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O ponto de partida desta reflexão era, as mais das vezes, um sentimento de impaciência frente ao "natural" com que a imprensa, a arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade que, pelo fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso perfeitamente histórica; resumindo, sofria por ver a todo momento confundidas, nos relatos da nossa atualidade, Natureza e História, e queria recuperar na exposição decorativa do-que-é-óbvio, o abuso ideológico que, na minha opinião, nele se dissimula. Roland Barthes

 

INTRODUÇÃO

 

        Os Estudos Culturais, atualíssimo modus operandi1 das ciências humanas, vem de se propor/tornar, por autoproclamação e relativo consenso, como a nova e única proposta possível de produção de conhecimento sobre o humano, na atualidade, e isto se baseando em duas justificativas fundantes e essenciais dentro da constituição mesma dos Estudos Culturais: a primeira delas reside na crise dos paradigmas por que passam as disciplinas históricas das humanidades que, segundo os teóricos do culturalismo, se encontrariam ineficazes por que anacrônicas; a segunda, necessária derivação da primeira, propõe os Estudos Culturais como provável resposta eficaz na compreensão daquilo que os mesmos pretendem ver como uma novíssima ordem da realidade e do conhecimento, e que, por seu estatuto absolutamente contemporâneo, exigiria também uma ultracontemporaneidade científica que se demonstraria impossível a partir das disciplinas históricas.

        Em analisando-se uma tal perspectiva, pode-se perceber, claramente, uma importante inversão, desusada, até então, na constituição dos saberes poitivos: o saber que surge atrelado ao objeto de estudo: em exata inversão daquela que seria a prática comum da ciência positiva, um "saber" surge, atrelando a si a materialidade de seu objeto de estudo; paralelamente, a negação peremptória de toda validade possível aos saberes anteriores, uma vez que se pretenda uma práxis hegemônica e aglutinante de todo o conhecimento e de toda teoria das humanidades.

        Paralelamente à desinstitucionalização de outros saberes, perceba-se que a constitução dos Estudos Culturais ignora, não só as fronteiras das outras disciplinas como também as próprias. A dubiedade de descrições escancaradas e "escanchadas" de sua própria constituição, ora metafóricas, ora reticentes, levam a uma justificativa hiperbólica de sua positividade e de suas propostas que não se justificam pelo caráter metonímico de sua conceituação e constituição, uma vez que se restringem a um presentismo que julgamos restritivo demais para um saber humano. Em uma análise comparativa de suas várias propostas parece-nos dar a perceber, sem dúvida, que o discurso dos Estudos Culturais parte de sua própria constituição para justificar sua existência.

        Ora, se nos remetemos a Foucault, autor considerado fundante para os mesmos Estudos Culturais,  teremos um nome para uma tal prática (Foucault: 1971, 16)

 

Certes, si on se place au niveau d'une proposition, à l'interieur d'un discours, le partage entre le vrai et le faux n'est ni arbitraire, ni modifiable, ni instutionnel, ni violent. Mais si on se place à une autre échelle, si on pose la question de savoir quelle a été, quelle est constamment, à travers nos discours, cette volonté de verité qui a traversé tant de siècles de notre histoire, ou quel est, dans as forme très générale, le type de partage qui régit notre volonté de savoir, alors c'est peut-être quelque chose comme un système d'exclusion (système historique, modifiable, institutionellment contraignant) qu'on voit dessiner.2

 

Assim, contraditoriamente, enquanto se nomeiam foucaulteanos, os Estudos Culturais parecem cegos a uma das categorias fundamentais para aquele autor, qual seja: a institucionalização do discurso como poder. E tal institucionalização, que parece ambígua, uma vez que os Estudos Culturais teimam em se demostrar como minoritários numa perspectiva interessantemente valorativa e hegemônica para um discurso que se quer subalterno, o que demonstra, na prática, aquilo que se nega em tese, ou seja, seu obrigatório diálogo com a instituição que lhe delega o poder, como nos esclarece  Foucault (1971, 09)

 

  ... Et l'institution répond: "Tu n'a pas à craindre de commencer; nous sommes tous lá pour te montrer que le discours est dans l'ordre des lois; qu'on veille depuis longtemps sur son apparition; qu'une place lui a été faite, qui l'honore mais le désarme; et que, s'il lui arrive d'avoir quelque pouvoir, c'est bien de nous, et de nous seulement, qu'il le tient".3

 

Portanto, baseando-nos nas assertivas foucaltianas, como também em Roland Barthes pretendemos, neste artigo, refletir sobre o caráter mítico (na perspectiva Barthesiana) de construção de um saber tão perigosamente ingênuo a respeito de seu estatuto discursivo, em se analisando suas propostas e conceitos.

