©abelardo morell
 
 
 
 
 

"(— E porque temo que os heróis

     se exilarão de suas próprias lendas

     espancados de sua gente e mordidos de seus cães

                  enquanto espero

     teço labirintos de cautela)"

S.C.

 

 

 

        O tempo massacra a memória, indiscutivelmente... Mas há dez anos eu escrevera sobre a obra Sérgio Campos. Floriano Martins, antes, já tratara em vida e obra com o poeta, pois eram cúmplices de sortilégios em forma de poesia. Tempos depois, Leontino Filho arregaçou as mangas, reuniu crítica e paciência, e escreveu sobre e para o poeta uma dissertação — Sob o signo de lumiar —, rica de poesia e sentimento, em meio a jargões acadêmicos.

Esses dias, não sei por qual razão lembrei do poeta... Talvez uma coincidência pelos dez anos de ausência casualmente pressentidos, ou, quem sabe, a lembrança do período em que, com resistência, evitava escrever sobre poetas, contistas, romancistas, uma vez que sofria por não os encontrar depois como leitores, pois eles teimavam em deixar os textos órfãos para sempre.

        Resolvi, então, despertar para reler o que escrevera há tanto tempo. Penso que continuo devendo muito mais ao poeta, mas sei que continuo resistindo ao que outrora escrevi. Se me permitem, reedito o que chamei de Os abismos horizontais de Sérgio Campos. Uns poucos acertos, um pouco de perplexidade, um pouco de saudade daquele que conheci somente através de uma foto e de seus poemas, mas que foi o bastante para saber reverenciá-lo.

No texto, conhecido por poucos, escrevi quase isto:

 

 

Tempo e maturidade são fatores essenciais para consolidar as relações viscerais entre a poesia e o poeta. Convém esclarecer que essa afirmativa anula a concepção comum de tempo, enquanto representação dos movimentos do Universo. Concebido assim, sem as prisões estabelecidas pelo homem e seus métodos, mas como parcela íntima e individual, o  tempo do poeta contraria a inevitável degeneração funcional e orgânica do ser humano. Dessa forma, permite elastecer a mirada dos horizontes e aprofundar a contemplação das esferas de vivência interior; já a maturidade, provável conseqüência do sofrer a vida, torna-se motivo condutor da experiência poética, estendida entre a realidade e o imaginário.

        Com as cicatrizes marcando um rosto, um poeta busca luz ao beber o sol e as constelações, para assim delimitar suas pedras, suas veredas, suas margens e suas amplidões. É privilégio apenas de verdadeiros poetas estabelecer os contornos do infinito e do ínfimo pelo jogo e artifício das palavras com as quais lida.

Sem os alardes vazios de tantos poetas nacionais, apregoadores de falsas grandezas, um poeta buscou a eternidade nas palavras e, com elas, compôs um mundo manual, épico, abissal. Como se houvesse cumprido o rastro da sua luz, legou-nos seus espetáculos de aurora e crepúsculos: um mundo sensível, belo e generoso de poesia. Embora já ausente o principal protagonista, a singularidade do poeta carioca Sérgio Campos (1941 - 1994), leva-me a reverenciar sua poesia pela leitura reunida de seus dez anos de escrutínio de palavras.

Mar anterior (Mundo Manual Edições, 1994) foi a celebração e o registro apurado de sua poesia publicada. Selecionados e revistos, a obra reúne poemas desde A casa dos elementos (CE), 1984, passando por Bichos (B), 1985, Ciclo amatório (CA), 1986, Montanhecer (M), 1987, Nativa idade (NI), O lobo e o pastor (LP) e As iras do dia (ID), todos de 1990, Móbiles de sal (MS), 1991, A cúpula e o rumor (CR), 1992, até Leitura de cinzas (LC), 1993.

Mar anterior é uma obra poética em dinâmico refluxo, que possibilita reconhecer a variedade de estratagemas no possível sal marinho de suas entranhas. Exala uma maresia provocada, não pelo agito das ondas de um tempo infelizmente contemporâneo ao que resta de valor sob a superfície desse nosso caosmos de todo dia, mas surgido de uma complacência com os valores arcaicos da mitologia pulsante na inconsciência de nossos ciclos de sol e lua.

A um poeta que afirmou ter se fixado nas formas clássicas de poesia, também a ele foi exigida a absoluta modernidade de seu classicismo, sob a ameaça de não ser compreendido pelos seus pares, e, principalmente, pelas castas dos cartesianos e positivistas de tocaia. Mas isso não importa tanto, pois para quem fazer uma arte arcaica assustou mais aos outros poetas que ao poder, cabe-me estender os olhos às suas peças poéticas como quem vai assumir uma postura irremediavelmente solene, livre porém dos artifícios burocráticos.

A ausência desses efeitos de repartição pública é reflexo, talvez, das declarações do poeta em várias situações e ocasiões, ao enunciar que a sua estética era basicamente a da repetição. Não escreveu Campos poemas semelhantes, mas os reescreveu elevando a escritura à enésima potência. Quis cumprir a teoria da repetição ao recriar as próprias versões de sua simplicidade harmônica. A prova precisa se dá nesses versos do soneto Apenas o que dou não é perdido (LP): pois o que sei e fiz trouxe da ausência/e refazer é meu melhor invento (p. 51).

