÇÃO À ARTE DAS MONTANHAS
 
Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.
 
(De Argumentos Invisíveis, 1995)
 
 
 
 
 
TIÊ-SANGUE
            
existe um passarinho vermelho tiê-sangue no mato
perto da situação casual de eu lembrar você e ele
aparecer subitamente ou passar como um raio levado
na abertura azul das duas folhas que um ventinho destrança.
 
existe um passarinho tiê-sangue que é a essência
da codificação deslumbrante desses momentos que passo
à busca búsqueda incompreensões largado
na liquidez completa de não contar com uma explicação para hoje.
 
um  passarinho tiê-sangue  avançando
no balanceamento aqui das rodas crepusculares do acaso
que por acaso é o nome das circunstâncias que eu dou
à roda madrugadas tiê-sangue subindo
e balançando aqui no alto do morro como um passarinho.
 
existe uma infinita, uma fita imensurável, a quinta
pérola do alfabeto dentário do Cadmo plantando palavras
 
numa brincadeira atônita
de dizer que existem o Infinito e a Água.
um tiê-sangue bem bonito suspirado parando
como a atingir na ponta-do-galho o Momento Extremo.
 
(Em Vertigens)   
 
 
 
 
MULHER DE PÉ NO FIM DO MUNDO
 
        Somente uns tufos secos de capim empedrado crescem na silenciosa baixada que se perde de vista. Somente uma árvore, grande e esgalhada mas com pouquíssimas folhas, abre-se em farrapos de sombra. Único ser nas cercanias, a mulher é magra, ossuda, seu rosto está lanhado de vento. Não se vê o cabelo, coberto por um pano desidratado. Mas seus olhos, a boca, a pele — tudo é de uma aridez sufocante. Ela está de pé. A seu lado está uma pedra. O sol explode. Deve ser um gavião que de vez em quando gritava.
        Ela estava de pé no fim do mundo. Como se andasse para aquela baixada largando para trás suas noções de si mesma. Não tem retratos na memória. Desapossada e despojada, não se debate em auto-acusações e remorsos. Vive.
        Sua sombra somente é que lhe faz companhia. Sua sombra, que se derrama em traços grossos na areia, é que adoça como um gesto a claridade esquelética. A mulher esvaziada emudece, se dessangra, se cristaliza, se mineraliza. Já é quase de pedra como a pedra a seu lado. Mas os traços de sua sombra caminham e, tornando-se mais longos e finos, esticam-se para os farrapos de sombra da ossatura da árvore, com os quais se enlaçam.
 
(De Quatorze Quadros Redondos, 1998)
 
 
 
 
(imagem ©mike regnier)
 
 
 
 
 
Leonardo Fróes é poeta, tradutor e ensaísta. Depois de ter morado na Europa e nos Estados Unidos, vive recolhido em Petrópolis desde 1971. Seus livros mais recentes, e ainda à venda, são todos publicados pela Editora Rocco: Um outro. Varella (1990), Argumentos invisíveis (1995), Vertigens, obra reunida, 1968-1998 (1998), Trilogia da paixão, de Goethe (1999; tradução e ensaio), O triunfo da vida, de Shelley (2001; tradução e ensaio), Contos orientais (2003) e Chinês com sono (2005). Entre suas traduções mais recentes estão: Contos completos, de Virginia Woolf (CosacNaify, 2005), Esquetes de Nova Orleans, de William Faulkner (José Olympio, 2002), Panfletos satíricos, de Jonathan Swift (Topbooks, 1999), e Middlemarch, de George Eliot (Record, 1998). Ganhou o prêmio Jabuti de poesia, em 1996, e o prêmio Paulo Rónai de tradução, em 1998. Mais na Revista Agulha, Editoras, Alberto Pucheu, Entrenós,  Símbolos, Poema em Prosa e Literatura Intimista, A Poesia e o Teatro de T. S. Eliot e no Especial: Encontro com Leonardo Fróes.