 

1 OS ESTUDOS CULTURAIS: A METAFÓRICA CONCEITUAÇÃO DE UM DESEJO

        Se considerarmos o texto de Simon During, Introduction, de longe o mais objetivo de todos os culturalistas a respeito do que seja esta prática discursiva, teremos a curiosa surpresa de uma variedade  enorme de definições sobre os mesmos Estudos Culturais, em apenas 28 páginas! Parece-nos estranhíssimo que o caráter continuum de construção dos Estudos Culturais chegue a um tal estágio de perfeição, mas tal é o que se encontra no referido texto.

        Pretendemos, portanto, analisar neste tópico, três proposições  por nós escolhidas como bastante representativas, e a possível significação da variação mutatis mutandis da consciência itinerante de uma teoria metamórfica.

 

        Definição 1: (During: 1999, 01)

 

... cultural studies ... possesses neither a well defined-defined methodology nor clearly demarcated fields of investigation. Cultural studies is, of course, the study of culture, or more particularly, the study of contemporary culture. ... Even assuming that we know precisely what "contemporary culture" is, it can be analyzed in many ways ... The question remains: does cultural studies bring its own orientation to these established forms of analysis?4 (itálico do autor)        

 

        Portanto, cá estamos, já de início, frente à indefinição: During nos remete à fludiez intrínseca da constituição dos Estudos Culturais, quando nos declara a inexistência de um campo definido ou de uma metodologia. Portanto, não temos um discurso, e assim, ainda a partir de Foucault, nenhum poder. Capciosamente, os rastros do discurso se apagam após tais assertivas. Mas, duas características nos são apontadas, logo a seguir, e o destaque sutil não nos deve enganar: surge daí um início de delimitação que se demosntrará, mais tarde, no texto de During, restritivo e coibidor e, portanto, sinalizador de uma perspectiva autocentrada e, portanto, definidora do interdito (novamente Foucault): lugar do poder.

        Por hora, dediquemo-nos a percebê-las.

       Em primeiro lugar, há que destacar a contemporaneidade como característica da formação dos Estudos Culturais, coetânea de seu objeto. Pressupondo que os eventos a serem abordados por si, tenham seu surgimento no momento coetâneo de sua eclosão, os Estudos Culturais se encontrariam, logicamente, em lugar privilegiado de observação e análise. Daí, nada mais natural que a conclusão a respeito do anacronismo de outras abordagens — a partir de uma tal perspectiva privilegiada, todas as outras — e, portanto, de sua inficácia.

        A partir desse local/momento, que em momento nenhum fica claro em During ou em qualquer outro dos culturalistas, tem-se a necessária justificativa e demonstração de um discurso/poder como nos destaca Foucault (1971,  10-12)

 

...dans toute société la production du discours est à la fois contrôlée, sélectionée, organisée et redistribuée par un certain nombre de procédures qui ont pour rôle d’en conjurer les pouvoirs et les dangers, d’en maîtriser l'événement aléatoire, d'en esquiver la lourde, la redoutable matérialité.

... on connaît, bien sûr, les procédures d'exclusion. La plus évidente, la plus familière aussi, c'est l'interdit. ... les régions où la grille est la plus resserrée, oú les cases noires se multiplient, ce sont les régions de la sexualité et celles de la politique; ... puisque le discours —, ce n'est  simplement ce qui manifeste (ou cache) le désir; c'est aussi ce qui est l'objet du désir; ... le discours n'est pas simplement ce qui traduit les luttes ou les systèmes de domination, mais ce par quoi on lutte, le pouvoir dont on cherche à s'emparer.5

 

        Foucault, nesse trecho, nos atenta para uma característica intrínseca ao discurso, a qual, rasurada pela posição estudadamente indefinida dos Estudos Culturais, aparecerão de forma clara ao longo do texto de During: o desejo de poder.