Em sua curta trajetória poética de 10 anos Sérgio Campos não foi apenas um transcriador dos mitos greco-latinos, mas um venturoso perseguidor da consciência, um viajante na idealidade imaginária que seguiu a trajetória da busca, como Odisseu, em seu "Tecido de abismos" (ID): sigo em busca de um ouro em que tudo se oculta (p. 36).

Mar anterior é uma peça solene. Reúne poemas que se reafirmam formalmente em sonetos,  odes ou formulações livres, enfeixados, contudo, dentro de uma perspectiva épica moderníssima, o que possibilita vislumbrar origens fragmentárias em suas extensões. A obra, com seus entes, espaços, vazios e suas plenitudes reunidos de forma sucinta, porém bastante impetuosa, sugere a intenção de Sérgio Campos em construir sua poesia como se construísse abismos horizontais. A profundidade não é vertical; a perpendicularidade dos limites é que revela a sua própria extensão...

Fazendo um paralelo com as construções poéticas greco-latinas,  premidas pelo tempo e pela ousadia, ou com as procriações barrocas, Mar anterior deixa-se revelar como um exemplar iceberg poético, onde as ruínas dos estilos aparentes ascendem do nível comum do mortais, deixando submersas as raízes de sua profusão, para mesclar-se com as exigidas fagulhas da poesia mais contemporânea. Ora, não são das ruínas, ou dos encantados ossos que se constrói uma urbe perdida ou um ancestral?

Os poemas mais curtos de Sérgio Campos,  na realidade pequenos tentáculos de um abismo mais extenso, são os que considero mais clássicos. Como constituem elos de um enunciado maior, (in)visível, sugerem a figura dos submersos icebergs. Veja o exemplo nessa "Encantação dos fios" (MS): — Ó Ariadne/o que não se escreve para a beleza/resta sempre inacabado (p. 31), ou em "Lumina" (CR): Entre o que sucede/e intermedia/está a velocidade da flexa/contra a corrente//entre o significado e Delfos/o âmbar da profecia//Mas de inocência e perigo/a manhã faz seus ninhos (p. 90).

Note-se que o caminho mitológico, nesses exemplos, são fragmentos de erudição diante da grandeza metafórica das nuanças do cotidiano, da incompletude eterna da beleza à possibilidade maniqueísta de como a manhã faz seus ninhos...

 

 

E o que mais é possível sentir é ausência de uma simplicidade clássica...  Mas  continuo...

 

 

do sótão ao porão

 

Como não poderia deixar de figurar entre os elementos essenciais de uma poética, Sérgio Campos também definiu e deixou florescer elementos simbólicos em sua obra. Exemplo mais evidente dá-se com as construções em torno da palavra ou do lugar-asilo, a casa. Com efeitos extremamente valiosos, Campos ativa sua motivação e atenção às notas de Gaston Bachelard, eminente fenomenólogo, em sua Poética do Espaço.

Nos poemas dedicados à casa, ruminações dos espaços íntimos, Campos imprimiu com precisão e sutileza a sua previdente solidão, por meio de um texto figurativo, sem ilusões. A exemplo de um eremita que devaneou com a audição de melodias provençais, o poeta revelou o segredo de suas imensidões marginais: acendeu a vela no porão e permitiu a luz do sótão... ou seja, revelou-se.

        Em "Ruínas Horizontais" (MS), o poeta refletiu: a casa/é seus arredores (p. 11); raptos de aromas/de crianças no quintal (p. 13); a casa/é seus crepúsculos (p. 14); a casa/é suas ruínas (p. 16); a casa/é seu corpo e viagem (p. 17).

Numa evidente busca do passado, o poeta reviveu a ancestralidade de seu espaço e foi consumido por sua gênese. Pois a casa foi/é ainda "alvenaria de acasos", "vômito das clarabóias", "espantalho de rendas no colo das tias", e tantas outras dimensões sintagmáticas, que convergem para uma única compreensão da vida: "toda ruína é humana".  A essência do cotidiano, que engole a memória e desatina a lembrança, é a própria fórmula da maravilha poética de Sérgio Campos.

As "Ilhas da Casa" (CR) projetam-se mais graves quanto às conclusões do poeta sobre seus arredores.  Preso à sua sombra, o poeta admite que memórias são sucessões/de espelhos aprisionados (p. 94) para, em seguida, declarar de viva voz o seu desejo de regresso ao hiato que o separa do passado. Tendo, ora as visões de todas as janelas e corredores, ora de seus espaços imaginários, o poeta quer  — Deixar as portas abertas/para paixões circulares (p. 97).

Com essas imagens e as visões das extremidades cíclicas do espaço, Campos reformulou as divagações de Gaston Bachelard, a respeito da poética e da solidão. Coube a ele revelar aquilo que o fenomenólogo sugeriu: "é fechado na sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões ou suas façanhas". A casa, em Campos, é releitura de seu devaneio; o quarto, a reflexão de sua intimidade. Mais uma vez citando Bachelard, "o quarto e a casa são diagramas de psicologia que guiam os escritores e os poetas na análise da intimidade". Sérgio Campos desvendou ou tentou reconstruir sua "alvenaria de acasos".

