Em posfácio a uma antologia de Alberto Pimenta, A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek Editorial, 2004), escrevi que a inexistência era a estratégia poética e política desse autor. O caráter experimental de sua obra manifestava-se no desaparecimento do autor, dos gêneros, do verso, das próprias letras. Nesta passagem, mencionava um dos vários exemplos:
A multifacetada obra de Pimenta oferece diversos exemplos da estratégia da inexistência. Busquemos um caso intertextual: "as notas da carraça" (Bestiário Lusitano, 1980) é composto apenas das palavras que rimam das quinze primeiras estrofes do Canto I dos Lusíadas, e de notas ao curioso poema assim formado, que o referem como descrição da vida dos piratas... A inexistência de Camões nas próprias palavras camonianas fez com que a voz anticolonialista de Pimenta reverberasse na velha trombeta épica e colonialista. [p. 164-165]
Esse experimentalismo, pois, se conjugava a um engajamento político presente tanto em sua biografia (a sua recusa a apoiar a política colonialista de Portugal na África levou-o ao exílio na Alemanha1) quanto na sua poesia, que trata de temas como o fascismo, o imperialismo, prisioneiros de guerra, a União Européia, a tortura... Dessa forma:
Alberto Pimenta pertence a uma tradição contestatória; Pimenta cumpre o papel de contestador com uma estratégia da inexistência, que assume diversas facetas: desaparecimento do poético, do autor, do gênero, a repetição, o exílio.
[...]
Portanto, a estratégia da inexistência, com sua relação metonímica com o exílio, a denegação, o desaparecimento, a morte, a sombra, mostra-se apropriada para indicar o papel social do poeta no presente estágio do capitalismo contemporâneo e nas presentes modas acadêmicas. [p. 169]
A estratégia e o engajamento continuam. No fim de 2005, Pimenta publicou Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc), longo poema dividido em trinta e cinco partes (é possível, porém, lê-lo como um conjunto de trinta e cinco poemas), dedicado à invasão do Iraque pelos EUA. Em abril de 2006, foi a vez de Imitação de Ovídio (Lisboa: &etc). Trata-se de dois livros aparentemente muito diversos; porém, "ambos marcam-se pelo engajamento em (e contra) um tempo hostil"2.
A estratégia da inexistência assume em Marthiya outra forma: não é Alberto Pimenta, mas um poeta iraquiano que se dirige ao leitor. A estratégia é tão bem-sucedida que a própria dicção do poeta é outra, com um lirismo raro em sua obra:
São muitos
Os que tropeçaram já
Num sulco de terra.
Esses
Não tornarão a ver
O disco da aurora. [p. 13]
Se não me matarem
Nem
Me apanharem vivo,
Mantém-te alerta,
Mantém alerta
O desejo mais antigo
E o mais novo. [p. 50-51]
Esse lirismo, contudo, não é, de forma alguma, politicamente inofensivo, pois se conjuga à ironia, como nesta passagem que se refere à chegada dos invasores:
Vieram
A esta terra
Por amor
Dos que a habitam
(foram as suas
palavras da boca).
Esperavam que
Rejubilássemos
Com a sua presença,
E fôssemos
A palácio
Levar uma vénia
E carne fresca.
O amor
É um assassino
Dizia
al-Dschahis
Há mil
E duzentos anos,
(palavras do coração,
estas). [p. 37]
Esse lirismo não se nega a descrever os detalhes mais rudes; sobre os invasores, diz:
Lançando sobre o vento quente
Outro vento incandescente,
Fazendo sombras que
Encobriram as árvores
Que começavam agora a ser
Adubadas a ossos
Com carne
Ainda pegada,
Carne antiga,
Babilônia descarnada. [p. 9-10]
Dentro da água,
Rabos mal metidos
Em pneus de camião,
Atiram uns aos outros
Sandálias recheadas:
Dentro delas
Ficou
A sombra da carne
Que as calçou,
Ou será só efeito da luz?