        Não nos adiantaremos em relação a isso, mas uma tal característica já se adivinha quando During questiona no último perído da sua definição: o que difere os Estudos Culturais das outras ciências, qual a sua especificidade e demonstração de eficácia perante e sobre as outras disciplinas?     

        Este tema será melhor desenvolvido nas outras definições.

 

2 — A VERDADE METAFÓRICA DE UMA CONCEITUAÇÃO DE PODER

      

      Definição 2: (During: 1999,17)

 

As a transnational academic discipline, cultural studies itself does not represent such na interest. And, in fact, policy advice does not uncover truths wich can be immediately used and applied. On the contrary, outside the academy it tends to become a pawn in wider political engagements between such interests.

So, cultural studies is a discipline continuously shifting its interests and methods both because it is in constant and engaged interaction with its larger historical context and because it cannot be complacent about its authority. After all, it has taken the force of arguments against "meta-discourses" and does not want the voice of the academic theorist to drowm out other less often heard voices.6

 

        Neste  trecho, particularmente profundo, During nos desvela a verdadeira função dos Estudos Culturais: o poder. Esta característica, que já se encontrava subjacente na primeira definição, neste trecho se demonstra em toda a sua magnitude: o poder sobre as academias em todo o mundo, sobre as disciplina como um todo — que, aliás, devem ser englobadas por esta única — e o poder também social, uma vez que tal discurso deve ser levado por seus profetas a todos os cantos para servir de voz àqueles que não a possuem e verdade aos incrédulos.

        Tais características ficam claras quando os Estudos Culturais se outorgam uma transnacionalidade, que ao invés de ser consensual, é imposta como imperativo — uma vez que os Estudos Culturais "nascem como um discurso transnacional". Ora, a autocracia de se arrogar o dever de ser a voz universal é por demais autoritária para ser relevada. E por sinal, não é nova7. A história nos deixou exemplos bastante contundentes dos resultados destas iniciativas magnânimas, para que ignoremos a perversidade de um discurso que outorga o dever de salvação universal.     

        Outra característica bastante interessante é a incapacidade de diálogo. Por possuir a única verdade possível, os Estudos Culturais desconhecem a autoridade da academia quanto à possibilidade de representação dos "subalternos". Estes, que mais tarde veremos,  também estão submissos ao poder redentor da verdade culturalista, são prpriedade do único discurso verdadeiro, transnacional e transsocial, aquele que é proferido em seu nome pelos Estudos Culturais.

        Quanto a essa possível verdade, novamente Foucault se torna revelador (Foucault: 1985, 336  

 

... há uma divisão mais obscura e fundamental: é a da própria verdade; deve existir, com efeito, uma verdade que é da ordem do objeto — aquela que pouco a pouco se esboça, se forma, se equilibra e se manifesta através do corpo e dos rudimentos da percepção, aquela igualmente que se desenha à medida que as ilusões se dissipam e que a história se instaura num estatuto desalienado; mas deve existir também uma verdade que é da ordem do discurso — uma verdade que permite sustentar sobre a natureza ou a história do conhecimento uma linguagem que seja verdadeira. É o estatuto desse discurso verdadeiro que permanece ambíguo. Das duas uma: ou esse discurso verdadeiro encontra seu fundamento e seu modelo nessa verdade empírica cuja gênese ele retraça na natureza e na história, e ter-se-á uma análise de tipo positivista (a verdade do objeto prescreve a verdade do discurso que descreve a sua formação); ou o discurso verdadeiro se antecipa a essa verdade de que define a natureza e a história, esboça-a de antemão e a fomenta de longe, e, então, ter-se-á um discurso de tipo escatológico (a verdade do discurso filosófico constitui a verdade em formação. A bem dizer, trata-se aí menos de uma alternativa que da oscilacão inerente a toda análise que faz valer o empírico ao nível do transcendental. ... a escatologia (como verdade objetiva por vir do discurso sobre o homem) e o positivismo (como verdade do discurso definida a partir daquela do objeto) são arqueológicamente indissociáveis: um discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico e crítico só pode ser a um tempo, positivista e escatológico; o homem aí aparece como uma verdade ao mesmo tempo reduzida e prometida. A ingenuidade pré-crítica nele reina sem restrições.