 

 

Não é desejo meu perpetuar os escombros dessa casa, as ruínas da humanidade, fazendo retornar à lembrança o poeta. Mas, simplesmente, fazer com que um possível leitor venha a saber que existiu um poeta brasileiro que ousou, silenciosamente, tragar espaços de um mundo imaginário, mágico, manual.

 

 

a redenção dos bichos e das frutas

 

Fundamento também singular na poética de Campos é o reprocesso dos valores mais tênues da natureza. Sem subterfúgios, o poeta se apropria do mundo vivo e sublima as facetas de seus bichos e vegetais escolhidos. Com a criação de uma fitozoologia poética particularíssima, Campos concentra páginas e páginas com suas invenções reais da natureza.

Interessante observar que a reprodução poética dos bichos ou dos vegetais estão sintonizadas com a metáfora definitiva. Ou seja, aquela metáfora que resiste ao tempo, ao mesmo tempo em que desfruta de uma esplêndida simplicidade. Observe essa constatação em "Caju" (NI): Pendurado/em suas vírgulas/ama a gramática/dos sabiás (p. 119).

É um caso feliz de composição da natureza a partir dos elementos objetivos da língua. Parece que é possível ouvir e entender a melodia dos sabiás, uma vez que a relação simbiótica entre caju e pássaro logo é decodificada pelo poeta para que o entendimento dê-se plenamente. Sugestionando pela mensagem, Campos, conscientemente ou não, ensina que a natureza não carece apenas de contemplação ou zelo ecológico. A metáfora sugere que a natureza é a própria encarnação do sentimento de cordialidade e respeito que deveria ser a tônica desta vida terrena.

Seguindo o mesmo caminho, aproxime-se deste "Peixe" (NI): O peixe/desenha/o rio//É a voz desse rio/rama em romaria//Um rio/sem peixe/é um rio/sem rio (p.116).

        A verdade da última estrofe é fundamental. A negação de um elemento da natureza, inerente ao seu ambiente, é a própria negação do todo. A parte nega o todo! Que melhor forma de exprimir uma figura com a simplicidade de um nado,ou um vôo, como em: "Passarinho" (NI)?: Para voar/não é preciso/ser leve//mas/fácil (p.112).

O traço poético de Sérgio Campos nesses esboços de natureza, nessas raízes emergentes, são aqueles que mais identificam a idéia possibilitada anteriormente, a partir dos volumes aparentes de "icebergs".  São com esses poemas  mínimos que a cosmopoética de Campos traça mais veementemente a trajetória de suas evoluções.

 

 

É a hora talvez precisa de recolher-me, para recordar entre silêncios. Imerso, quase que totalmente, como um iceberg. Assim... 

 

 

últimas reflexões

 

Definir a poesia de Sérgio Campos é uma tarefa inexeqüível. Assim como não se deve exigir de um poeta a sua própria definição, apesar de tentativas, também não convém enjaular um poeta, uma poesia. O poeta é livre até ao se deparar com a sua lógica.

Vale aqui repetir trecho de um depoimento de Baudelaire a respeito da origem e do propósito de recomendações críticas, nem sei mais de onde extraí essa voz que diz:

 

Sinto pena dos poetas guiados apenas pelo instinto; me parecem incompletos. Na vida espiritual dos poetas deve ocorrer um momento de crise, em que repensariam sua arte, descobririam as leis obscuras que os levaram a produzir arte, e chegariam, através desse estudo, a uma série de preceitos cujo grande propósito seria a infalibilidade na produção poética.

 

Pois parece que Campos seguiu essa sugestão. A sua crise foi longa, porquanto foi curta a sua vida. Em apenas 10 anos de poesia, e aqui afirmo que o tempo íntimo do poeta tornou-o consciente de sua arte madura, Campos conseguiu construir um coração para o espelho de suas idéias.   

É óbvio que para se inteirar das revelações poéticas do poeta, algumas vezes o leitor desavisado pode não perceber as evidências de suas estratégias, o que é plausível, no entanto, pois ali se instaurou a sombra mais íntima, o abismo mais próximo do poeta, onde são vedados os passos do estranho interlocutor em seu silêncio de busca. Nesses casos, penso que é melhor ser o culpado: o leitor que me desviei. Auden já proferira que "os interesses do escritor e do leitor jamais são os mesmos e se ocasionalmente chegam a coincidir, trata-se de mero acaso". Não posso generalizar.

No entanto, posso concluir que deve ser eternizado o bom poeta Sérgio Campos, mesmo diante de uma cena dos "Jogos Perigosos nº 2" (LC): O abismo celebra/ofícios de pedra (p. 132).

 

 

         ...retiro o poeta da memória enquanto viva para tentar eternizá-lo.

 

Jorge Pieiro é professor de Literatura, mestrando em Literatura Brasileira (UFC) e sócio-diretor da Letra & Música Comunicação Ltda. Mais aqui.