Ao lado do mural,
Os nomes
Das suas principais
Operações:
"Violação colectiva
do bulldog",
Por exemplo. [p. 35-36]
A inexistência do poeta português (que, paradoxalmente, marca a sua presença) neste livro iraquiano de Pimenta é que torna tão convincente sua postura antiocidental: "Não é nenhum apaixonante/ Drama histórico,/ É parte da história do roubo/ Que sustenta o Ocidente." [p. 25]. A assunção do tom lírico da poesia árabe dos divãs faz com que Marthiya seja antiimperialista não apenas no conteúdo, mas na sua própria forma. Não por acaso, ele foi boicotado por livrarias de Portugal (país que não enviou soldados, mas que teve até mesmo poetas, como Vasco Graça Moura, que apoiaram abertamente a invasão do Iraque) depois de ter sido lançado na Mesquita de Lisboa...
Se a marca da história é a catástrofe, o que Pimenta descreve é um despertar para o tempo histórico: "Quando as primeiras/ Bombas caíram/ Bagdad ainda dormia" (p. 8). O passado é evocado de forma idílica: "Há mil anos/ Nas bibliotecas de Bagdad/ Havia mais livros/ Que num milhar/ De conventos dos cristãos." [p. 24].
Se me vires
Um sorriso
E um cesto de pão
Nas mãos,
Não é um mistério:
Sabes
Que estou a contemplar
O passado.
O passado
É hoje
A visão do paraíso. [p. 19]
Qual será o resultado do conflito? Não se sabe; o livro termina com a impossibilidade de ver esse futuro:
Não sei
Se tornarei
A fazer a viagem nocturna
No comboio de Bagdad:
Alepo, Nínive,
Tikrit... [...]
Já ouvi dentro de mim
Um trovão
Fender-me a alma.
Para a unir de novo
Não sei o que terei de enfrentar. [p. 54]
A atitude do elocutor — voltar-se para o passado (para Babilônia, para a velha Bagdá), que o divide entre o que foi e o que não mais é, movido pela catástrofe, não deixa de invocar a noção de história encarnada no Anjo da nona das Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin: ele vê "uma catástrofe sem modulação nem trégua, amontoando os escombros e os projetando eternamente diante dos seus pés"3. O Anjo está de costas para a sociedade futura (não sabe como ela será, portanto), mas a "tempestade", a que damos o nome de "progresso", continua a o impelir para frente.
O livro, certamente, contesta o progresso ocidental ("Também criaram máquinas/ Para devorar o tempo" [p. 46], diz dos invasores). Essa contestação e o voltar-se ao passado diante da catástrofe parecem-me corresponder a móbil também do livro seguinte, Imitação de Ovídio.
Pimenta volta-se ao poeta romano não para o citar ou falar das desventuras da Antigüidade. Ele evoca, como faz o autor antigo, o contraste entre um passado melhor e um presente de infortúnio; já se o vê na epígrafe, da oitava elegia do livro IV de Tristia de Ovídio4. A hostilidade do tempo atual reflete-se desde a capa, baseada em colagem do autor. Nela, se vêem dois corpos que naufragam entre rasuras e restos de texto de lingüística – a rasura chega a obscurecer o logotipo da editora.
Os tempos atuais naufragam, presos a "idéias que/ ao nascer/ já não são nascentes/ e / vão todas em direção ao poente" [p. 9]; "o homem/ não é o senhor da verdade/ e a religião/ está de volta" [p. 46]. Os homens estão perdidos "carregando/ males/ e mails" [p. 22], enquanto a pobreza aumenta:
por exemplo e
a propósito,
há mais
miséria
que há vinte anos
e então
já havia
este dito:
há
mais miséria
que
há vinte anos. [p. 44-45]
O aumento da pobreza alia-se ao uso instrumental dos direitos humanos, que são distorcidos para favorecer a dominação, numa estratégia da decepção (segundo Paul Virilio5), ou como cavalo de Tróia (de acordo com Norbert Rouland6). Trata-se de tema comum aos dois livros, e que já havia aparecido na obra de Pimenta. Esse uso instrumental pode revelar-se na invocação da liberdade que, todavia, serve apenas como pretexto para uma política imperialista. Em Marthiya, lê-se sobre a política pretensamente libertadora dos invasores do Iraque (que teriam entrado no país para libertá-lo da ditadura):
Pois tencionam
Encaminhar-nos depois
Para outro campo
Que estão a tentar
Estabelecer:
Cercado a toda a volta
Das suas liberdades. [p. 42]
Na Imitação, pode-se ler sobre as políticas de inclusão social:
mas
não nos olhem assim
como
se nos fossem excluir
ou incluir
(penso que é o mesmo) [p. 12]
Nos dois casos, temos o desrespeito à autonomia, problema que é abordado também em textos teóricos do autor7. Mas, neste outro livro, o problema é visto sob uma ótica principalmente individual, e não a de um povo (que é o que ocorre em Marthiya). Há um tempo coletivo, de decadência, mas também um tempo individual, da madureza, que recusa, porém, diante da passagem dos anos, os consolos familiares da paternidade. Assim o elocutor diz à amada:
não nos quero reproduzir, já sabes,
não quero contribuir com
a perda antecipada
do corpo
que se parte,
e a eternidade não está
aí. [p. 36]
Fala-se a ela, não como garantia da posteridade, mas como suspensão da passagem: o amor "não é uma forma/ de duração,/ é uma forma/ de a suspender.// de a ter/ presa de nós." [p. 26].