 

        Portanto, em se considerando as assertivas acima, temos um discurso teleológico que se cria a partir do objeto e de uma promessa, e ainda em termos foucaultianos, a partir de um lugar de poder em que se estabelece em restrição a outros discursos, pois a conceituação de um saber positivo parte de uma definição de si em relação a outrem.

        E, tão grande quanto o espaço que ocupa este discurso de poder é o local do outro, que abrange todas as nacionalidades, todas as disciplinas humanas e todos os subalternos (termo que pode ser expandido, nesse sentido, até mesmo aos outros saberes humanos).

        Um tal poder revela uma teleologia megalomaníaca e ingênua que, contraditoriamente ao contemporaneismo alardeado pelos Estudos Culturais, nos remete a uma ultramodernidade, ou a uma Modernidade ingênua, imperdoável em nosso tempo.

        Esta ingenuidade moderna da visão criadora que vê em si a propriedade absolutamente inovadora de conceitos e práticas discursivas ficará mais explícita no trecho que veremos a seguir.

 

3 — A CRIAÇÃO METAFÓRICA COMO PODER E VERDADE 

      

      Definição 3: (During, 1999, 26)

 

Yet importantly, engaged cultural studies also examines its own constitutive borders and divisions — or, more simply, the relation between what it includes and what it excludes. It examines its temporal border: the separation of past from present (asking, what the role history is in contemporary  cultural studies). It examines the power barriers it assumes and contests: the division between hegemonic ("above") and counter-hegemonic ("bellow")  — or, to swap terms, the borders between margins and centers. And it examines structural divisions: the boundaries between "culture" on the one hand, and "society" or the "economy" on the other (asking, for instance, to what degree is culture shaped by economic structures — ...). We might add to these problems concerning boundaries, though it's been much less discussed, that cultural studies also addresses the basic distinction between the political (or the engaged) and the non-political (or the disengaged) where it touches culture — ... 8

 

        Neste trecho, temos a finalização de um processo teórico-político nos moldes em que Foucalt define acima, como discurso de poder: a definição de fronteiras que, longe de ser fruto de um diálogo democrático entre disciplinas, parte de uma posição autocrática dos Estudos Culturais, que se arrogam o direito de apropriação sobre as categorias alheias num processo, não de empréstimo, mas de expropriação. Explique-se: expropriação pela propriedade alheia que se usurpa como sua, justificando-se pelo mau uso da mesma, por parte do proprietário.

        Isso realmente é fato, quando, baseando-se na suposta apolitização das teorias adjacentes, os Estudos Culturais declaram-nas território franqueado à usurpação de sua parte que, ao re-possuí-los, também os re-criará de forma aleatória, uma vez que, claro está que as condições específicas de criação dos conceitos não  lhe interessam, dada sua posição de desvalorização  dos históricos, econômicos e sociais do momento de surgimento de tais conceitos.

        O presentismo teleológico e ultramoderno, que prescinde do passado como componente do presente, vive, na verdade, num futurismo imediatista, em que sua ação se constrói e remodela a partir da desmemória.

        Lembremos aqui o Borges de Funes o memorioso e também autor de um texto que explica o caráter crítico do personagem Funes: O tempo  (Borges, 1985, 45)

 

O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; não teria valor. O presente tem sempre uma partícula de passado, uma partícula de futuro. ...

Somos, portanto, algo cambiante e algo permanente. Somos algo essencialmente misterioso. Que seria de cada um de nós sem a memória? É uma memória em grande parte feita de ruído, mas que é essencial.       

 

        Estranha nos parece essa negação da historicidade dos eventos e dos conceitos. Como se o peso de uma materialidade humana pudesse ser apagado por um novo tempo que se inaugura. Paralelamente a essa materialidade do tempo que podemos sentir, como nos lembra Borges, pela memória, atrela-se a materialidade do espaço, que também se anula, através do discurso culturalista.

        Tais assertivas nos remetem a Barthes em seu Mitologias (Barthes, 1993, 136) quando ele nos descreve o mito (moderno). Barthes nos esclarece, que para o discurso mítico, os signos tornam-se novamente significantes, sendo ressignificados a partir do discurso que o reinscreve e, obviamente, tal prática tem um significado político.

