DESMUNDO
Nem todo olhar
é desejo
e o desejo, nem todo, apetite.
olhos se enganam,
entranhas...
A angústia da
prisão do tempo.
Da falta do tempo
Da alienação do desejo
Que
custa muito, caro, tempo;
Desejo
Não–tudo;
Tudo, não.
RÉQUIEM
Tu me
olhas
(Quando olhas)
Com olhos de ranço e amanhã
Constatando o
tédio
E a posse
O bolor com
que me cobre esse olhar
Me causa angústia e ânsias de
tragédia.
Calo — Clarice — e escrevo.
Recrias-me à
tua imagem
— que odeio.
As estranhas
se rebelam, em luta autônoma.
Só as palavras, no rabisco
monótono
Têm o sabor da mágoa
Minha, alheia.
VOCÊ ME DEIXOU PARTIR
Você me deixou partir, amado meu
Como quem devolveu um bidê.
Ah!, obsoleto,
anacrônico artefato
Entregue em casa errada;
Que fazer?!?
E assim, bidê
devoluto,
resto eu, muito amado.
Na obsolescência do anacrônico,
Bidê obtuso e perdido,
Pobre elemento;
Pouco
decorativo
Em tua fulgurante existência,
Solto, desempregado,
No entrelugar:
Ante teu
banheiro prolixo
E o museu de nossa história.
NO ESPELHO
Constatei hoje —
não sem um certo prazer — que
Como todos os "a-normais", sou
diferente,
Incômoda,
indispensável.
MIRABILIA
Meu ouro
Despetalado ao alhures,
Eternamente
mercado
em miçangas
E o momento, sublime momento,
Que sempre me
foge...
TEMPO DE COLHEITA
Ao Reinaldo Marques
Et fructum fecit centuplum
Saiu a campo o pesquisador
em tempo
para a
colheita.
Onde buscava campo, achou asfalto
E, chamando pela
memória
ouviu televisão.
Entrou no templo
onde não buscava.
Não vendo
padre,
Recebeu-o a pobreza una,
Em meio a campo seco e fé.
Perdeu-se o colhedor,
em reza e canto,
findou
a pilha e o registro morto
e, de repente
"não é que choveu?"
Achou a memória.
VOCÊ NUNCA VAI VER OS BURACOS
DAS RUAS DE NOVA YORK
Ao Álvaro
existem redes de solidariedade
que não se
desfazem
entre pessoas que passaram, juntas, sede raiva amor
miséria alegria injustiça ódio tempo muito tempo: juntas — amor e dor,
alegria e luto, que pensaram e sentiram juntas.
Mesmo que não se vejam mais.
Ainda que não pensem
como antes.
Se me chamam, não questiono.
Estou.
REBABEL
Dizíamos sempre o mesmo
Em todas as
línguas
Monótonos repetitivos
Globalizados Ignaros
solitários
ELEGIA
E no entanto, ouvi
Não há dor pior
Que a dor
indecisa
de ser completamente
dor