O poema manifesta-se como um longo discurso à amada, dividido em quatro partes (I, II, III e a sua soma, VI), que busca outras idéias (em divertido trecho, compara a antropologia, a filosofia e a sociologia com a "polícia judiciária" [p. 57]), contra a decadência desse mundo que começa a apodrecer:
[...] as nossas ideias
não chegam
aonde
não querem chegar
para aí pôr uma pedra
elas espatifam-se
contra os ossos do crânio
e trazem à boca
sangue tirado ao coração:
não é assim, amor? [p. 12]
Como as "palavras/ são dispositivos/ apenas sanitários" [p. 52], o elocutor busca escrever com os corpos: "os lanhos, todos eles,/ abrem-se/ com a língua" [p. 34]. A amada, que não é uma das damas que "vão/ aos cabeleireiros/ a todos/ e nada [...] vão/ às farmácias/ a todas/ e nada" [p. 39], escreve com ele:
nós
com a boca
saboreamos
lanhos
que a nossa boca
abriu
e que nunca mais
cicatrizarão.
quando toco a corda dos teus cabelos
e tu dizes:
mais abaixo!
sim, eu sei. [p. 29]
Trata-se do "fim/ do alfabeto,/ desta infâmia,/ deste crime letrado:" [p. 60]. Contudo, Pimenta não se ilude com as políticas do corpo, cujo potencial emancipatório parece ter-se esgotado nas décadas de 1960 e 1970. O elocutor dirige-se à amada, com a ponta do dedo rodeia-lhe "a esfera" de saliva [p. 62], mas não sabe o que, a quem, e se ainda poderia dizer. O livro termina com a interrogação: "e tu?/ tu sabes?" [p. 63].
O poeta Manuel de Freitas, em texto publicado no jornal português Expresso (Esplendor & Miséria: Entre a ironia e a corrosão, um longo poema de Alberto Pimenta. 15 jul. 2006), destaca a "exemplar mestria prosódica que, não abdicando da ironia e da elipse, concede a este poema um ritmo e um grau de persuasão a que só a melhor poesia acede". Só posso concordar, e devo aduzir que esse discurso poético, pela acumulação de silêncios, de respostas que não são dadas, caminha em direção ao silêncio e ao nada (as palavras calam, os corpos se ausentam), à inexistência.
Esse inexorável caminho faz com que o desencanto marque o livro (outro paralelo com Ovídio, além do amor e do exílio):
poesia
propriamente dita
não há meio de acontecer,
é como matar um pássaro
ontem
com uma pedra
atirada hoje [p. 59]
Mas a inquietação permanece. É preciso responder à pergunta:
e poderemos ainda
colaborar
para que a morte
não seja
a melhor forma de libertação? [p. 61]
agosto, 2006
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Alberto Pimenta. Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc, 2005);
Alberto Pimenta. Imitação de Ovídio (Lisboa: &etc, 2006).
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Pádua Fernandes. Nascido no Rio de Janeiro em 1971, vive em São Paulo, onde é professor universitário. Foi colaborador da extinta revista portuguesa de cultura Ciberkiosk e integra o conselho editorial das revistas Jandira (Juiz de Fora) e Cacto (São Paulo). É autor de O Palco e o Mundo, poesia (Lisboa, Edições Culturais do Subterrâneo, 2002). Organizou e escreveu o posfácio da antologia de Alberto Pimenta, A Encomenda do Silêncio (São Paulo, Odradek Editorial, 2004).
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