        Queremos crer, portanto, que a reapropriação política e ideológica vorazmente consumista perpetrada pelos culturalistas em torno dos discursos das disciplinas, e das minorias, tenha um claro significado político — que a toda hora é ressaltado pelos mesmos — mas que o grau de apropriação em que isto ocorre leva a uma perversidade de leitura que se aproxima daquilo que Barthes chama de mítico.

        Assim, o discurso e teoria culturalistas apresentariam, em nossa perspectiva, um cunho fortemente ideológico que recria e recentra verdades que se propõem neo-hegemônicas, mesmo quando insistem no contrário e, de modo voluntário, ou não, sériamente comprometidas com práticas do novo poder transnacional que teimam a todo momento esvanecer.

        Passaremos agora a uma análise de algumas das categorias culturalistas, apropriadas ou de própria lavra, em que pretendemos ver e poder demonstrar, e como essa relação se explicita.

 

 

4 — A PARTE PELO TODO: UMA VISÃO AUTOCENTRADA DA GLOBALIZAÇÃO

 

        Se considerarmos o discurso culturalista a-histórico sobre a globalização, veremos algo bastante semelhante ao que abaixo se encontra citado (Marx: 1978, 577-8)

De um lado tiveram acesso à vida forças industriais e científicas de que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material.

 

        Marx nos aparece neste trecho como a voz de uma previsão daquilo que os Estudos Culturais hoje chamam de efeito nefasto, ora do Estado neo-liberal, ora da globalização, e até mesmo da Indústria de Consumo.

        Portanto, aquilo que estamos vivendo é histórico e teve seus primórdios, na verdade, ainda na Modernidade. Porque então essa insistência culturalista em negar a história, que só nos aparece dessa maneira, como uma vontade de poder sobre a criação?

        Paralelamente a este aspecto, destaque-se também a ambiguidade culturalista em relação ao termo "globalização". Porque não mundialização? A mundialização traria implícita em nossa opinião, uma variedade de nações que se comportam dentro do mapa-múndi. É um termo que insere, dentro da categorização mundial, a materialidade de uma entidade supranacional que torna ineficazes todas as fronteiras de forma autoritária, borrando as fronteiras políticas, econômicas e sociais.

        Globalização, que nunca pronunciamos sem um certo sotaque de estrangeirismo, no entanto, apaga, intencionalmente, qualquer perspectiva de nacional, uma vez que o globo contém todo o planeta numa unidade geográfica a-política e, portanto, pretensamente igualitária.

        Nesse momento, por extensão somos imediatamente levados à pretensa transnacionalidade do culturalismo. Essa definição carrega consigo a perversidade do apagamento do termo regional, que se superpõe pelo ambíguo "local", outro termo estrangeiro. Local, como global, é uma instância multiforme que, por nova, e sem significação local, nos transporta a uma geografia mítica que não apresenta,  tanto como global, uma geografia definida.

        Assim, após termos sido expropriados do tempo, por Fukuyama (que, por sinal já se retratou) agora fomos deslocados de nosso estar no mundo. Estamos flutuando, portanto, no espaço sideral, sem tempo, nem espaço, nem identidade, ou qualquer tipo de referência. 

        A partir de então somos náufragos, como Robinson Crusoé, mas, sem a sorte dele, porque não podemos recriar, como Robinson, uma identidade que já não possuímos, se não temos mais direito à memória histórica ou geográfica. Aparentemente, neste caso, somos um outro náufrago, Sexta-feira.

        A citação desta obra não pode ser fortuita. Se tomarmos a literatura como representação — permitam-nos, os mais puristas, todas as licenças — perceberemos, que, após o naufrágio da Modernidade, todos são náufragos e, neste ponto cessam as semelhanças.

        Porque alguém chegou primeiro, e este alguém se encontra, queira ou não, imbuído das melhores de todas as intenções salvadoras. Robinson Crusoé apaga a identidade de Sexta-feira — já desde o novo nome — na melhor das intenções "sanitarizadoras": é preciso salvá-lo da ignorância, do paganismo e da preguiça.

        Robinson Crusoé re-constrói um mundo naquele não-lugar, a partir da sua memória. É um imperativo, uma vez que atribuimos às coisas, quaisquer, o significado que delas conhecemos. E o novo mundo projetado por Crusoé e concretizado por Sexta-feira, tem os ares da Inglaterra que Crusoé conhecia. Não a mesma, onde ele era um cidadão, mas aquela de seu desejo, em que ele é rei.

        Necessariamente, há que haver um lugar para Sexta-feira: o de súdito. Aquele que se encontra apropriado pela memória e o discurso autocentrado do outro, há que encontrar um lugar de subalternidade. A partir daí, Crusoé passará a construir para Sexta-feira uma nova identidade, que muda sua memória, religião, economia e sociedade, além, claro, da língua.

        Ora, não podemos deixar de considerar a geografização estabelecida por Hall (1996, 273) em seu texto Cultural Studies and its theoretical legacies: a Universidade de Birningham, na Inglaterra, e toda a América do Norte.

        During estenderá um pouco mais: Austrália, Nova Zelândia, e universidades anglófonas. Ou seja, os Estudos Culturais têm uma língua e um lugar definido que não deixa de ser centrado: aqueles países que herdaram da Inglaterra não só a língua, mas o ideal imperialista (lembremo-nos da doutrina Monroe de 1823: A América para os americanos!), de salvar o mundo recriando-o a partir de sua própria cultura.

        Para que se esclareçam as semelhanças entre a experência de Robinson Crusoé e aquelas ocorridas nestes países, será apenas necessário rememorar o papel do índio como subalterno nesses países e os efeitos "democráticos" sentidos até hoje por suas minorias. Tais aspectos são definitivamente herdados da Inglaterra, a saber, o racismo, o patriarcalismo, a xenofobia, além daquele ideal de poder que pertence hoje a uma unidade supranacional que, porém, tem seu escritório de negócios nos Estados Unidos, coincidentemente, o mesmo país ondde os Estudos Culturais encontraram sua incubadeira transnacional.

        Resta ainda uma última metonímia: a universalização do subalterno.

 

 

5 - A EXCANÇÃO DOS PRECONCEITOS: O SUBALTERNO GLOBALIZADO

     

        A reboque do mito de uma cultura global são universalizadas também outoridades específicas. Em primeiro lugar, quero pôr em questão esta re-criação atemporalista de subalternidade: o termo gramsciano — que reconhecemos não conhecer aprofundadamente — nos parece fortemente atrelado a um significado mais político que necessariamente étnico, ou de gênero.

        O subalterno, na concepção gramsciana, portanto, representa um igual, em termos sociais, que, porém, é expropriado — de forma quase voluntária — de seu poder político, uma vez que através das práticas hegemônicas do populismo (termo que não percebi entre os culturalistas) sente-se representado pelo discuros do poder. Isso nós conhecemos bem, no Brasil, graças a Getúlio. E esta relação de populismo e subalternidade, traz incutida em si uma noção bastante forte e contrária aos ideais marxistas de Gramsci, mas que calavam tanto os subalternos quanto os senhores do poder populista: o conceito de Nacionalidade.

        Assim, a partir de uma crença comum, a da Nação, tais subalternos se submetiam a um poder que, mesmo de forma espúria, representava seus interesses contra uma situação de perigo externo: a ameça da opressão estrangeira.

        Curiosamente, tais noções de nacionalismo, identidade, e etc., desaparecem na subalternidade — bastante específica, em Gramsci — dos culturalistas. Numa prática que consideramos uma perversão dos conceitos foucaultianos e gramscianos, os culturalistas, —sabiamente a-historicistas — diluem a noção de identificação entre subalternos e populistas, descaracterizam o caráter nacionalista dos conceitos e criam, a partir disto, uma plurisubalternização que tem muito pouco com o que se identificar, e menos ainda com o que se rebelar.

        Pois, se o poder nacional não se encontra atrelado a um ideal nacionalista, podendo, porém, se denominar multiculturalista e, dessa forma não se ligar definitivamente a ninguém, este poder local também não representa mais expressividade política ou social, e, portanto, não é o poder. Então, tais minorias acabarão por descobrir que, contra si, estão as outras minorias não consideradas, como por exemplo, os brancos, ou os homens, ou as mulheres conservadoras. Como então criar negociações e identidades entre esses grupos, no sentido da utopia culturalista?

        Afinal, como ser subalterno, no sentido gramsciano, se não há populismo? Por outro lado, a ênfase nas identidades minoritárias como universais representa uma outra falácia que demonstra o autocentramento do discurso pretensamente "global": os preconceitos anglo-saxônicos que geraram tais minorias não encontram equanimidade em sociedades — e aqui contrariamos propositadamente During — de hierarquias tão pouco rígidas como no caso do Brasil?

        Os nossos preconceitos, ao contrário dos anglo-saxões, têm formatação bem menos rígida, a ponto de criar uma necessária identidade minoritária. Não significa que não tenhamos problemas como machismo, ou preconceito étnico. Mas, em nosso caso, as minorias não se pretendem minorias e, muito pelo contrário, lutam por ser iguais.

        A ignorância de fatos como esses, só nos revela, de fato, aquele autocentramento que vimos defendendo até então. Portanto, neste ponto resta-nos questionar: o que significam, de fato, os Estudos Culturais.

 

CONCLUSÃO: COM  O QUE SONHAM OS ESTUDOS CULTURAIS

 

A primeira resposta remete, necessáriamente à história: a criação de um novo universo, perfeito, que se materializará direto da mente mítica dos culturalistas, onde todas as fronteiras se reduzem a apenas uma, e onde todos os diferentes homens vivem suas diferenças em uma paz possível.

        O idealismo dos Estudos Culturais nos parece bom demais para ser verdade. E acreditamos que não seja. Como pretendemos ter demosntrado, as pretensas democracias de uma tal proposição demonstram um olhar universalista autocentrado que, perversamente nega a existência de um centro. E isso não pode ser casual. Muito pelo contrário, se aproxima bastante das práticas populistas que se assenhoram dos sonhos dos subalternos, recriando-os e tornando-os aceitáveis.

        Abolir as possibilidades de diferença histórica e geográfica é prometer um éden que a ninguém engana. Já foi feito antes, e tem nome: imperialismo. Esconder a exploração econômica, social e política através imputação da exploração a entidades próximas, acirrando as lutas entre minorias étnicas, era uma prática muito comum por parte dos colonizadores, desde a antiguidade, e não nos devem enganar.

        Aludir a uma inexistência de fronteiras, a uma igualdade transnacional que não se vive e não se conhece, em se apagando as memórias específicas, é de uma malícia bastante recorrente ns novas formas de poder insurgentes.

        Aos Estados Unidos apresenta-se como conveniente uma tal ideologia. Faz sentido que tenham abraçado de corpo aberto os Estudos Culturais. Às ex-colônias britânicas nos parece oportuna e oportunista, uma tal aliança. O fato de que apenas uma universidade inglesa tenha se engajado nesta causa também se nos assemelha bastante oportunista. Esclarecedor se nos apresenta a posição do resto da Inglaterra e da Europa como um todo: os Estudos Culturais representam uma ideologia que não lhes interessa.

        Quanto a nós, porém, os eternos outros, nosso lugar se encontra já reservado: somos ainda e sempre, os subalternos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BORGES, Jorge Luís. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora da UNB, 1985

BARTHES, Roland. Mitologias. 9 ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 

DURING, Simon. Introduction. In . _____(ed.) The Cultural Studies reader. 2 ed. Londres, Nova Yorque: Routledge, 1999.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas — uma arqueologia das ciênicas humanas. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

________________ . L'Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.

HALL, Stuart. Cultural Studies and its theoretical legacies. In. MORLEY, David & CHEN Kuang-Hsing (eds.). Stuart Hall: critical dialogues in cultural studies. Londres e Nova Yorque: Routledge, 1996. p. 262-275.

MARX, Karl. "Speech at the anniversary of the People's Paper", in The Marx-Engels Reader, 2 ed. (Norton, 1978).

 

 

 

Notas

 

 

MARIA Edith MAROCA de Avelar Rivelli de Oliveira (Minas Gerais, 1967) formou-se em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. É professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira na FAVAP, Ponte Nova-MG. Tem artigos e poemas divulgados em várias publicações. Dirige a lista virtual Litteratura. Mais aqui.